segunda-feira, 10 de março de 2008

FONTE: http://www.ufmg.br/liberdade/liberdadeessapalavra.htm

Liberdade - Essa palavra

Heloisa Maria Murgel Starling e Maria Ceres Pimenta Spínola Castro

"Liberdade – essa palavraque o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique,e ninguém que não entenda".(Cecília Meireles)


Em uma canção composta durante os curtos anos de desagregação do regime militar, Hino da Repressão (2º turno), canção em que narra as práticas de violência cometidas pela ditadura brasileira, Chico Buarque aproveitou para avisar, profético: tudo deixa rastro, nada é tão bem apagado que alguma coisa da memória de sua existência não possa subsistir, nenhum homem desaparece tão por inteiro que ninguém se lembre de seu nome. Algo ou alguém sempre sobra para, com suas palavras, retomar a história do outro:
"Se manchas as praçasCom seus esquadrõesSangrando ativistasCambistas, turistas, peões...A lei tem caprichosO que hoje é banalUm dia vai dar no jornal."
Um dia deu no jornal. No momento em que se completam 40 anos do início do regime militar brasileiro e 20 anos nos separam dos principais acontecimentos que estabeleceram as condições de desagregação desse mesmo regime – a Campanha das Diretas Já –, a Universidade Federal de Minas Gerais assumiu a tarefa de reencontrar o tempo e devolver lembranças sobre os fatos que marcaram sua participação na vida política desse período, com a intenção de construir um relato sobre o que aconteceu, narrar uma história e envolver-nos nela. Os protagonistas dessa história são os estudantes da UFMG; seu espaço, as assembléias; seu símbolo, as passeatas; sua marca, os panfletos; seu arsenal, um punhado de canções.
O esforço de recordação conduz a um movimento muito próprio da memória. Recordar, nesse caso, significa caminhar para trás no passado, na tentativa de chamar o movimento estudantil da UFMG de volta ao coração, para tentar flagrar, num ponto vazado do tempo, a fragrância fugidia das coisas distantes e ausentes. Nesse sentido, recordar as experiências e o cotidiano político dos estudantes desperta, na imaginação de quem se lembra, a possibilidade de interpretar esse movimento como um signo histórico, caracterizado pela concentração e condensação de sentidos plurais.
Isso significa dizer que, em boa medida, os estudantes dessa época viveram um movimento político de natureza única, marcado por um fenômeno singular, por uma particular faculdade de exceder os limites de seus interesses e motivações estritos. Na prática, esse fenômeno os conduziu a uma atividade política que transbordou do plano universitário, mas foi possibilitada pelo reconhecimento, da própria universidade, de que seus estudantes são também cidadãos. Assim, durante o regime militar, a UFMG não foi apenas um refúgio; foi também espaço público de reunião e discussão, lugar de contestação estética, ao mesmo tempo erótica e belicosa, território de radicalização que se inspirava, ora nos pensadores libertários e nos princípios da desobediência civil, ora na expansão da violência considerada irreversível.
Durante um longo período, houve, dentro dos muros da UFMG, um movimento político que fez do cotidiano o lugar de uma contestação sobre o conjunto da sociedade brasileira, e no qual se precipitou toda uma carga utópica difícil de ser extinta, toda uma crença no poder inesgotável da imaginação humana para revolucionar e reformar o país – crença análoga a um forte desejo de evasão no imaginário, que já sustentava a intencionalidade positiva utópica dos revolucionários dos séculos XVIII e XIX, e que Tocqueville definiu como produzindo uma espécie de culto do impossível, gerado no começo do processo revolucionário e em seu interior. Assim, na UFMG, nos anos em que durou o regime militar, aconteceram encontros amorosos, greves nas escolas, assembléias turbulentas, gestos de amizade, ocupação de auditórios ou de salas de aulas, distribuição de jornais, confrontos políticos, cenas de violência, queima de bandeiras, discursos militantes em profusão. No decorrer de todos esses anos, os estudantes teimaram em produzir eventos mais ou menos violentos, mais ou menos organizados, mais ou menos reprimidos, mais ou menos libertários, sem existir nenhum centro único coordenador de toda essa agitação. E, em toda essa série de eventos, o espaço público foi retomado – e muitas vezes renovado – com o exercício quase cotidiano da ação, da palavra, dos direitos políticos, da percepção de que existe uma dimensão da felicidade em abandonar certa opacidade triste que recobre nossas vidas privadas, da descoberta dos sentimentos e das emoções que produzem o gesto de exuberância política.
Há quem não tenha visto esse tempo passar. Há quem diga que foram tempos sombrios, tempos de dor, medo, solidão, sofrimento e morte – e isso é verdade. Mas também foram tempos em que os estudantes souberam e desejaram manter suas mãos sobre a liberdade. Pensando bem, a canção de Chico estava certa: um dia tinha mesmo de dar no jornal.

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