Site: http://www.itoi.ufrj.br/sempe/t6-p43.htm
Anais do IV SEMPE – Seminário de Metodologia para Projetos de Extensão, São Carlos 29-31 ago 2001
RECONSTRUÇÃO HISTÓRICA DAS REPÚBLICAS ESTUDANTIS DA UFOP
Otávio Luiz Machado
UFOP
Tel: (031) 9632-5386
e-mail: otlm@bol.com.br
RESUMO
O trabalho objetivou registrar por meio de pesquisa documental a história das repúblicas e das entidades estudantis da Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto), como buscou compreender a transformação dos velhos casarões em repúblicas estudantis e o papel dos estudantes neste contexto. Os métodos utilizados nesta pesquisa foram a pesquisa-ação e a história oral. O primeiro, para criar um campo de diálogo e envolvimento com os atores envolvidos, como os moradores de repúblicas e ex-alunos da Universidade, enquanto, no segundo, procuramos resgatar dados válidos que, com demais, possibilitaram a reconstituição histórica de um tema tão premente a Ouro Preto.
Introdução
O projeto contribuiu na construção do saber de uma “instituição” paralela à própria Universidade Federal de Ouro Preto e que ainda não tinha sido objeto de preocupação no tocante aos seus aspectos históricos: as repúblicas estudantis. O trabalho não visou a apenas dissecar a história destas repúblicas, mas a levantar aspectos de sua formação e contribuição ao longo do tempo.
A Universidade, em si, foi alvo apenas de uma obra, A Escola de Minas de Ouro Preto: o peso da glória, de José Murilo de Carvalho, publicado em 1978, através do Programa de Estudos sobre o Impacto da Ciência e Tecnologia no Desenvolvimento Nacional, da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), responsável também, de uma outra obra clássica A formação da comunidade científica no Brasil, de Simon Schwarzman.
A ausência de trabalhos históricos de importância e relevância sobre a vida estudantil e as repúblicas já justificam a realização de um trabalho com esta temática. Ocorreram algumas tentativas neste sentido, que falharam pela ausência de um suporte metodológico que permitisse a presença de uma polifonia e onde os papéis dos pesquisadores fossem mais de “facilitadores” da construção do saber do que propriamente os únicos empreendedores da tarefa. A administração superior da Ufop, em 1999, mesmo possuindo infra-estrutura razoável de bolsistas e materiais, não conseguiu construir um trabalho histórico das repúblicas, obstruído tanto pela ausência de um projeto com metodologia adequada quanto pela pouca clareza dos objetivos na sua apresentação aos estudantes e ex-alunos das repúblicas.
Em nosso projeto, o esforço inicial foi o de coletar dados - que poderíamos obtê-los com mais facilidades caso existissem arquivos completos e organizados sobre o tema. Assim, a mobilização de um conjunto de colaboradores, interlocutores, autores e atores para reconstituir uma parte significativa da história das repúblicas de Ouro Preto – sua diversidade e complexidade – foi importante, pois sem esta ampla participação, o trabalho não avançaria.
Nossa vivência em Ouro Preto e em repúblicas – sou ex-aluno da maior república estudantil de Ouro Preto – foi fundamental para levar o trabalho adiante. A aceitação da proposta por parte dos republicanos está relacionada, em parte, a esta condição do pesquisador, que conhece as “regras do jogo” nas repúblicas e está capacitado, na visão dos demais envolvidos, para tratar o tema sem preconceitos.
As únicas experiências teóricas disponíveis para troca sobre o tema estavam nos estudos da Universidade de Coimbra – a cidade de Coimbra e Ouro Preto são singulares em termos da universidade e de repúblicas tradicionais –, pois em Ouro Preto não tivemos nenhum respaldo neste sentido por falta de estudos completos e disponíveis.
A pesquisadora portuguesa Eduarda Cruzeiro estudou a praxe acadêmica (tudo que diz respeito aos costumes e práticas culturais) dos estudantes de Coimbra. Este estudo, em suma, como pensava a autora, era “um risco”, pois tinha de abordar um tema com os “entendidos” do assunto, os estudantes, que a praticavam na atualidade, e os ex-alunos, que já a praticaram. Da mesma forma que Ouro Preto, na cidade de Coimbra “a praxe é objeto de culto incondicional ou de recusa violenta” (Cruzeiro, 1990, p. 47). Entretanto, “desvendar as regras do jogo não é estragar o jogo; é dar a todos os jogadores melhores condições de jogo” (idem, p. 47). Como já dissemos, não tivemos estes riscos, pelo reconhecimento dos demais participantes.
Por outro lado, a pesquisa histórica, principalmente na fase de coleta de dados, passou a atingir um caráter de extensão, ao demonstrar que seus resultados iriam beneficiar uma determinada comunidade, a das repúblicas de estudantes, cujos membros são alunos e ex-alunos da Universidade. Por isso,
Com a metodologia participativa, um projeto de extensão traz uma melhor relação entre o conhecimento do pesquisador e a realidade circundante, maior interesse dos destinatários que não seriam mais vistos como meros receptores, e, sim, como atores dentro de um processo (Thiollent, 1999, p. 5).
O recorte do projeto não poderia ser compreendido como exclusão das repúblicas não participantes. E tampouco gerar sectarismos entre os estudantes, pois seria uma forma de justificar a força de um grupo sobre o outro, pois existe uma tendência em dividir os estudantes das mais diversas formas de moradias. O universo das repúblicas da Ufop é a seguinte:
GRUPO DE REPÚBLICAS OURO PRETO/MARIANA
REPÚBLICAS TRADICIONAIS
REPÚBLICAS NÃO TRADICIONAIS
Públicas *
Particulares abaixo de 15 anos
Particulares acima de 15 anos
Repúblicas (membros da mesma família)
* Exceto as existentes no Campus da cidade de Mariana.
OUTROS TIPOS DE MORADIAS DE ESTUDANTES
1) Pensões
2) Famílias da própria cidade
3) Casas de família (que alugam quartos)
4) Apartamentos (para até duas pessoas)
% DE ESTUDANTES DA UFOP (POR MORADIA) **
TIPO DE MORADIA
%
Repúblicas Particulares
39,00
Repúblicas Federais
23,00
Casa de Família
17,10
Casa Própria
13,40
Pensão
5,30
Alojamentos
1,60
Casa Paroquial
0,50
** Dados da Ufop.
São os estudantes de repúblicas públicas os que possuem melhores condições de moradia. Além de não possuírem ônus com aluguel, são autônomos em relação à Universidade. Os estudantes que não conseguiram vagas e não se adaptaram a estas repúblicas dirigem-se principalmente às repúblicas particulares. Assim, o desejo de todos os estudantes é a existência de um número maior de repúblicas públicas; e para isto buscam o mesmo tratamento da Universidade nesta questão. Como existe um clima de “confronto” entre as repúblicas, nosso objetivo não é capacitar as repúblicas tradicionais na manutenção de sua condição, mas por meio delas, também, demonstrar que as repúblicas públicas então existentes foram objeto de lutas no passado, são exemplos vivos da atuação estudantil e despertam habilidades importantes para os que nela habitam. Portanto, “Devidamente informada, essa população se sente mais fortalecida e instrumentalizada nas suas lutas” (David, 1998, p. 17)
DISCUSSÃO METODOLÓGICA
A realização de uma pesquisa tradicional nas repúblicas acarretaria fortes dificuldades para ser efetivada e muita tensão no período de sua divulgação, sobretudo se os resultados não fossem ao encontro das expectativas esperadas pelo objeto pesquisado, ou seja, as repúblicas. O emprego da abordagem participativa foi fundamental para os pesquisadores, de forma a evitar os seguintes problemas: controle da burocracia universitária nos rumos do trabalho; perda de informações de potenciais informantes, que não teriam tanto espaço em projetos com outras metodologias; não captação da diversidade cultural representada pelos estudantes e suas repúblicas; e distanciamento dos resultados dos estudantes e suas repúblicas.
Desta forma, a metodologia da pesquisa-ação nos permitiu construir o conhecimento com uma forte interação de pesquisadores, interlocutores, colaboradores, professores, estudantes, em um esforço único para reconstituir esta história. Como o planejamento do trabalho científico, em qualquer área, impõe ao pesquisador que descobre algo uma reflexão contínua sobre o seu objeto, neste sentido a metodologia utilizada auxiliou a intensidade da reflexão.
A metodologia da pesquisa-ação visa a aproximar a relação sujeito (pesquisador) e objeto (pesquisado). É uma relação intersubjetiva, que dialoga, que relativiza pontos de vista existentes. Desta forma, não é apenas a “inserção do pesquisador no meio, como de uma participação efetiva da população pesquisada no processo de geração do conhecimento, concebido fundamentalmente como um processo de educação coletiva” (Haguette, 1987). A construção do saber é coletiva.
A quebra da lógica dos que sabem/não sabem, pensam/são pensados, dizem/escutam, tão bem expostos por Paulo Freire em sua Pedagogia do Oprimido, ocorrerá quanto mais nossas pesquisas tiverem maior envolvimento com os que podem contribuir, debater, retirando dos pesquisadores a dominância sobre o tema. Um grupo de universitários recusaria a aprender algo que é a própria essência de suas vidas, principalmente se os realizadores da pesquisa, com pouca ou nenhuma experiência em termos de vivência em repúblicas, se dispuserem a impor este conhecimento. A troca de “olhares” e saberes que completa esta forma de pesquisa fornece
aos pesquisadores e grupos de participantes os meios de se tornarem capazes de responder com maior eficiência aos problemas da situação em que vivem, em particular sob forma de diretrizes de ação transformadora (Thiollent, 1986, p. 8).
As metodologias com propostas participativas ganharam espaços importantes no pós 1968, momento de redefinição do papel da universidade e da ciência. Os artífices ou atores importantes neste processo foram os estudantes, por sua radicalidade e sua posição social mais ativa voltados para a conscientização popular “dentro de um ideal de ciência compromissada com os atores da realidade e seus problemas” (Thiollent, outubro de 1998, p. 91-92). Foi neste momento que “na pesquisa social e na educação, procurava-se um novo ideário metodológico capaz de dar outra relevância aos fatos e de estabelecer uma participação entre os interessados, ou forma de atuação prática e permanente” (Idem, p. 93).
Nesta discussão, a associação de técnicas é importante para os estudos sociológicos na busca de uma visão mais efetiva da realidade, pois na pesquisa se realiza
um movimento dialético no entendimento entre pesquisador/pesquisado, que precisa ser conhecido e levado em conta na análise das informações transmitidas. Dessa forma, a associação de diversas fontes de dados só pode enriquecer o trabalho e permitir ao pesquisador apreender da forma mais objetiva possível a realidade (Campos, 1992).
São quatro elementos que fundam a originalidade da pesquisa-ação (Liu apud Thiollent, 1999), que seguem junto às características do projeto das repúblicas acrescido por nós abaixo:
1) Encontro de:
· · Uma intenção de pesquisa (pesquisadores): no nosso caso, tornar a história das repúblicas um objeto permanente de criação e renovação;
· · Uma vontade de mudar (usuários): no nosso caso, o projeto permite que as repúblicas possam “conhecer para agir”, se capacitar para enfrentar os desafios futuros e presentes com independência;
2) objetivo duplo:
· · Resolver o problema dos usuários: no nosso caso, dificuldade em divulgar sua própria história por falta de elementos;
· · Fazer progredir os conhecimentos fundamentais: no nosso caso, estimular novos trabalhos;
3) Trabalho conjunto que é aprendizagem mútua entre pesquisadores e usuários: no nosso caso, a parceria entre o saber acadêmico e o saber adquirido/vivido; e
4) Quadro ético negociado e aceito por todos: no nosso caso, o levantamento inicial permitiu produzir a história sem perder seu teor acadêmico (e sem academicismo) e validou o conhecimento dos demais participantes – saber informal que passou a ser histórico.
A organização e a divulgação do projeto funcionou através de um conselho editorial, composto de estudantes de diferentes regiões habitadas por repúblicas (no caso da produção do livro). Reuniões individuais foram realizadas nas repúblicas e, no final, houve uma reunião ampliada com todas as repúblicas participantes convidadas.
Em se tratando de metodologias inovadoras, a história oral provocou uma mudança na historiografia atual. A partir da década de 1970, com a crise do marxismo e do estruturalismo, é crescente o número de trabalhos que proclamam o uso de novos problemas, novas abordagens e novos objetos. Alguns teóricos colocam o nascimento da história oral na década de 1940, com o desenvolvimento de um programa de entrevistas feito pelo jornalista norte-americano Allan Newisn, que veio a se transformar no Columbia Oral History Office (Ferreira, 1994, p. 4). Mas foi Paul Thompson que “radicalizou a idéia de que a história oral tem por função desenvolver a história do povo, promover a democratização da história em si mesmo” e de “se afirmar como uma contra-história, operando uma inversão radical nos métodos e objetos consagrados” (Idem, p. 5). Por isso, “na recuperação da história dos excluídos, os depoimentos orais podem servir não apenas a objetivos acadêmicos, como se constituir em instrumentos de construção de identidade e de transformação social” (Idem, p. 9)
A transformação da história nos últimas décadas, com a expansão da pós-graduação e a sua maior interdisciplinaridade, ainda nos permite apreender o quanto nossos estudos evoluíram, pois
Segundo Stone, “a nova história deixava de estudar as circunstâncias do homem para estudar os homens em circunstância; desviava-se de temas econômicos, demográficos e biológicos em favor de temas culturais e psicológicos; abandonava-se a companhia da economia, da geografia e da sociologia em busca da antropologia e da psicologia; afastava-se do estudo do grupo em favor do indivíduo; deixava a explicação monocausal estratificada pela multicausalidade não estratificada; passava do analítico para o descritivo, do científico para o literário” (Carvalho, 1998, p. 12).
A história ainda tem muito a contribuir porque
“nada do que é humano será agora alheio ao historiador. Daí a multiplicação de estudos sobre a cultura, os sentimentos, as idéias, as mentalidades, o imaginário, o cotidiano. E também sobre instituições e fenômenos sociais antes considerados de pequena importância, se não irrelevantes, como o casamento, a família, organizações políticas e profissionais, igrejas, etnias, a doença, a velhice, a infância, a educação, as festas e rituais, os movimentos populares” (Idem, p. 19).
Com as comemorações dos 500 anos da entrada do português no Brasil, no ano passado, a história esteve entre os principais assuntos do dia, permitindo repensar a realidade do país. “A boa reflexão é aquela que gera mudanças” (Reis, p. 2, 23-02-2000) e a história contribui na criação de mecanismos de compreensão do presente e do próprio agir.
Nossa proposta está possibilitando aos atuais moradores das repúblicas uma nova forma de encarar a sua própria história. O conhecimento histórico que ajudou a produzir a pesquisa, e a forma criativa de se buscar e consultar fontes locais, gera a multiplicação de trabalhos e resultados. Tivemos de fugir do tradicional meio de se construir a história, que é caracterizada na crença de um único olhar, o do historiador, que não abre amplamente o diálogo para mediar a construção de seu campo de informação. Portanto, privilegiamos a reconstituição da história por aqueles que a fazem ou a fizeram, dando-lhes espaços sem o monitoramento firme do pesquisador. Os dados devem, também, falar por si mesmos.
Por isto, a construção de um trabalho não-autoritário, onde as visões de todas as repúblicas estejam presentes, foi o principal objetivo do projeto, pois não “fazemos” aqui a história das repúblicas – esta história já está feita –, mas realizamos um diálogo entre as várias gerações, atuais e passadas, juntamente com outros pesquisadores, para reconstituir o que há de melhor nas repúblicas estudantis da Ufop. O livro produzido é uma pequena amostra de que “conhecimento que não decifra a vida e não ilumina o mundo não é conhecimento. É enganação” (Alves, 1999, p.3).
Para o envolvimento de 85 repúblicas, 20 depoentes, cinco co-autores envolvidos diretamente, seis pesquisadores responsáveis e um público interessante imenso, foi necessário deixar espaço para todas as posições. A pesquisa é voltada para a solução de problemas, para o avanço do conhecimento, para a produção do saber e, desta maneira, a entendemos como uma forma de construção coletiva. O trabalho já está possibilitando um esforço de reflexão sobre as repúblicas.
Os pesquisadores do futuro possuem agora um guia para novos estudos. Um projeto de pesquisa em ciências sociais se justifica pela sua originalidade e pela capacidade de estímulo para que outros pesquisadores estudem e debatam os fenômenos nele contidos, além de sugerir propostas para tentar resolver as questões levantadas: “o objetivo da ciência não é somente aumentar o conhecimento, mas o de aumentar as nossas possibilidades de continuar a aumentar o conhecimento” (Ackoff, 1975, p. 27).
Resultados
A participação foi demonstrada pelo envio de colaborações para o livro. O número de participantes por categorias e instituições foi: professores universitários (10), pesquisadores (7), estudantes (114), ex-alunos (97), designers e diretores de arte (4), revisor (1), compositores/músicos (6), fotógrafos (4), totalizando 243 envolvidos diretamente no trabalho.
Quanto a interlocutores e colaboradores, por instituições, foram: universidades (5), fundações (3), arquivos (3) e empresas (7), num total de 21 instituições..
Noutro dado interessante, que demonstra a distribuição dos temas e sua autoria, percebe-se a importância significativa de estudantes e ex-estudantes das repúblicas, pois sem eles não teríamos praticamente a metade dos textos e documentos pertinentes fundamentais para a história das repúblicas. O texto no livro, que representa o resultado final do projeto, possui seu conteúdo dividido por partes e assuntos da seguinte forma: de autoria das repúblicas (108 págs.); a partir de depoimentos (19,5 págs.); de autoria da coordenação (86,5 págs.); Músicas e poesias (28 págs.); Encomendados (39 págs.); Reeditados (21 págs.); Introdutórios como apresentação, prefácio, introdução etc. (35 págs.); e de registros diversos (46 págs.). O livro totaliza 400 páginas, incluindo as imagens.
O nosso contato principal foi com as repúblicas. Poderíamos recorrer aos seus ex-alunos, no tocante à participação da república, que teriam provavelmente um maior empenho. Mas, entendemos que os atuais moradores são responsáveis por todas as realizações da casa. A iniciativa, portanto, deve partir deles. Confrontamos com opiniões pessimistas, por exemplo, de que os estudantes não mereciam o trabalho, pois se realizava todo um esforço para uma participação mínima e um reconhecimento baixo por parte deles. Foi provado o contrário. Das 66 repúblicas públicas de Ouro Preto apenas três não participaram ativamente do projeto. Aos poucos, cada participante foi compreendendo a importância do trabalho para a sua própria instrução. A descoberta de novas datas e fatos sobre a fundação das repúblicas e o contato com os ex-alunos em busca de informações sobre a história da casa representou para os estudantes, atuais moradores, um exercício de cidadania, à medida que iam redescobrindo a sua realidade. A utilização dos materiais coletados tanto para o livro quanto para a composição de home-pages está garantindo o surgimento de uma visão privilegiada sobre as repúblicas e a vida estudantil em Ouro Preto.
A metodologia de pesquisa-ação foi a única capaz de demonstrar que república estudantil é de suma importância para a Universidade Federal de Ouro Preto, pois só com ela pudemos privilegiar todas as visões existentes sobre as repúblicas, gerar um debate sobre as repúblicas e o seu contexto cultural e, acima de tudo, tratar o tema tão complexo sem preconceito.
O caráter livre das repúblicas de Ouro Preto permitiu-nos enunciar os seguintes conceitos:
a) AUTOGESTÃO: a auto-suficiência dos estudantes em relação à universidade, em suas atividades, ou seja, não existindo nenhum poder acima para interferir em suas ações, seja as suas Diretorias, os Ministérios, enfim, o Estado e a sua máquina burocrática, permitiu aplicar algumas idéias deste conceito anarquista, como a gestão interna e a democracia direta, ou seja, todos têm poder de mando. A autogestão também se remete ao autodescobrimento, pois permite ao indivíduo incluir em seu projeto individual benefícios ao grupo, através da autonomia, cooperação, solidariedade e apoio mútuo. Percebemos ao longo da pesquisa que entidades estudantis autogovernadas é comum em Ouro Preto, como: Centro Acadêmico da Escola de Minas, o Caem (desde 1915 é o maior centro social de Ouro Preto, com biblioteca, discoteca, espaço social etc.); Restaurante da Escola de Minas de Ouro Preto, Remop (desde 1959 é o local de refeições de todos os estudantes); Coral de Ouro Preto (funcionou de 1958 a 61); Escritório-Piloto (desde 1979 promoveu diversos cursos para a população da cidade, além de ser a primeira atividade de extensão da Ufop); e as Repúblicas (existem em caráter particular desde o final do século e passam a ser oficiais em 1953). O termo autogestão aplica-se também à participação direta dos trabalhadores na tomada de decisões básicas nas fábricas, como uma forma democrática de organização estabelecida em conselhos e assembléias. Enfim, transcende os limites do Estado.
b) AUTONOMIA – quando o grupo adquire vontade suficiente para suas responsabilidades, sem a existência de um regulador de conflitos, um interventor, adquire autonomia, porque tudo é decidido internamente, de acordo com a vontade dos próprios indivíduos. A sociedade natural aparece, ou seja, surge uma organização livre de indivíduos, onde “tudo pertence a todos”. Enfim, nada melhor para os estudantes saber o que querem e ter a liberdade de realizar suas ações de acordo com os seus interesses. Desta forma, se a república é importante para o estudante, o estudante é ainda mais importante para a república.
c) COOPERAÇÃO: como relação de troca, caracteriza-se pela desigualdade das partes, porque “o que se troca entre os actores são recursos e trunfos que cada um possui e de que os outros precisam para realizar o seu projecto coletivo ou individual” (Quivy e Campenhoudt, 1992, p.126-127). A cooperação também é uma relação de força, “de uma negociação em que o mais fraco, seja em trunfos, seja em habilidade para negociar, é forçosamente obrigado a aceitar as condições dos mais fortes” (idem, p. 129). Assim, “se deixam de cooperar, os actores rompem, de facto, a relação de troca e perdem toda a possibilidade de retirar dela qualquer tipo de lucro” (idem, ibidem).
Por outro lado, pudemos comprovar o que comumente se comentava sobre as repúblicas e a aprendizagem que possibilita aos estudantes: a troca de saberes e o convívio com a diferença. O ensino fora das salas de aulas, que inclusive é citado no estudo de Helena Crivellari sobre a formação dos engenheiros em Minas Gerais, aponta que “o ensino da gestão da ‘coisa pública’ (as estatais) inicia-se, em Ouro Preto, não nos bancos escolares, mas no interior das repúblicas” (Crivellari, 1998, p. 12).
A institucionalização das repúblicas ocorre no período em que a ideologia desenvolvimentista é a predominante. A Escola de Minas de Ouro Preto é reconhecidamente um foco nacionalista e seus ex-alunos eram absorvidos principalmente pelo serviço público, que “tendiam a considerar-se servidores públicos responsáveis pela condução do país pela rota do progresso” (Schwartzman, 2001).
A modernização do ensino superior não foi exclusivo dos anos posteriores a 1960. Um dos exemplos é a duplicação de vagas no ensino superior e a gratuidade nos estabelecimentos federais, a partir de 1950, que permitiu melhorar as oportunidades de escolarização (Cunha, 1983, p. 254). O tema subdesenvolvimento entra em cena a partir de 1950, através da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal).
Esta conjuntura apresenta condições para inovação nas Escolas Superiores, como parte de um projeto nacional de desenvolvimento em que a ciência e a educação são valorizadas. Por isso, a compra de repúblicas, oficialmente estabelecida em 1953, seguida paralelamente por entidades privadas de assistência ao estudante, como a Casa do Estudante da Escola de Minas, ou do apoio da Fundação Gorceix, a partir de 1960, são investimentos dos estudantes e uma forma encontrada pelas elites acadêmicas de possibilitar a vinda e a permanência de um maior número de estudantes em Ouro Preto, e também, para aproveitar o dinamismo dos estudantes vindo destes incentivos ou investimentos.
Enfim, são várias as visões sobre as repúblicas, que ao longo do tempo foram lançadas e contrastadas, aceitas ou repudiadas, debatidas ou esquecidas. São visões positivas sobre a existência das repúblicas ou negativas, que criticam as práticas dos estudantes, o seu apego às tradições ou o “corporativismo”. Mas, em sua totalidade, é o desconhecimento das peculiaridades do que é uma república que gera tais críticas, que são na verdade demonstrações de preconceitos. Estes críticos não fazem uma diferenciação entre tradição e experiência acumulada. Se nos basearmos no clássico de Thomas Morus, “A Utopia”, que retrata um país imaginário, com uma organização que possibilita a felicidade dos seus cidadãos, poderemos refletir sobre as repúblicas de Ouro Preto, que são, na verdade, expressão de uma “sociedade ideal”, utópica, irreal, portanto, não-aceita. Em sua obra, Morus retrata a sua Utopia como um lugar onde “ninguém possui nada de seu, todo mundo se ocupa, seriamente, dos negócios públicos” (Morus, p. 70), e onde “os homens são mais fortemente unidos por sua boa vontade que por todos os tratados, e pelos sentimentos, mais que por protocolos” (idem, p.57). O diferente é difícil de ser aceito, e pelo contrário, deve ser combatido.
Nos momentos finais do projeto, observamos uma iniciativa do DCE/Ufop (Gestão 2000-2001) para tentar criar um regulamento para as repúblicas federais, buscando estabelecer um sistema paralelo para a organização destas casas, que apontava para o fim da autonomia das repúblicas públicas. Para evitar tais precipitações, a realização de estudos mais abertos sobre as repúblicas poderá ser importante no esclarecimento da questão, na maior tolerância com as centenárias repúblicas que não perderam o seu vigor.
Conclusões
A reconstituição histórica de grupos cuja diversidade cultural é acentuada aponta a pesquisa-ação como uma metodologia imprescindível. Primeiramente, a coleta de dados é a fase em que ocorre o primeiro contato entre o proponente (o pesquisador) e os possíveis participantes. A colaboração é maior quando existe claramente uma participação direta formalizada e a expectativa de devolução de resultados.
Em segundo lugar, existe uma demanda para estudos desta natureza. As universidades precisam estar atentas a esta demanda e iniciar a formação de grupos de pesquisa com ênfase na Pesquisa-Ação.
Em terceiro lugar, sabemos que o desmonte do projeto nacional e tudo que o sustenta, como as universidades públicas, está em fase de processamento. O conhecimento de nós mesmos é essencial para produzir a confiança necessária para a transformação, pois “devemos assumir nossa situação histórica e abrir caminho para o futuro a partir do conhecimento de nossa realidade” (Furtado, 1992, p. 79). Celso Furtado indica que para a superação do subdesenvolvimento é preciso assumir nossa própria identidade e a confiança de nós mesmos, além do conhecimento consistente da realidade social na elaboração de um projeto factível para isto.
Os novos estudos sobre as repúblicas que se apoiarem na pesquisa-ação com certeza poderão produzir saberes, que além de reconstituir a história, permitirão a construção do seu futuro.
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