quarta-feira, 19 de março de 2008

Ficha de Leitura de livro de Dirceu e Palmeira sobre 68

DIRCEU, J. & PALMEIRA, V. Abaixo a ditadura. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo/Garamond, 1998.

P. 11

“Tínhamos sido todos presos um ano antes, em outubro de 68, no XXX Congresso da União Nacional dos Estudantes que se realizava nas proximidades da cidade paulista de Ibiúna. A UNE era ilegal, tinha sido proibida pela ditadura, e nós estávamos tentando um prodígio: fazer um congresso com novecentas pessoas num lugar despovoado e sem atrair a repressão. Logo no segundo dia, às cinco da manhã, me acordaram às pressas: “Vladimir, a polícia está chegando!” Eu dormia numa tenda para superar uma crise de asma, enquanto a maior parte do pessoal se esticava nas arquibancadas, que estavam secas. Fui correndo falar com o Travassos e o Dirceu e, como sempre, saiu briga entre eles. Eu não vi, já tinha me afastado, mas dizem que o Travassos não queria sair do local, pensando que aquilo fosse conversa nossa para não perder a eleição”.
Eu e o Zé Dirceu éramos da Dissidência, um dos setores que tinham rompido com o PCB por considerá-lo reformista e não revolucionário; na verdade, o mais ...

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... certo no caso seria falar no plural, porque se tratava de vários setores universitários que haviam saído do partidão sem adotar nenhum nome – eram só isso, dissidências. Esses grupos existiam somente nos estados do Rio, Guanabara, São Paulo e Rio Grande do Sul e cada um seguia o seu próprio caminho; não formavam um partido, eram organizações que tinham coisas em comum e atuavam de maneira mais ou menos coordenada. Mais tarde o nosso pessoal, a Dissidência do antigo estado da Guanabara, adotou a sigla MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), nome que evocava a morte do Che Guevara e que fora herdado do grupo de Niterói, preso pouco antes.
Travassos pertencia à Ação Popular (AP), nossa grande rival no movimento estudantil. A disputa era enorme entre os dois grupos e os atritos, freqüentes. Naquele congresso iria ser renovada a diretoria da UNE: Travassos era o presidente em exercício e o Zé Dirceu, nosso candidato para sucedê-lo. Essa eleição tinha uma importância enorme, porque o encontro ocorria pouco depois do grande auge do movimento estudantil que sacudiu o país em 68. nós, estudantes, éramos vistos por todo o Brasil como setor que liderava a resistência contra a ditadura, e as nossas entidades, como símbolos dessa luta” (VLADIMIR PALMEIRA).

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P. 12
“Eu ia ser eleito no Congresso. A Dissidência havia começado a se reaproximar do PCB – pelo menos na política estudantil –, e outros setores estavam dispostos a conversar sobre a retirada da candidatura de Marcos Medeiros para me apoiar, o que nos daria a maioria.
Para nós era muito importante conquistar a direção da UNE. Na época já tínhamos alguma idéia disso, mas hoje posso avaliar com toda clareza como são profundas as raízes culturais e históricas do movimento estudantil” (JOSÉ DIRCEU).


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P. 17

“Vladimir é mais velho que eu e foi presidente do CACO antes de eu ser presidente do Centro Acadêmico 22 de Agosto. Mas fomos presidentes da UEE (União Estadual dos Estudantes) , de São Paulo , e da UME (União Metropolitana dos Estudantes), do Rio, ao mesmo tempo e fazíamos dobradinha para disputar a hegemonia da UNE”. (JOSÉ DIRCEU)

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p. 20

“...um dia eu estava caminhando por Copacabana quando aconteceu um dos episódios mais bonitos da minha vida. Vinha pela calçada um menininha de uns cinco oui seis anos, andando na direção contrária; quando me viu, parou na minha frente e gritou: “Estudante!” Depois abriu os bracinhos e repetiu, sorrindo e olhando para mim: “Estudante!” Foi comovente” (VLADIMIR PALMEIRA).


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P. 20

“Tanto eu como o Vladimir representávamos a postura anti-establishment, anti-ordem, até no modo de vestir, de falar, de nos comportar. Simbolizávamos a irreverência, a rebeldia e, nesse sentido, éramos mais do que lideranças contra a ditadu-...

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...-ra, contra a política educacional. Éramos lideranças que se opunham a todo um estado de coisas, à ordem estabelecida, a uma mentalidade que existia e que nós queríamos mudar. E tínhamos , cada um à ssua maneira, todo um folclore à nossa volta.
Eu era um jovem diferente: quando entrava em algum lugar todo mundo me olhava de lado, porque falava, me vestia e me comportava de um modo totalmente peculiar. Tinha a mania de me sentar em cima da mesa do professor, gostava de botar os pés na carteira, usava uma roupa pouco convencioonal para a época: calça azul , camiseta de gola canoa e um sapato sem meia. Ainmda por cima, não admitia que alguém falasse alto comigo ou me desse ordens, nenhum professor podia se dirigir a mim desse jeito. Logo me levantava e começava a discutir”. (VLADIMIR PALMEIRA).

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P. 28

“Tive realmente alguns problemas com o tropicalismo. Conheci Gilberto Gil e Caetano nessa época; ambos estiveram na Maria Antônia e me pareceram muito simpáticos. Naquela altura o impacto do fgestival de música popular era enorme em São Paulo e em todo o Brasil. Geraldo Vandré e outros artistas viviam nas faculdades, nós fazíamos debates sobre todos os assuntos imagináveis e as polemicas eram inevitáveis” (JOSÉ DIRCEU).

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p. 29

“Em São Paulo se desenvolveu um movimento cultural muito poderoso naqueles anos. Quando comecei a freqüentar a noite, ainda bem jovem, acabei conhecendo uma poarte do pessoal das faculdades e da esquerda, antes de entrar no movimento estudantil. Fiquei maravilhado. Descobri que a Maria Antônia era o centro político enquanto o centro cultural era a FAU, na rua Maranhão. Ali ficavam a Economia, a Filosofia , a Arquitetura e o Mackenzie. O Chico Buarque estudava na FAU e mais de uma vez nos encontramos nos bares da Maria Antônia, tomando umas batidas estranhas que inventavam” (JOSÉ DIRCEU).

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p. 31

“Em 68 tínhamos um sentimento ético e libertário muito forte. Estávamos absolutamente corretos ao combater a ditadura, identificávamos os principais males que ela podia trazer ao país, mas na verdade não conhecíamos o Brasil. Cada um vivia a sua cidade, o seu mundo, e não dispunha de uma visão ampla, nacional. Antes de nós não havia uma tradição de participação políica maciça. O Brasil viveu uma ditadura de 1937 a 1946, depois o povo arrombou as portas e se incluiu no processo político até 64, mas mesmo nesse período já vivíamos , sob certos aspectos, numa espécie de ditadura, uma democracia cupulista. Não era fácil ter uma concepção abrangente do país” (JOSÉ DRICEU).

P. 32

“O movimento estudantil, na minha visão de hoje, foi antes de mais nada uma grande revolução cultural e de comportamento. Mais importante do que a luta contra a ditadura, embora isso possa parecer absurdo. A geração de 68 é a primeira que desde cedo mora fora de casa, trabalha e tem independência em relação aos pais. É também a primeira que mistura as classes altas e a pequena burguesioa com os filhos de trabalhadores, nos cursos noturnos das universidades. E faz a ruptura”. (JOSÉ DIRCEU).

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p. 33

“O pessoal da Dissidência ainda tentou forçar a minha candidatura, mas consegui convencer a maioria. Ganhei politicamente , dizendo que já tinha dado a minha cota e que não fazia sentido continuar. Foi complicado, porque o partidão só aceitava votar em nós se fosse eu o candidato , porque tinham conflitos com o Dirceu. Enquanto isso a AP fazia os seus movimentos, o PCBR lançoui a candidatura do Marcos Medeiros, uma confusão.
E havia também uma certa supeita no ar, porque o Arantes racionava com os critérios da briga de São paulo e dizia ao Dirceu que eu queria ser presidente. De fato havia um grupo que exigia o meu nome, argumentando que o Zé era muito sectário, muito radical. Os moderados me aceitavam mais, me consideravam mais tratável. Mas eu apoiava o Zé e queria o Zé. Na primeira noite do congresso fui expor nossas posições no plenário. Era um desafio.
Como o congresso tinha sido organizado pela UEE de São Paulo, ainda passei pelo constrangimento de defender suas condições de realização. Fiz uma defesa em regra, por mais que a situação fosse insustentável – aquilo era mesmo uma porcaria. Chovia no toldo que improvisaram, o barro entrava nos sapatos, todo mundo vivia molhado, ninguém agüentava ... Quando votamos o credenciamento de delegados, começaram os atritos com a turma de São Paulo. Nós do Rio tínhamos uma concepção muito estrita de representação, queríamos respeitar rigorosamente os votos do moviento estudantil. Mas em São Paulo a coisa era diferente. O pessoal dizia: “Se é da AP a gente é contra, e ponto final” – e vice-versa, naturalmente. Começaram as impugnações de delegados, e em duas votações nós fomos contra o Zé Dirceu, porque as delegações eram flagrantemente irregulares. O Arantes teve um ataque, disse que nós queríamos tumultuar, mas realmente não dava para aceitar irregularidades” (VLADIMIR PALMEIRA).

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P. 70

“´Calabouço´ era como o pessoal chamava aquele velho restaurante da UME que ficava quase em frente ao aeroporto Santos Dumont. Eu nunca soube a origem desse nome sombrio, mas na época ninguém ligava. Era um ponto de encontro tradicional para os estudantes de tiodas as escolas do Rio, principalmente os que vinham dos subúrbios mais distantes: a comida nunca foi grande coisa, mas era baratíssima. Depois do golpe houve uma intervenção do governo, que se apropriou do restaurante mas não impediu que ele continuasse funcionando normalmente. E foi assim até 66, quando as autoridades decididaram fechá-lo alegando que precisavam reformar o visual na região do aeroporto, preparando a cidade para a tal reunião do FMI . Isso, é claro, não passava de pretexto: na verdade estavam com medo de agitação e protestos.
Quando anunciaram o fechamento, todo o movimento estudantil deu apoio à Frente Unida dos Estudantes do Calabouço (FUEC), presidida por Elinor Brito” (VLADIMIR PALMEIRA).

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P. 85

“O ano começou com a morte do Edson Luís, que nos surpreendeu e de repente colocou o movimento estudantil num patamar inteiramente diferente. Para se ter uma idéia da nossa situação, no início de março um pessoal da esquerda tinha ido a uma passeata em Salvador e um deles voltou impressionado, contando que na Bahia havia um movimento muito forte: “Imagina só, Vladimir , eu discursei para dez mil pessoas!””. (VLADIMIR PALMEIRA).

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P. 88


“Ao final de 1967 conseguimos um grau de organização excepcional; a Dissidência tinha o controle estratégico das entidades em São Paulo. No início de março, volta às aulas, os estudantes encontraram um clima de radicalização crescente no país” (JOSÉ DIRCEU).

“Em São Paulo, o fator de mobilização inicial foi o problema dos excedentes. Um grande número de estudantes, em sua maioria de classe média e pobres, foi aprovado no vestibular mas ficou a ver navios. As universidades não tinham vagas para todos, e essa incapacidade gerou uma forte crise. Aquela massa de gente – cada vez maior, porque o problema afetava milhares de famílias – começou a denunciar com firmeza a política educacional. Com isso, desmentia a propaganda pseudodesenvolvimentista do governo , mostrando que o investimento na educação era zero. Essa luta capitalizou a falta de perspectivas que a classe média sentia em relação ao regime, o que foi muito importante para conquistar a solidariedade popular ao movimento estudantil.
Os excedentes começaram a fazer manifestações de protesto, apoiados pela UEE. A palavra de ordem central era uma frase simples e forte: “Fomos aprovados; queremos estudar!”. Nada mais natural; era um direito adquirido , e por isso foi entendido e apoiado pela população. Os estudantes da USP fizeram passeatas pelas ruas centrais da cidade cobrando um pedágio destinado a financiar a luta por novas vagas. A receptividade foi ótima, por toda parte o povo apoiava dizendo: “Esta rapaziada é que está certa. Se todos tivessem essa coragem o Brasil seria melhor”.
Organizamos acampamentos nas ruas e nos centros acadêmicos. O governo, surpreendido, se mobilizou para arranjar de algum modo mais vagas nas faculdades. Na USP, o Octávio Ianni assumiu uma posição de negociação, propondo uma ampla reforma no departamento que dirigia para atender os excedentes. No dia da reunião da Congregação para discutir a reforma, os estudantes invadiram o recinto como forma de pressão. Entre dois fogos, Florestan Fernandes declinou de seu cargo na Universidade. A essa altura, a entrada da faculdade de Filosofia estava tomada pelos acampamentos dos excedentes”. (JOSÉ DIRCEU).


P. 92

“A Central se tornara uma ...

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... tradição para nós, uma espécie de marca registrada, porque em volta da estação se reunia o pessoal mais pobre, a massa de operários indo ou voltando dos subúrbios, e por isso costumávamos terminar lá nossas passeatas. E depois havia o Ministério da Guerra, ali ao lado: o pessoal gostava de provocar , e na verdade íamos até a Central também para aporrinhar os militares, porque sabíamos que nesses dias eles sempre ficavam tensos, temendo que houvesse uma invasão. E, de fato, não participei de uma só passeata em minha vida sem que alguém quisesse marchar para cima do Ministério da Guerra” (VLADIMIR PALMEIRA).

P. 97

“Na manifestação de 1º de Maio, o movimento estudantil e o Agrupamento Revolucionário de São Paulo destruíram o palanque do Abreu Sodré na Praça da Sé e botaram o governador para correr. Ali ocorria o primeiro laço mais forte entre o movimento estudantil, a classe operária e os revolucionários: esse Agrupamento era o grupo que saiu do PCB com o Marighela e depois se transformou na ALN; já possuíam um esquema militar e estavam iniciando as ações armadas. Mais tarde eles também nos deram cobertura em outros momentos, principalmente durante a ocupação da Maria Antônia”. (JOSÉ DIRCEU).

P. 109

“Em São Paulo ocorreu toda uma dinâmica de reforma universitária que não se deu no Rio. Por isso posso dizer que o movimento estudantil de 68 foi bem mais do que uma revolução educacional, que poderia ter dado ao Brasil uma outra universidade. Na época houve um debate sobre a Universidade Crítica, uma idéia que veio da França, trazida pela POLOP. O Vladimir foi contra e eu, de certa maneira, defendi. A proposta da Universidade Crítica era bastante conceitual e da maior relevância, porque trazia embutida a idéia de transformar a universidade – algo que acredito até hoje –, renovando sua importância como espaço cultural e político e subvertendo as estruturas tradicionais” (JOSÉ DIRCEU).


P. 166

“Nós da UEE éramos responsáveis pela organização do congresso em São Paulo e decidimos que o encontro seria clandestino. Isso não era uma coisa absurda, por mais que hoje possa parecer. O movimento estudantil já tinha feito dois, nas mesmas condições. Mas estávamos vivendo dias agitados. A guerra da Maria Antônia havia terminado poucos dias antes, o ambiente estava carregadíssimo , as disputas com a AP , inclusive pela presidência da UNE , eram acirradas. Tudo isso nos absorvia completamente e me impediu de acompanhar a montagem da reunião. Dividimos as tarefas. Para tocar o congresso, montamos uma comissão organizadora e designamos alguns dirigentes do movimento estudantil como responsáveis.
O local escolhido foi errado. Era um sítio; quando nos passaram as informações parecia que íamos encontrar uma casa enorme , com acomodações para todo mundo ...

p. 167

... dormir. Pura ilusão. Havia um estábulo, uma casa para guardar material e mais nada. E como chovia o tempo todo , dá para imaginar em que condições aquilo ficou. A idéia era realizar as sessões ao ar livre, mas nas circunstâncias acabaram inventando uma espécie de armação de bambu, cobriram com uma lona e tentaram fazer ali mesmo. Foi o caos”. (JOSÉ DIRCEU).

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p. 167

“Como sempre, perdemos muito tempo com as votações de impugnações de delegados e suspeitas de fraudes, uma velha prática que se mantinha entre as tendências. Naquele momento o movimento estudantil tinha uma importância política muito grande no cenário nacional, como nunca mais voltou a ter, e cada grupo disputava palmo a palmo as fatias do poder. Mas infelizmente éramos muito divididos. Se alguém tiuvesse o controle da situação, poderíamos ter encerrado o congresso horas antes , quem sabe evitado a prisão de muita gente. Nessas horas é importante a capacidade de tomar uma decisão. Mas assim que nos disseram que corríamos o risco de cair, a AP começoui um debate sobre a veracidade da informação – desconfiando que fosse uma armação nossa. Foi um erro gravíssimo, porque o informe da segurança era real e o congresso caiu mesmo.
Oitocentas pessoas não se retiram secretamente de um lugar como aquele, uma operação dessas levaria dias. Em tese as lideranças poderiam ter saído de lá, mas não sei se seria correto escapar deixando o resto do pessoal ser preso: é uma outra discussão. Na verdade foi tudo mal pensado, ocorreram vários erros de avaliação” (JOSÉ DIRCEU).

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