segunda-feira, 16 de julho de 2007

DEPOIMENTO DE RICARDO APGAUA

UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
LABORATÓRIO DE PESQUISA HISTÓRICA
PROJETO A CORRENTE REVOLUCIONÁRIA DE MINAS GERAIS


LEMBRANÇAS DA CORRENTE REVOLUCIONÁRIA DE
MINAS GERAIS: ENTREVISTA DE RICARDO APGAUA A
OTÁVIO LUIZ MACHADO



OURO PRETO, 2004

FICHA TÉCNICA
Depoente: Ricardo Apgaua

Tipo de depoimento: Temático

Entrevistador: Otávio Luiz Machado

Levantamento de dados e roteiro: Otávio Luiz Machado

Conferência, leitura final e notas de rodapé: Otávio Luiz Machado

Redação final: Ricardo Apgaua

Elaboração de temas: Otávio Luiz Machado

Entrevista original:

Local: Nova Lima-MG

Data: 02/01/2003

Duração: 2 h aprox.

Fitas cassete: 2

Data da conclusão da redação final:

27/07/2004

Páginas: 19

Proibida a publicação no todo ou em parte sem autorização.
Permitida a citação.
A citação deve ser textual, com indicação de fonte.
Permitida a reprodução.

Norma para citação:

APGAUA, Ricardo & MACHADO, Otávio Luiz (organizadores). Lembranças da Corrente Revolucionária de Minas Gerais: Entrevista de Ricardo Apgaua a Otávio Luiz Machado. Ouro Preto: Laboratório de Pesquisa Histórica da UFOP/Projeto A Corrente Revolucionária de Minas Gerais, 2004.



APRESENTAÇÃO (Otávio Luiz Machado)


Na minha trajetória, destacaria duas frases marcantes e impressionantes retiradas das minhas lembranças de leituras:

1) “o momento atual é muito difícil; é o momento para pensar em criar, em encontrar alternativas e, se possível, ser feroz para ver se as coisas mudam” (Aziz Nacib Ab’Sáber);

2) “Devemos assumir nossa situação histórica e abrir caminho para o futuro a partir do conhecimento de nossa realidade” (Celso Furtado).

Estas frases, escritas em períodos não-coincidentes, retratando contextos diferenciados e escritas por dois importantes intelectuais de formações distintas, caberia muito bem neste texto de Ricardo Apgaua, cuja origem está na entrevista que fiz com ele, no início de 2003, na cidade de Nova Lima-MG.

A longa entrevista de Ricardo, gravada e transcrita por mim ao longo do ano de 2003, ao ser repassada a ele para revisão e autorização, sofreu um saudável e interessante formato, num escrito em que desaparecem as repetições e as questões do entrevistador, bem como as indicações das interrupções, dos silêncios, sussurros, esquecimentos e empolgações do entrevistado, mas que permite aparecer um belo texto e importante referência para o movimento estudantil e político de Minas Gerais nos anos 1960.

As duas frases apresentadas não foram colocadas aqui por acaso. A primeira poderia perfeitamente remeter ao período em que Ricardo relatou o vivido, ao protagonizar uma luta de combate à ditadura militar brasileira num período em que foi preciso ser feroz para ver as coisas mudarem. A segunda, um pouco mais evidente, pôde remeter ao depoimento prestado ou ao texto produzido, ambos fundamentais para o conhecimento da nossa realidade. Enfim, os meus votos que este texto seja lido com o valor que tanto o militante como o autor é merecedor.


PREFÁCIO (RICARDO APGAUA)

Em finais de 2002, fui procurado por Otávio Luiz Machado que, pesquisando sobre a participação das repúblicas de Ouro Preto, na luta contra a ditadura, na década de 60, queria entrevistar-me. Havia chegado a mim através de depoimentos de militantes ouro-pretanos que haviam protagonizado as lutas estudantis naquela cidade e me haviam citado.

Devido à impossibilidade de separar o movimento estudantil da luta geral contra a ditadura nos anos de chumbo, a entrevista acabou por descrever acontecimentos que iniciaram em Ouro Preto, mas superaram as suas fronteiras, rodando o mundo, passando por congressos estudantis, por greves, pela insurreição armada, pela prisão e morte de alguns e pelo exílio de outros.

Inicialmente, foi feito um depoimento oral de duas horas que, por seu caráter descontraído, levou-me a discorrer, informal e desordenadamente, sobre as minhas experiências e a participação daqueles companheiros que nelas estiveram inseridos. No processo de condução da entrevista, por várias vezes, fiz correlações entre acontecimentos que se deram em diferentes épocas, emitindo juízos e opiniões subjetivas e comentários e arrazoados que nos remetiam a outros momentos históricos e nos desviavam da objetividade que o trabalho do pesquisador requeria.

Optei por dar ênfase e discorrer sobre a minha própria experiência porque ela tem uma continuidade que pude acompanhar. As experiências dos que estão ao nosso lado, ao longo da vida, são sempre intermitentes. Nelas a nossa participação é sempre parcial. Há momentos que acompanhamos por estarmos próximos e outros que se dão longe dos nossos olhos, da nossa presença e, às vezes, até apesar da nossa vontade. Vivenciamos apenas alguns momentos, eventualmente, os menos importantes. Como, à época, a minha atuação não se restringia a Ouro Preto, acabei por ampliar muito o meu horizonte descrevendo e analisando situações gerais e acontecimentos nacionais.

Concluí, então, que seria interessante selecionar retificar e ordenar as idéias e os acontecimentos expostos na entrevista. Nela faltou-me a preocupação pela precisão da análise, dos conceitos e dos fatos históricos. Ao enxugar o texto, refazendo-o, eliminei tudo aquilo que, considerei, não contribuiria para uma melhor compreensão da época. Mantive, no entanto, o seu caráter abrangente e amplo, optando por não circunscrever o trabalho aos limites de Ouro Preto.

Resolvi, portanto, refazer o texto, eliminando dele, a forma de entrevista que, inicialmente, o caracterizou. Tentei responder nele, todas as questões postas pelo Otávio em suas perguntas. Omiti o que me foi perguntado e que não soube responder, evitando, assim, as especulações e imprecisões que caracterizaram algumas respostas dadas naquela oportunidade.

O período, aqui abordado, tem o seu início, em 1962, quando passei a atuar na União Mineira dos Estudantes Técnicos e Industriais e acompanha parte da minha militância política até o meu retorno ao Brasil, em 1979, quando fui Anistiado.

O início da militância

Nasci em 10 de setembro de 1948, em Belo Horizonte. Em 1961 comecei a cursar o ginásio industrial na Escola Técnica de Belo Horizonte, posteriormente Escola Técnica Federal de Minas Gerais e, hoje, Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET). À época, chamávamos ginásio, o que hoje compreende o período que se estende da 5ª à 8ª série do curso primário.

Em 1962, na segunda série ginasial, comecei a militar no movimento estudantil. Um amigo e ex-colega de classe, Vladimir Ungaretti Neto, que tinha se transferido para o Rio de Janeiro e passado a estudar na Escola Técnica Nacional, ligou-se lá à União Nacional dos Estudantes e Técnicos Industriais (UNETI) e num congresso da entidade, em Fortaleza, neste mesmo ano, indicou-me, como potencial interessado em participar da entidade. Fui então procurado pelo Alberto Christóvão, então presidente da União Mineira dos Estudantes Técnicos e Industriais (UMETI) e pelo Mateus Rubinger um velho amigo da minha família que estudava na escola. Chamado a participar daquela entidade estudantil, integrei-me na luta pela regulamentação da profissão dos técnicos industriais e, aos poucos, aproximei-me da célula do Partido Comunista Brasileiro (PCB) que controlava a entidade. Militei naquele partido e no movimento estudantil, desde os 14 anos. Nessa época tivemos companheiros com militância partidária desde muito cedo. As chamadas “bases” secundaristas eram muito jovens. Na minha faixa de idade, havia alguns outros companheiros, entre eles, o Hélcio (Pereira Fortes), que, em Ouro Preto, engajou-se mais ou menos na mesma época e o Amílcar Vianna Martins Filho, que, também, começou a militar aos 14 anos.

O golpe de 1964

Foi a partir de 1964, com o golpe de estado, que a minha participação política passou a ter uma importância maior. Até então eu participava da Secretaria de Imprensa e Publicidade da União Mineira dos Estudos Técnicos Industriais, que era um cargo de confiança do seu presidente. A partir do golpe, com o momentâneo desbaratamento do PCB, e com a intervenção policial e desativação temporária da nossa entidade representativa, comecei a atuar no sentido de reativá-la, bem como a reorganizar o Partido no movimento estudantil no estado. Neste processo, conseguimos recuperar a União UMRTI e, dela cheguei a ser o Vice-Presidente na Gestão do Heleno Batista de Oliveira, que pertencia à Ação Popular (AP). No Partido, passei a dirigir o Comitê Secundarista e a integrar a sua Seção Estudantil Estadual.

Eu tinha, através do movimento estudantil, contatos em várias cidades. Foi assim, utilizando-me dessas ligações, quase sempre através de estudantes sem vinculações partidárias, que fui obtendo informações sobre os comunistas espalhados pelo estado e restabelecendo os vínculos da organização em Minas Gerais. Eu me lembro que recontatei Montes Claros, Valadares, Juiz de Fora, Uberaba, Uberlândia e Ouro Preto.

A militância em Ouro Preto

Nessa época, conheci o Hélcio Pereira Fortes. E foi numa festividade grande, em Ouro Preto, em 1965. Na mesma oportunidade, conheci, também, o Antônio Carlos Menezes, militante independente que sempre apoiou o Hélcio, naquela cidade. Fomos apresentados, por um amigo, militante da AP e ex-secretário da UMETI, o Eduardo Marques, que após o curso técnico, tinha ido estudar na Escola de Minas de Ouro Preto. O Hélcio estudava na Escola Técnica de Ouro Preto e, portanto, logo se integrou no movimento estudantil técnico-industrial. Participou, comigo, de congressos em Minas Gerais e, juntos, participamos dos congressos da União Nacional dos Estudantes Técnicos e Industriais (UNETI), em 1966, no Rio de Janeiro e 1967, em Belo Horizonte. Desde que o encontrei, o pela primeira vez, passei a ter contato permanente com o ele. Quando ele vinha a Belo Horizonte, ficava na minha casa. Era muito comum que, lá, ficassem hospedados, os militantes do interior do estado de passagem pela capital. Minha casa era o ponto de hospedagem do Partido. Eu tinha um quarto imenso, praticamente um apartamento anexo à minha casa, com entrada independente, banheiro e sala de reuniões. Ao contrário de outros companheiros, eu contava, ainda, com todo o apoio dos meus pais, o que facilitava muito. Eu podia receber uma romaria de companheiros do interior sem ter que dar muitas satisfações. Eles ficavam lá, muitas vezes, sem que os meus parentes, sequer, se dessem conta. Era o que chamávamos um “aparelho da organização”. Só deixamos de utilizar a minha casa como local de apoio, quando, mais tarde, por motivos de segurança e compartimentação de atividades, passamos a alugar casas, menos visadas, para que, aqueles que por aqui chegavam, pudessem evitar contatos com o movimento estudantil, cujos militantes, então, já estavam extremamente visados.

Nos meus primeiros encontros com o Hélcio, fiquei impressionado. Ele tinha, depois do golpe, mantido o PCB unido em Ouro Preto, apesar de não ter qualquer contato com a estrutura do Partido. Promovera círculos de estudos e uma série de atividades de formação de militantes, de estudos políticos, de filosofia e de marxismo. Ele fez, de Ouro Preto, uma verdadeira fábrica de quadros políticos.

Quando recontatamos Ouro Preto, encontramos lá o núcleo do Partido Comunista Brasileiro mais bem estruturado do estado. Apesar do longo isolamento, eles vinham atuando no movimento estudantil tanto da Escola de Minas, como na Escola de Farmácia e na Escola Técnica. Na Escola de Minas, o Partido tinha muitos militantes. Recordo-me do César (Epitácio) Maia (atual Prefeito da cidade do Rio de Janeiro), do Lincoln Ramos Viana, do Pedro Carlos Garcia Costa, do Abelardo Magalhães, do Athaualpa Valença Padilha e alguns outros cujos nomes me fogem à memória. No movimento estudantil secundarista havia um grupo grande entre os quais estavam o Antônio Carlos Bicalho de Lana – o Cauzinho, o Marco Antônio Victoria Barros – o Play, o Toninho, irmão dele, a Marília Angélica do Amaral e o Antonio de Pádua Rodriguez. Da Escola de Farmácia só me lembro da Yone Lima, a “Marcinha”. Coordenando tudo, estava o Hélcio. Tive muitas reuniões em Ouro Preto. Eu era o assistente da Comissão Estudantil Estadual na cidade. Eu ia lá quase que semanalmente para reunir-me com eles. As reuniões se davam, em geral, em repúblicas. Lembro-me especialmente daquelas em que moravam o César Maia e o Pedro Garcia. Algumas se realizaram em lugares afastados da cidade, os quais, hoje, eu seria incapaz de localizar. Reunimo-nos também, algumas vezes, em casas de militantes, no Centro Acadêmico da Escola de Minas (CAEM), no Grêmio Literário Tristão de Ataíde (GLTA) e na casa do Hélcio. O Hélcio passou a ser um amigo que, a partir de então, viria a se encontrar comigo constantemente nos anos que se seguiram. Foi o companheiro com quem, naquela época, tive mais contato em Ouro Preto.

O movimento estudantil

A estrutura de Ouro Preto foi, a partir de então, de grande valia, para a nossa atuação no movimento estudantil. Devido à influência deste grupo no Centro Acadêmico (CAEM), passamos a ter um peso maior na União Estadual dos Estudantes de Minas Gerais (UEE/MG), até então praticamente controlada pela AP. O César Maia e a Sônia (Maria Ferreira de Lima) – que, apesar da procedência ouro-pretana, estudava em Belo Horizonte –, se elegeram membros da diretoria da UEE e foi, nesta condição, que o César foi para o Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna, onde foi preso.

Em 1966, devido à minha militância no movimento estudantil técnico industrial, após uma greve, fui expulso da Escola Técnica. Logo retomei o curso secundário e a militância, por um curto período de tempo, no Colégio Padre Lebret, também em Belo Horizonte. Foi um período curto que me traz grandes recordações. Um dia fui chamado pelo diretor da Escola, o Professor Roberto Dornas. Tinha sido expulso da Escola Técnica e preocupei-me com o motivo da entrevista. Foi grande a minha surpresa quando ouvi dele que, a partir de então, ele contribuiria, todos os meses,
com uma soma em dinheiro para a luta contra a ditadura. Até hoje sinto um imenso orgulho de ter sido o emissário desta contribuição. A militância acabou por afastar-me dos estudos e, só vim a terminar o curso secundário no exílio após deixar, definitivamente, o Brasil.

O VI Congresso do PCB

Naquela época, vivíamos as discussões que precederam o VI Congresso do PCB. Nas discussões, polarizaram-se duas grandes vertentes. A luta armada se contrapunha à resistência pacífica à ditadura. Como conseqüência, foram surgindo, nos estados, diversos grupos dissidentes. Os militantes jovens, principalmente provenientes do movimento estudantil, com apoio de alguns dirigentes do Comitê Central como o Mário Alves (de Souza Vieira), o Apolônio de Carvalho e o Carlos Marighella, defendiam a necessidade de se partir para a formação de um exército para derrubar, pelas armas, o governo militar. Outros, que compunham a maior parte do Comitê Central do Partido, defendiam o aprofundamento de uma resistência pacífica através do fortalecimento do movimento popular. Nesta época começamos a nos antecipar ao rompimento com o PCB e montamos o que chamamos de Comitê Estadual Paralelo. Dele fazíamos parte o Mário Alves, Mário Roberto Galhardo Zanconato (Xuxu), que pertencia à sessão estudantil estadual e era o líder do Partido no movimento estudantil universitário, o Gilney Amorim Vianna, que nesse momento assume o contato com o pessoal do movimento operário, o José Júlio (Araújo) e eu, que dirigia o Partido no movimento estudantil secundarista e detinha, pelo trabalho que tinha feito, o contato com os grupos do interior do estado. A partir daí, a gente começa a montar, no movimento estudantil, uma estrutura voltada para a luta armada e a planejá-la. Quando os membros da Corrente Revolucionária do PCB, em Minas, fomos expulsos do Partido, já contávamos com uma estrutura partidária funcionando. Passamos a atuar como a Corrente Revolucionária de Minas Gerais.

Os objetivos da luta

A nova organização estabeleceu, como objetivo estratégico, combater a ditadura e constituir um governo nacionalista e democrático. A nossa proposta coincidiu com a dos companheiros paulistas que liderados pelo Carlos Marighella tinham deixado o Partido. Eles fundaram a Ação Libertadora Nacional (ALN), que, apesar do paralelo que se pode traçar entre o seu nome e o da Aliança Nacional Libertadora (ANL) em 1935, teve o seu nome escolhido com o intuito de se referir à libertação do país de interesses estrangeiros e da ditadura. No fundo, a saída do Partido, não representou uma quebra de visão quanto ao que queríamos, ou seja, uma sociedade mais voltada para os interesses nacionais, mais justa e democrática. A grande divergência não se deu quanto aos objetivos a serem alcançados, mas quanto aos métodos a serem utilizados para alcançar esses objetivos. Defendíamos que o único instrumento com perspectivas reais de derrubar a ditadura era a luta armada. O Partidão, como nós nos referíamos ao PCB na época, achava que, por não termos força suficiente para este embate, deveríamos criar uma ampla frente política de repúdio à ditadura e que necessariamente acabaria por derrotá-la. A verdade é que a história demonstrou muito mais vigor e eficiência nesta última estratégia.

Víamos os militares como autocratas sem sensibilidade social e a serviço de interesses externos. Hoje, penso que estávamos, pelo menos parcialmente, equivocados nesta análise, ao considerarmos os militares representantes dos interesses norte-americanos no Brasil. É lógico que a ditadura foi implantada com o apoio dos Estados Unidos. Sabemos, que houve até disponibilização de armas pelo governo norte-americano para conter eventuais focos de resistência ao movimento militar. Tudo indica que houve, até mesmo, intenção, por parte dos Estados Unidos, de enviar tropas de apoio caso se fizesse necessário. Mas, os militares, como os vejo hoje, com olhos mais isentos, sempre foram muito nacionalistas. A nossa estratégia, à época, era unir forças de todos os setores da sociedade que concordassem em derrubar a ditadura, derrotar os Estados Unidos e implantar um governo democrático e nacionalista, mas isto, não era fácil.

A política de alianças

Vivíamos uma época de muita acomodação. A população em geral apoiava a ditadura. A oposição à ditadura exigia, até mesmo, um certo nível de clandestinidade. Não era incomum ser denunciado por um vizinho. Muito pouca gente militava na luta contra a ditadura ou estava convencida da sua necessidade. Apesar de que muitos o creiam, não se pode dizer que alguém foi contra a ditadura por ter sido estudante naquela época. A maior parte dos estudantes apoiaram o movimento militar de 1964. Precisávamos de palavras de ordem que mobilizassem as pessoas e, aos poucos, as colocasse em choque com a ditadura. Era necessário ganhar as pessoas mostrando que apoiávamos os seus movimentos reivindicatórios e nos identificávamos com eles. Penso que o grande objetivo da esquerda, à época, foi começar a despertar a oposição à ditadura demonstrando que ela não representava os anseios do país. Defendíamos as reivindicações populares e corporativas. Atuávamos em uma ampla faixa que ia do combate ao arrocho salarial à defesa da regulamentação de profissões. Algumas em clara consonância com os princípios defendidos pela esquerda, outras, nem tanto. Achávamos que, também, o apelo nacionalista empolgaria à maioria. Não podemos, no entanto, iludir-nos. Uma oposição mais popular e generalizada contra a ditadura, só foi se cristalizando, no Movimento pela Anistia e, logo depois, no movimento das Diretas- Já. O nacionalismo que ganhara um grande empurrão com as lutas de libertação nacional durante e após a II Guerra Mundial e, especialmente com a guerra do Vietnã, jamais foi um carro chefe em transformações políticas e sociais de vulto no Brasil. A única grande exceção foi a criação da Petrobrás e o monopólio estatal do petróleo no Brasil. Mas, mesmo assim , os comunistas, que desde o século 19 divulgaram os ideais da solidariedade internacional, acabaram por adotar o discurso nacionalista que se popularizou junto à esquerda a partir dos anos 1950. Hoje, me coloco numa posição muito crítica em relação a este nacionalismo exarcebado, que muitas vezes não passa de cortina para justificar a nossa incapacidade de acabar com o nosso atraso e as nossas carências sociais. Nunca somos responsáveis pela não implantação das transformações de que necessitamos. Jogamos a culpa nos entraves impostos pelo imperialismo e acabamos por isentar-nos do papel de sujeitos da nossa própria história. É, com os discursos nacionalistas, que se movem as mais bárbaras guerras ao redor do mundo. No Brasil, nós sempre tentamos usar táticas populistas para fortalecer-nos no movimento social. Poucas vezes fizemos mais do que reforçar os nossos corporativismos e as injustiças das classes dominantes. O nacionalismo é uma ideologia que, considero, sempre teve aspectos negativos e, no fundo, foi inócuo para a formação de uma consciência social em nosso país.

As organizações políticas

As organizações políticas de expressão que, naquela época, se opunham à ditadura eram o PCB, a AP, o Partido Comunista do Brasil (PC do B) e a POLOP. Nosso interesse em ampliar a luta pela democracia sempre passou pela convicção de que o bom relacionamento entre estas organizações era fundamental. Enquanto militantes do PCB, defendíamos uma política de estímulo à frente única, na Corrente jamais romperíamos com esta prática. Sempre estivemos convencidos da necessidade de se fazer alianças estratégicas com setores políticos que compartilhavam os nossos anseios de justiça social.

Sempre tivemos boas relações com a AP e a Ação Católica. Até o golpe de 1964, havia uma certa rivalidade política entre católicos e comunistas no movimento estudantil. Ainda antes do golpe, a AP era uma organização expressiva nas escolas. Mesmo assim, estabeleci, naquela época, relacionamentos com militantes daquelas organizações, que mantenho até hoje. Este é o caso do da Maria Clotilde Vieira Ayer Quintela, do Maurício Libânio e do Fernando Massote, então, presidente da União Municipal de Estudantes Secundários (UMES). Esta rivalidade se dava, em grande parte, pela relutância da Ação Católica e da AP em fazer concessões que dessem prestígio ao PCB no movimento de massas. Dificilmente a AP aceitava fazer parte de uma diretoria de uma entidade se não fosse dela a presidência e os principais cargos. Desta forma, até o golpe, quase sempre, a cada congresso ou eleição, nos tornávamos oposição ao movimento estudantil católico. Quando nos deparamos com o golpe de 64 tivemos que nos “fazer de católicos” para conquistar o apoio da JIC (Juventude Independente Católica) e montar um movimento de solidariedade com os presos políticos e suas famílias. No bairro Santa Lúcia, próximo à Cidade Jardim, em Belo Horizonte, havia um grupo católico que ficou muito sensibilizado com a situação da família da Nelma, uma companheira que morava no bairro e que teve o seu pai preso logo após o golpe. Eles ofereceram ajuda a ela e nós os procuramos para ampliar o trabalho de forma a atingir um grupo maior de famílias de presos políticos. Para convencê-los, começamos a freqüentar os locais que eles freqüentavam, as missas freqüentadas por eles e, finalmente, conseguimos montar um grupo de apoio aos presos políticos que atendia tanto aos familiares dos militantes do Partido como aos da AP e de outras organizações. Éramos meninos, estudantes secundaristas com idades que variavam entre os quinze e os dezoito anos. Tínhamos o caminho mais livre que os adultos, mais mobilidade. Juntos com os companheiros católicos arrecadávamos dinheiro, fazíamos festas, coletávamos comida e roupas, ou as comprávamos para distribuir pelas famílias dos presos políticos. Às vezes, íamos à Penitenciaria de Neves, onde havia um grande número de companheiros confinados. O objetivo era conversar um pouco, dar notícias da família, de como iam as coisas aqui fora e levar-lhes livros e jornais. Eu me lembro da noite de natal, da passagem do dia 24 para o dia 25 de dezembro de 1964, quando organizamos uma ceia para os presos, lá levamos um padre que rezou uma missa. Naquela noite, nos deram uma permissão especial e todos dormimos na penitenciária. Naquela noite, dormi na cela em que estivera preso o Marcos Rubinger, professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (FACE/UFMG), que estava vaga porque ele tinha conseguido uma licença de um ou dois dias para passar o natal com a família. Na verdade, a licença foi um estratagema para que ele escapasse. Naquela noite, enquanto ceávamos com os presos e a família dele simulava um banquete de natal, ele fugiu pelos fundos da casa, entrou num carro que o esperava e foi para o Rio de Janeiro. Conta-se que na manhã seguinte, enquanto policiais que lá estavam para vigiá-lo ainda degustavam vinhos, ele já estava na Embaixada da Bolívia, asilado.

Em suma, apesar das divergências, na maior parte do tempo, prevaleceu o bom relacionamento entre nós e a esquerda cristã. Buscar um bom relacionamento, com aliados potenciais, sempre foi uma orientação das organizações em que militei e dela nunca discordei. Sempre me relacionei bem com a AP e a Ação Católica, assim como sempre tive um bom contato com as outras organizações não cristãs, como era o caso da POLOP e do Partido Comunista do Brasil. Na POLOP, tínhamos contato quase diário com companheiros como o Carlos Alberto Soares de Freitas, o Ângelo Pezzuti da Silva, Apolo Heringer Lisboa, o Murilo Silva, o Marco Antônio de Azevedo Meyer, a Dilma Rouseff (atual Ministra de Minas e Energia) e o José Aníbal (ex-Presidente do PSDB) e, no Partido Comunista do Brasil, apesar dos antagonismos históricos que sempre dificultaram o relacionamento dos dois Partidos Comunistas, nunca fizemos da orientação partidária um princípio e, sempre, mantivemos um contato próximo e fraterno com os seus militantes. Dentre eles, lembro-me do Fernando Sanna Pinto, do Luiz Fazitto e do Jaiminho.

O José Serra era Presidente da União Nacional dos Estudantes em 64 e era militante da AP. Em Ouro Preto, antes do golpe, o Diretório Acadêmico da Escola de Minas (DAEM) também estava sob controle daquela organização. No entanto, a presença e o vigor da AP no Movimento Estudantil, até 1964, não encontrou paralelo nas associações de classe. Que eu me lembre, à exceção do fenômeno Dazinho (José Dazinho Gomes Pimenta) que liderava os trabalhadores da Mineração Morro Velho, a Ação católica não era tão forte nos movimentos sociais. No plano nacional, muito se falava das Ligas Camponesas do Francisco Julião e Dos Grupos dos Onze do Leonel Brizola. Em Minas, o PCB controlava o Sindicato dos Bancários, cujo presidente era o Armando Ziller, o Sindicato dos Têxteis com o Sinval Bambirra, o movimento de posseiros em Valadares com o Chicão, só para citar alguns exemplos. É importante lembrar que, até que o Papa João XXIII tornasse a Igreja Católica permeável a idéias políticas de cunho social, a instituição tinha se caracterizado, por uma posição extremamente conservadora. Não se pode esquecer o papel fundamental desempenhado pela “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, que foram, talvez, o maior instrumento de mobilização de massas para popularizar a idéia da necessidade do golpe de estado de 1964.

Apesar destas considerações, penso que foi esta posição tática mais ampla que nos diferenciou de outras organizações políticas que, antes do golpe lutaram pelas reformas de base e, depois, contra a ditadura. O PCB, a Corrente em Minas e, depois, a ALN, sempre defenderam um projeto de governo mais amplo e não de um projeto socialista que quisesse implantar uma ditadura do proletariado. Conseguimos aglutinar ao nosso redor sindicalistas, empresários e até os padres dominicanos. A própria morte do Carlos Marighella é uma prova disto. Ele foi localizado e morto pela repressão a partir de um encontro que tinha com frades dominicanos e que foi denunciado. Nós tínhamos um programa que, realmente, priorizava e se limitava à luta por um governo democrático, contra a ditadura, pela independência nacional e contra o imperialismo.

As lideranças políticas

É curioso. A esquerda brasileira sempre teve muita dificuldade em fazer alianças e, até mesmo, de se unir em torno de um partido e nele permanecer. Temos uma tradição cultural muito personalista e, atrás de divergências que umas vezes caracterizamos como táticas e outras como estratégias, sempre estiveram as ambições pessoais de alguns dos seus líderes. Durante o exílio, no Chile, surgiu uma organização que se denominou Ponto de Partida. Cada vez que ela crescia um pouco, se dividia formando um novo Ponto de Partida que recebia o seu número de ordem junto ao nome. Conta-se que, no momento do golpe, já havia o Ponto de Partida 22. Esta tradição política personalista vem, ao longo da nossa história, predominando, não só, nos grupos políticos tradicionais, mas, também, na esquerda.
Quando começamos discordar do PCB apesar de estarmos organizados nacionalmente, cada grupo foi se fechando em seu Estado e se transformando em um núcleo independente. Foi um movimento com características que poderíamos chamar de “confederativo”. As organizações surgidas das diversas dissidências se limitavam aos seus estados de origem e se estruturavam em torno de líderes locais, quase todos provenientes do movimento estudantil. Só os núcleos iniciais da ALN e do PCB Revolucionário (PCBR) o primeiro, liderado pelo Carlos Marighella, e o segundo, por Apolônio de Carvalho e o Mário Alves, representavam grupos de pessoas mais velhas, com a experiência política de gerações anteriores à nossa.

Em Minas, a Corrente Revolucionária do PCB, um grupo formado por estudantes e trabalhadores, à época, liderados pelo Mario Roberto Galhardo Zanconato, então estudante de medicina, deu origem à Corrente Revolucionária de Minas Gerais.

Em São Paulo, o Jeová (de Assis Gomes) e o José Dirceu (de Oliveira e Silva), lideraram uma das dissidências do Partido. Era uma organização estudantil afastada do Carlos Marighella, apesar de ambas terem surgido do Partido Comunista em São Paulo. A dissidência estadual de São Paulo era um corpo, e o grupo advindo do Comitê Estadual de São Paulo com os velhos comunistas era outro.

No Rio de Janeiro, a dissidência estudantil gerou três grupos. Os Comitês Universitários do Rio de Janeiro e do Estado da Guanabara deram origem a dois grupos distintos. Quando o primeiro que, no Estado do Rio, tinha assumido o nome de Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), foi desbaratado pela repressão, o segundo, no então Estado da Guanabara, liderado pelo Wladimir Palmeira e pelo Franklin Martins, que era outra organização, resolveu assumir o mesmo nome.

Já os estudantes secundários do Estado da Guanabara, liderados pelo Luiz José da Cunha – (o Crioulo) e pelos irmãos Iuri Xavier Pereira e Alex de Paula Xavier Pereira, do qual participavam o Carlos Eugênio Paz, o Sérgio Granja e a Yara Xavier Pereira, entre outros, por seu contato pessoal com o Carlos Marighella, logo se integraram à organização dirigida por ele.

No nordeste, um grupo de antigos militantes, provenientes, principalmente, de movimentos camponeses, fundou o Partido Comunista Revolucionário – PCR, uma organização de idéias maoístas. Entre os seus dirigentes, estava o Ricardo Zaratini.

O movimento operário e sindical

Após o rompimento com o PCB, em dezembro de 1967, a Corrente passou a se dedicar, quase que totalmente, à preparação para a luta armada. Não se pode, no entanto, esquecer que, junto ao movimento popular, a Corrente teve grandes méritos em relação às outras dissidências que adotaram a luta armada no resto do país. Priorizávamos o projeto da luta armada, mas nos mantivemos muito cônscios da necessidade de uma vinculação como movimento social. Sem perdermos os vínculos com o movimento estudantil, mantivemos, e aprofundamos, os nossos contatos no movimento operário. Trouxemos de Ouro Preto para Belo Horizonte, para dar um apoio na estruturação do movimento sindical, aqueles que considerávamos os mais bem preparados da organização. Queríamos que se fizesse na Cidade Industrial um trabalho similar ao que o Hélcio já tinha feito em Ouro Preto. Alugaram-se uma ou duas casas em Contagem. Vieram o Hélcio, o Cauzinho, o Marco Antônio Victoria Barros e uma turma grande para assumir o trabalho. Editou-se um jornal, cujo nome não me recordo, para distribuição nas portas das fábricas, com o objetivo de incitar uma reação operária à ditadura. A partir dali começamos a intensificar a nossa influência no movimento sindical e atingimos uma posição importante no Sindicato dos Metalúrgicos, controlando a sua secretaria, cuja titular, passou a ser a Imaculada, militante nossa no setor. Chegamos a ser a organização mais influente e respeitada no sindicato. A partir daí foi deflagrada a primeira greve operária no Brasil após o golpe de 1964. Foi um exemplo e um tapa na política de arrocho salarial da ditadura. Logo depois, houve uma segunda greve e, em ambas, obtivemos contundentes vitórias. Foram greves que deixaram a repressão perplexa e sem ação. Penso que, até hoje, se subestima o papel destas greves na decisão da ditadura de editar o Ato Institucional número 5 (AI-5). O então Ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, teve que vir a Belo Horizonte e humilhar-se numa negociação direta entre o Governo e as lideranças do movimento. O Jarbas Passarinho teve que enfrentar um duelo verbal, dentro do Sindicato, com as lideranças da instituição, numa espécie de assembléia, onde os líderes mais importantes do movimento estavam presentes. Houve, até mesmo, um debate público entre o Hélcio e o Ministro. É bem verdade que, apesar de não ser um homem que trabalhasse na fábrica, de ser um quadro da Corrente trabalhando dentro do movimento sindical e dentro do movimento dos metalúrgicos, ele, de fato, tinha se transformado em uma liderança entre os trabalhadores.

A partir daí, surgem greves operárias em Osasco e em outras partes do país. As greves começam a pipocar, principalmente, no estado de São Paulo. Mas o mérito, de ser pioneira, coube às Minas Gerais. Um mérito que se estende à Corrente que esteve à frente do movimento que criou as condições que propiciaram as duas greves. Não se pode esquecer que houve, também, um grande envolvimento do pessoal da POLOP e da AP. Nesta greve se destacaram alguns outros militantes da Corrente. A Imaculada, à época secretária do Sindicato dos Metalúrgicos e a sua irmã Efigênia foram peças chave no planejamento e na deflagração do movimento. Foi também um militante nosso, o Antônio Maria Claret Torres, que disparou o alarme de incêndio na RCA Victor e sinalizou o início da paralisação para toda a Cidade Industrial.

A organização militar de resistência

Nesta época, eu estava totalmente dedicado à montagem de uma estrutura de apoio para a luta armada em Minas Gerais. Eu não estava vinculado ao trabalho junto ao movimento social. Tinha informações da Cidade Industrial por fazer parte da direção da organização, mas desconhecia detalhes do que estava acontecendo por lá. Estou seguro, no entanto, que este trabalho só pôde ser feito, graças à equipe montada pelo Hélcio em Ouro Preto.

Quando começamos a estruturar a Corrente, definimos o que chamávamos eixos estratégicos para a luta contra a ditadura no estado de Minas Gerais. Eram, principalmente, cidades com unidades militares de peso e confluências de estradas importantes, capazes de dividir o país e criar problemas de abastecimento em caso de bloqueio. Entre as cidades que definimos como estratégicas, no estado, me lembro de Belo Horizonte, Governador Valadares, Montes Claros e Juiz de Fora. Nesta última ficava o comando da IV Região Militar. Em Juiz de Fora tínhamos um grupo muito bem organizado. Deles, me recordo do Marco Antonio, do Rogério de Campos Teixeira e dos irmãos Roberto e Antônio Guedes. Penso que todos eles foram presos. Em Montes Claros, também nos apoiamos na estrutura existente, dirigida pelo Porfírio e por um marceneiro que chamávamos “Nego” e de cujo nome já não me lembro. Em Valadares, até então tínhamos o José Adão coordenando as nossas atividades. Trouxemos o José Adão para Belo Horizonte e enviamos para lá o João Domingos Fassarella, então estudante de filosofia. O João Domingos nunca mais deixou Valadares e hoje, filiado ao PT, já foi deputado federal representando a região e prefeito da cidade por vários mandatos.

As ações armadas

Nesse momento, o Mário Alves saiu de Minas Gerais e foi para o Rio. Não sei se ele considerou os que aqui estavam, capazes de dar prosseguimento à luta sem o seu apoio ou se pensou que, por nossas práticas, na militância estudantil, seríamos incapazes de ampliar a organização e dar-lhe uma abrangência nacional capaz de enfrentar militarmente a ditadura.

Em janeiro de 1968, se eu não me engano, nós tivemos um encontro em São Paulo. Reunimo-nos o Xuxu, José Júlio, Gilney e eu com o Carlos Marighella, o Joaquim Câmara Ferreira (Toledo), o Farid e o Ricardo. Destes dois últimos, não me recordo o sobrenome. Nesta reunião, estabelecemos um caminho, definindo pontos comuns que nos encaminhariam à formação de uma única organização, num futuro próximo. Essa organização, acabou sendo a ALN. Deste momento em diante, nos aproximamos, cada vez mais, dos comunistas de São Paulo, liderados pelo Carlos
Marighella e pelo Joaquim Câmara Ferreira e, junto com eles, começamos a discutir e desenvolver um projeto de luta armada num plano mais abrangente, de alcance nacional.

Esta postura, de aproximação com o Carlos Marighella, levou-o a enviar-nos alguns instrutores para dar-nos treinamento aqui em Minas. Posteriormente, ele nos ofereceu a oportunidade de fornecer instrução militar para os nossos militantes em Cuba. Até então, as nossas possibilidades de treinamento eram muito limitadas. Tínhamos amigos e companheiros fazendeiros nas regiões de Curvelo, Corinto, Itabira e Ferros. Íamos para as suas fazendas e, lá nos limitávamos às práticas de tiro ao alvo e exercícios táticos elementares de emboscadas. Baseávamo-nos em alguns manuais retirados do exército através de pessoas que faziam o serviço militar, como o Márcio Lacerda e o Arnaldo Rocha Cardoso. Ambos tinham sido colegas de Escola Técnica. Posteriormente, através de companheiros que já tinham estado em Cuba, tivemos um pequeno curso de explosivos e, aos poucos, o fomos repassando aos companheiros do interior. Era um treinamento orientado e executado por gente muito inexperiente. Ninguém com experiência militar real. Nossa estrutura era muito amadora.

As ações, planejadas e executadas pela Corrente, espelharam a nossa falta de experiência. Foram poucas, mal planejadas e de resultados duvidosos. Da maior parte delas, tenho informações a partir de terceiros, já que delas não participei. Já não estava no Brasil. Mas, apesar disto, fui acusado, pela polícia, de ter participado de algumas. Cheguei a participar de alguns planejamentos de ações que só se realizaram após a minha saída. Houve assalto a uma loja de armas da qual não se levou nem um só revolver e de onde se saiu com um companheiro ferido. Houve assalto a uma pedreira para a obtenção de explosivos que jamais foram utilizados. Em um assalto a banco, com ocupação da região central de Ibirité, na região metropolitana de Belo Horizonte, foram presos dois companheiros por não se ter planejado a rota de fuga.

Apesar de ter sido peça freqüente nos depoimentos que constam do inquérito da Corrente, hoje em mãos do Arquivo Público Mineiro, penso que só fui condenado no inquérito político por ter fundado e dirigido a Organização. Pelo menos, esta é a conclusão a que cheguei após examinar alguns recortes de jornais da época que chegaram às minhas mãos. Penso que não fui condenado em nenhum processo que se referisse a ações específicas.

O treinamento

Este amadorismo nosso, levou o Mariguella a idealizar o Centro de Aperfeiçoamento do Guerrilheiro e, na Conferência da OLAS (Organização Latino-Americana de Solidariedade) em 1967, me parece, fez um acordo com o Partido Comunista Cubano para que o Centro se estabelecesse naquela ilha. Foi dentro da perspectiva da correção destas deficiências que, por determinação da organização, fomos enviados para Cuba, no final de 1968. Lá estivemos, por um período de quase dois anos, preparando-nos, para a luta armada que se avizinhava. Junto comigo, do nosso grupo, em Minas, foram também o (Antônio Carlos Bicalho de Lana) Cauzinho, o José Júlio e o José da Silva Tavares que, mais tarde, se mostrou um traidor infiltrado no movimento.

Quando eu saí de Minas e, junto com o Cauzinho, fui para São Paulo, em setembro de 1968, apesar de conhecido, ainda não tinha sido envolvido em qualquer inquérito policial. Quando, em janeiro, a Corrente foi desmantelada pela polícia e a maior parte dos nossos companheiros presos, eu já estava em Cuba. Cheguei lá na véspera do natal daquele ano. Fomos primeiro para São Paulo e logo para uma casa de praia em Moganguá. A idéia era cair no esquecimento das pessoas, “esfriar”, enquanto, em São Paulo, se preparava a nossa documentação. O Cauzinho era menor de idade e nós tivemos que “emancipá-lo”. Arrumou-se um militante mais idoso que se apresentou, no cartório, documentado como se fosse o pai dele. Eu já era emancipado. Tiramos os passaporte e fomos para o Rio de Janeiro. De lá saímos do Brasil com os nossos nomes verdadeiros. O Ricardo, um dirigente paulista mais velho, cuidou de todo o processo de documentação. Ele subornou um funcionário da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, para que os passaportes saíssem mais rapidamente e se fizesse vista grossa à documentação do Cauzinho. Nesta época, era muito mais fácil de se corromper policiais em São Paulo, do que fazê-lo em Minas.

Partimos para Cuba, no dia 13 de dezembro de 1968. O Cauzinho e eu saímos do aeroporto do Galeão, com destino à França, no mesmo dia em que foi decretado o Ato Institucional número 5. De lá fomos para a Itália. Em Roma, por acaso, nos encontramos na rua com dois militantes que o Cauzinho tinha conhecido em São Paulo: uma médica cujo nome de guerra era Rosa e, outro, bem mais velho que nós, que em Cuba apelidamos de Coronel. A partir de Roma seguimos viagem, juntos, até a Thecolosváquia. De lá fomos para Cuba passando pelo Canadá. Na época era um caminho meio complicado porque não podíamos utilizar o passaporte brasileiro para ir para Cuba. Atravessávamos o Atlântico com passaportes cubanos e lá chegávamos como se fossemos cidadãos naturais do país. Entrei na ilha com o nome Ramon Arias Fernández. Em Cuba, pudemos participar de um treinamento com eficiência militar. Estudamos explosivos, treinamos e simulamos guerrilha urbana. O treinamento rural nos ensinou táticas militares básicas de como caminhar na floresta, de como sobreviver e acampar. Fazemos longas caminhadas, aprendemos medidas de precaução para não deixarmos rastros, técnicas de observação, treinamos assaltos a guarnições militares, aprendemos como evitar cercos e os métodos que deveríamos utilizar para rompê-los e éramos instruídos no manejo de armas de todos os tipos. Eu penso que não existe arma de infantaria que não tenhamos manejado. Familiarizamo-nos no uso de armas leves, bazucas, morteiros e até canhões. Tivemos, também, treinamento para fabricação de algumas armas. Isto é conhecido no Exército e consta, inclusive, nas nossas fichas do Serviço Nacional de Informações (SNI). Não adianta discutir se foi um erro estratégico nosso ou dos cubanos. Temos, no entanto, que ser fiéis à história.

Apesar de agradecidos pelo apoio que nos deram, o nosso relacionamento com os cubanos nunca foi dos melhores. Muitos de nós procurávamos manter a nossa independência afirmando-nos como membros de uma organização estrangeira, com uma relação fraternal, mas, totalmente desvinculada do Partido Comunista daquele país. Nunca tive dificuldades em manter esta postura, mas, às vezes, a relação era tensa. Havia, também, entre os próprios brasileiros, aqueles que consideravam a nossa postura pouco revolucionária. Aliás, todos os mineiros mantiveram uma postura de independência. O Cauzinho era muito admirado pelos nossos professores. Durante todo o período de treinamento, ele se destacou. No campo de obstáculos, ele tinha, sempre, cronometrado, o melhor tempo. Era o melhor atirador e o mais resistente nas marchas. Um modelo de precisão no seu desempenho, no esforço e na dedicação. Quase virou uma lenda.

Havia, por exemplo, uma parede, para ser escalada, simulando uma casa de três andares. Havia janelas em todos eles. No andar superior, uma janela e umas cordas. Tínhamos que escalar até a última janela e saltar do terceiro andar. Tem uma técnica para fazer isto. Segura-se o marco inferior da janela da qual se vai saltar com a mão esquerda, girando o corpo para baixo até bater com a mão direita na parede, entre o andar em que se está e o andar inferior. Solta-se, então, o corpo para cair de pé sem se machucar. Doem as solas dos pés, mas se cai inteiro e, em princípio, não se quebra nenhum osso. Poucos foram os que se aventuraram a chegar ao andar superior. Os que lá chegavam, logo desciam pela corda e pulavam do segundo. A maioria não se dava ou trabalho, subia um andar e pulava de lá mesmo. O Cauzinho sempre pulava do último lugar e era, invariavelmente, o mais rápido. Ele contava com uma enorme força física. Era um exemplo para todos. Este foi o motivo para que se considerasse, importante a sua volta para o Brasil entre os primeiros a retornarem. Havia uma certeza de que ele seria um líder guerrilheiro ímpar. O Cauzinho e eu fizemos, juntos, todos os cursos, mas ele voltou bem antes de mim. Antes da volta, fomos transferidos para uma casa que ficava numa praia chamada Santa Maria. Desta praia foi saindo o pessoal. De lá saí com o Iuri Xavier Pereira para ficar, por umas semanas, aquartelado numa casa em Havana e, de lá, nós partimos.

A oferta de treinamento foi estendida, por Carlos Marighella, a quase todos os grupos. A idéia dele era que aqueles que para lá fossem, quando voltassem, o fariam integrados à sua organização. Considero que ele agiu de uma forma correta, porque, no meio de tamanha atomização, quase todos os que fomos para Cuba, ao lá chegarmos, já nos considerávamos militantes da ALN, seguros de que nós seríamos os motores da convergência dos diversos grupos no sentido de integrá-los.

Quando houve a onda de prisões que desmantelou a Corrente em Minas Gerais, o Hélcio, a Sônia, o Gilney, o Eustáquio, a Efigênia e outros militantes, que conseguiram fugir, foram para o Estado do Rio de Janeiro e, lá, já chegaram inserindo-se na estrutura da ALN.

É importante frisar que, desta forma, o Carlos Marighella conseguiu aproximar-se de muita gente, das mais diversas procedências no Brasil inteiro que, até então, estava totalmente dispersa. Em Cuba, o nosso grupo era composto de companheiros de Brasília, do Rio de Janeiro, de Pernambuco, de São Paulo e de Minas. Com o seqüestro do embaixador norte-americano, muita gente desgarrada, acabou optando por aglutinar-se em torno dele. Muitos dos que haviam saído das prisões do Brasil em troca do embaixador norte-americano, Charles Elbrick, em Cuba, também se engajaram na sua estrutura. O seqüestro, executado pelo MR-8 e pela ALN, impressionou a todos e muito nos fortaleceu junto aos grupos políticos, até então, céticos quanto nossas às perspectivas de vitória.

Em Cuba, o José Dirceu, o Jeová e a turma da dissidência estudantil de São Paulo integraram-se inicialmente à ALN para logo depois romperem com ela e fundarem o Movimento de Libertação Popular (MOLIPO). Talvez, tenham se integrado por causa do treinamento, e, no meio do processo, tenham se desvinculado para formarem a sua própria organização. Nela, eles incorporaram, inclusive, pessoas que eram oriundas do primeiro grupo de combate da ALN, o Grupo Tático Armado de São Paulo (GTA). Este foi o caso do (Carlos Eduardo Pires) Fleury e alguns outros. Hoje, eu vejo esta dissidência, dentro desta tradição personalista, que sempre caracterizou a nossa esquerda.

Por outro lado, este processo teve exceções. A dissidência egressa da POLOP, por exemplo, nunca se aproximou da ALN. Inicialmente formou a organização denominada Comandos de Libertação Nacional (COLINA) e, juntando-se à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), uma organização composta, quase exclusivamente de militares, formaram a Vanguarda Armada Revolucionária - Palmares (VAR-PALMARES). Houve, na ALN, uma tentativa de aproximação com a Vanguarda Popular Revolucionária. Quem estava encarregado deste contato com os militantes daquela organização em São Paulo, era Marco Antônio Brás de Carvalho (Marquito), que acabou sendo preso e morto ao procurar, em casa, um companheiro que havia faltado a um encontro. Penso que ele foi o primeiro militante da ALN a ser morto. Era um homem muito destemido. Conta-se que entrou na casa e identificou, lá dentro, um delegado. Imobilizou-o e foi morto, pela costas, por outros policiais que lá estavam.

O retorno

Voltei para o Brasil no final de 1970. Viajei com um passaporte que recentemente descobri, era conhecido da polícia. Desconheço como, mas a repressão já estava informada sobre o documento que eu estava utilizando para entrar no país. Era um passaporte de um militante paulista, que nunca cheguei a conhecer chamado Leonel Itaussú de Almeida Mello. A informação consta no relatório que o SNI fez a meu respeito e que me foi passado pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). O retorno foi semelhante à ida. Saímos de Cuba e fomos para a Tchecoslováquia. De lá para a Itália e, após umas semanas no Chile, fomos para o Uruguai. Lá, constatamos estar sendo seguidos, quando estávamos por ingressar no nosso país. Eu viajava acompanhado de um companheiro carioca chamado Sérgio Granja e de uma paulista de nome Darcy cujo sobrenome eu nunca soube. Era uma nissei. Quando estávamos em Montevidéu, o Sérgio constatou que estávamos sendo seguidos. Naquela oportunidade, quando ele me falou da sua preocupação, acreditei que ele estivesse sendo vítima de uma paranóia. Ele se irritou, pegou um papel e, nele, fez uma anotação boba ou um desenho, não me lembro, mostrou-me, amassou-o e o jogou na lixeira da rua. Andamos um trecho e quando nos voltamos a lixeira estava no chão e quatro homens agachados ao redor dela catavam o lixo espalhado. Fizemos um movimento displicente de quem está conversando sem prestar atenção no que está acontecendo ao redor. Foi neste dia que notamos que estávamos sendo observados. Parece que eles não chegaram a ver que nós os tínhamos visto. Continuamos caminhando. Tínhamos um encontro marcado com a Darcy e chegamos à conclusão de que eles, provavelmente, tinham iniciado a perseguição antes de nos separarmos dela. Acreditávamos que poderíamos ir ao encontro sem que nos prendessem. Deduzimos que estariam esperando que a gente desse algum passo em falso que os ajudasse a localizar alguma estrutura de luta armada no Uruguai. Já podiam ter nos prendido antes e não o fizeram. Voltamos ao Hotel, queimamos as mensagens que trazíamos de Cuba e que tínhamos escondido nas roupas. Munimo-nos de uma tranqüilidade que, na verdade, não tínhamos e nos dirigimos ao encontro com a Darcy. Dissemos a ela que estávamos sendo seguidos e decidimos ir ao seu encontro para adverti-la de que teríamos que entrar numa embaixada ou fazer alguma coisa para não sermos presos. Posteriormente, já no Chile, ela alegou que nos tinha acompanhado sob pressão. Hoje, com as informações fornecidas pela ABIN, tenho certeza que fomos seguidos. O documento enviado por aquela agência não foi explícito. Sugeriu, no entanto, ser eu o contato da ALN com os Tupamaros no Uruguai, dando imensa importância à minha estada naquele país. Concluí, portanto, que eles realmente nos acompanharam, de perto, quando lá estávamos. Hoje está tudo muito claro, mas, à época, até mesmo após constatarmos a ação da polícia, e voltarmos para o Chile, houve momentos, que cheguei a ter dúvidas.

Naquele dia, após decidirmos entrar na embaixada do Chile, planejamos com cuidado para chegarmos ao endereço que havíamos obtido em um catálogo telefônico. Em frente à embaixada, constatamos que ela estava fechada. Por acaso, logo depois, caminhando sem saber ao certo o que fazer, passamos pelo Partido Democrata Cristão que estava aberto. Era um partido que pertencia à Frente Ampla do Uruguai, uma coligação progressista que postulava a presidência do país. A discussão foi rápida e a decisão unânime sem contestações. Entramos na sede do Partido e dissemos que estávamos fugindo do Brasil, que estávamos sendo seguidos e tínhamos medo de ser presos. Pedimos que nos dessem apoio para irmos para o Chile, montando-nos uma escolta de jornalistas de confiança que nos acompanhasse até o aeroporto. Se fôssemos presos no caminho isto seria denunciado na imprensa. No Partido Democrata Cristão primeiro falamos com o pessoal da sua Secretaria Internacional, depois, com o Senador Juan Pablo Terra, posteriormente candidato à presidência do país. Ele escutou-nos, foi extremamente atencioso e nos deu todo o apoio que necessitávamos. Resolveram que seria melhor que ficássemos alguns dias dentro das dependências do Partido. Lá nós dormimos várias noites, acompanhados de alguns militantes.

Posteriormente, quando de lá saímos, eles constataram que já não havia mais ninguém nos vigiando. Demos a eles o dinheiro necessário para que comprassem as nossas passagens. Eles nos transferiram para um hotel que pertencia a pessoa da sua confiança e, de lá, após mobilizarem alguns jornalistas, nos levaram ao aeroporto. O Senador Juan Pablo Terra não foi junto conosco, mas nos acompanhou à distância, caso fôssemos presos, a notícia se espalharia imediatamente. Nessa época, o Uruguai vivia uma situação meio dúbia: tinha um presidente de direita o Bordaberry que apoiava as ditaduras latino-americanas e, apesar da oposição armada dos Tupamaros, mantinha uma estrutura democrática de governo com eleições das quais participavam partidos de centro-esquerda. Suponho que ao ver-nos entrar no Partido Democrata Cristão, aqueles que nos estavam seguindo, tenham chegado à conclusão de que não valeria a pena um conflito aberto com o Partido Democrata Cristão. Isto é o que a ficha do SNI que obtive da ABIN me induz a crer. Infelizmente, nunca mais tive contato com aqueles militantes do Partido Democrata Cristão uruguaio, a quem, sou muito grato. Voltamos para o Chile e lá ficamos por mais um ano. Na época, a direção da ALN considerou que eu e o Sérgio Granja tínhamos entrado em pânico. A Darcy declarou, à nossa Organização, que ela, só tinha buscado refúgio, junto aos Democrata-Cristãos uruguaios, forçada pelas circunstâncias, que o nosso desespero gerou. Devido a isto, a organização nos deixou, ao Sérgio e a mim, isolados em Valparaiso, por um ano. Durante este período, apoiados pelo Movimiento de Acción Popular Unitária (MAPU), um partido com origens na Democracia-Cristã chilena, trabalhamos como carpinteiros na SIMSA, uma empresa estatal que produzia casas pré-fabricadas em Viña del Mar para só retornar após a quarentena a que nos submeteram.

Voltei para o Brasil, em inícios de 1972, usando o nome falso de Enir Pinto Santos. Esta identidade me acompanhou, posteriormente, até que eu deixasse o Chile, após o golpe militar. Viemos, na mesma época, o Sérgio Granja e eu. Aqui chegando, não conseguimos retomar os contatos com a organização. A nossa volta, tinha sido acertada, com o Luiz José da Cunha, quando esteve, no Chile, como emissário da direção da ALN, umas semanas antes da nossa entrada no Brasil. Eu tinha, com ele, um relacionamento muito próximo, desde a época em que ele foi dirigente da Seção Juvenil do PCB. Ele fizera parte do nosso grupo em Cuba, e, já tinha retornado ao Brasil mais de um ano antes daquele nosso reencontro. Após o seu retorno, havia ascendido, à direção da ALN. Quando aqui cheguei, ele não compareceu aos encontros que tinha marcado comigo. Até hoje, não sei porque. Eu fui praticamente a todos, só não compareci ao último. Tomei esta decisão porque foi muito longo o período de tempo entre o primeiro e o último “ponto”. Se o Luiz tivesse sido preso, teria muito tempo para me entregar.

Sem contato, começamos a trabalhar com o Laércio Fratti, um professor de biologia, sobrinho do Rolando Fratti, um velho militante e ex-membro do Comitê Estadual do PCB de São Paulo, companheiro de primeira hora do Carlos Marighella, que tinha sido trocado pelo embaixador norte-americano.

Mesmo antes de voltarmos para o Brasil, já tínhamos um pensamento muito crítico com relação à atuação tática da ALN. O nosso interesse era que a ALN repensasse a questão da luta armada e retomasse as iniciativas junto à sociedade civil e ao movimento de massas. Estabelecemos, então, que deveríamos, a exemplo do que eu tinha feito em Minas após o golpe, garimpar contatos e refazer a organização. Orientados pelo Ricardo Zarattini, Rolando Fratti e o Argonauta Pacheco, procuramos alguns velhos comunistas que tinham integrado a ALN em São Paulo. Queríamos convencer o que restava da ALN da necessidade de mudar o nosso rumo.

Por casualidade, cruzei com o Luiz José da Cunha na rua, alguns meses depois da nossa chegada. Foi no centro de São Paulo. De forma seca e ríspida, ele dirigiu-se a mim e exigiu que eu o acompanhasse naquele exato momento, alegando que estava armado e que poderia obrigar-me. Tive que mostrar que eu também portava uma arma. Eu tinha um encontro marcado no Rio de Janeiro na tarde daquele mesmo dia. Sugeri que nos encontrássemos em dois dias, já que não podia faltar aos compromissos assumidos. Se faltasse, os meus companheiros acreditariam que eu tinha sido preso e romperiam qualquer ligação comigo. Alguns, como o Laércio, teriam que se mudar de casa, abandonar o emprego e entrar na clandestinidade. O trabalho, até então desenvolvido em Santos, seria totalmente desarticulado. O Sérgio e o Dario Canalli, um companheiro de nacionalidade italiana que tinha retornado clandestinamente ao Brasil, após ter sido expulso do país por razões políticas e também fazia parte do grupo nesta época, também cortariam o contato comigo. O Luiz José da Cunha não aceitou marcar outro encontro. Confesso que fiquei aliviado, porque eu estava muito desconfiado de infiltrações na ALN. Apesar de amigos há tantos anos, desconfiava até dele pela maneira como ele, no Chile, defendera o “justiçamento” do Márcio Leite Toledo. O Márcio foi um militante que tinha resolvido deixar a luta. Ele teria procurado a organização e dito que não queria continuar. Achava que não tinha mais sentido. Havia, no entanto, no grupo, entre os que com ele atuavam, que tinha optado por continuar. A esses companheiros ele teria assegurado o contato com a organização. Os que não quisessem prosseguir, e, que estivessem compartimentados na mão dele, compartimentados ficariam. Ele deixaria o país e os demais teriam a possibilidade de ficar sem maiores riscos. Leal à sua decisão, ele marcou um encontro com a organização para passar os contatos. Foi neste encontro que ele foi assassinado. No Chile, o Luiz José da Cunha defendera de forma veemente a ação. Afirmara que a achava perfeitamente justificável. Li uma reportagem na qual o Carlos Eugênio Paz, que não cheguei a conhecer, confirma esta versão e, até hoje, a defende. A realidade derrubou os meus receios quanto à lealdade do Luiz José da Cunha. Meses depois, ele foi preso e assassinado numa câmara de tortura dos militares. Teve uma morte heróica. Mas, naquela época, desconfiávamos até da nossa sombra.

Naquele momento estava tudo muito difícil. Somente tínhamos contato institucional, em Pernambuco, com o pessoal do PCR. A verdade é que, neste momento, eu já estava muito reticente com relação à ação da ALN. A idéia de mudança de rumos reforçou-se ainda mais quando, pela falta de contato, ficamos afastados da organização. O nosso trabalho, no sentido de reorganizar o pequeno apoio que tínhamos no movimento social, passava pela necessidade de convencer as pessoas da necessidade de abandonarmos as ações armadas. Esta era a nossa preocupação ao abordar cada um dos companheiros desgarrados que íamos encontrando em São Paulo. A iniciativa, no entanto, foi efêmera. A situação era muito tensa. Tínhamos tido muitas mortes. A desconfiança de infiltrações era generalizada, o caos na organização era grande e, para agravar a situação, Sérgio e eu, já no Chile, tínhamos discordado de forma aberta do assassinato do Márcio Leite Toledo.

Seguramente, a nossa mudança de opinião com relação à luta armada desagradou boa parte daquela turma mais aguerrida, que estava estruturada dentro da ALN. Não sei se eles estavam conscientes da solidez das nossas convicções. Estávamos, no entanto, convencidos de que era o momento de se fazer uma ofensiva política, de parar com a luta armada e não sei se esta discussão chegou a se dar no seio da ALN. É muito possível que tenham considerado que estávamos abandonando a luta, mas, até hoje, não ouvi qualquer comentário a respeito. De qualquer maneira, eu me senti desobrigado com relação a eles, já que tinham faltado aos meus. É importante levar-se em consideração que éramos muito poucos os que resistíamos militarmente à ditadura. Brincávamos dizendo que éramos um “exército” que cabia dentro de um Volkswagen.

Logo depois, um acontecimento que dificultou um pouco o nosso trabalho foi o afastamento do Sérgio Granja. Ele começou a se sentir seguido, suspeitava que a polícia estivesse no seu encalço. Eu não sabia se ele estava sendo seguido ou não, mas, assustado, ele buscou o apoio da família e passou a manter contato com ela. Até então, todas as nossas decisões eram colegiadas. O Dario e eu avaliamos o contato do Sérgio com a família como uma atitude perigosa e temerária. Consideramos que esta era a melhor maneira se expor e ser encontrado pela polícia. Decidimos, então, que ele deveria sair do Brasil. Ao ver a nossa proposta recusada, resolvemos cortar o contato com ele. Penso que, para a minha decisão, influiu um pouco a pressão que a Darcy tinha feito, no Uruguai, dizendo que a gente tinha sonhado que estava sendo seguido. Eu tinha muito medo de, mais uma vez, ser considerado paranóico.

O exílio

Em meados de 1972, o Dario teve que ir ao Chile para contatar o Zaratini e o Fratti e não compareceu aos “pontos”, nos quais deveríamos nos encontrar, após o seu retorno. Ele não voltou no tempo previsto. Antes de sair do Chile, eu tinha marcado, também, alguns encontros com a Sônia. Ela veio no lugar dele, mas com algum atraso. Tínhamos deixado, em aberto, a possibilidade de agendarmos encontros de emergência. Era um sistema que utilizava os jornais diários. Fazíamos pequenos anúncios e, dependendo do texto, identificava-se a hora e o dia, em um local de encontro que havia sido pré-determinado. Fiz vários anúncios imaginando que, se estivessem no Brasil algum deles me encontraria. Não obtive qualquer resposta.

Houve, também, razões políticas. Por estar entre os procurados da ALN, acabávamos sendo considerado um perigo potencial para aqueles que de nós se aproximavam.Chegamos à conclusão que a nossa presença afastava as pessoas. Freqüentemente, alguém desconfiava que tínhamos origem na luta armada e nunca mais comparecia aos nossos encontros. Eles viam os nossos retratos em alguma revista ou em algum jornal e, imediatamente, ficavam receosos. Só conseguimos manter contato com o Laércio e um grupo de “padres operários” da Ação Católica de Santos. Estávamos querendo fortalecer o movimento de massas e a nossa presença, junto a qualquer grupo de oposição organizada, acabava assustando o pessoal, fazendo-o se dispersar. Quando me dei conta de que as nossas iniciativas só estavam assustando aqueles que se mantinham voluntariamente organizados dentro do Brasil, resolvi sair do país. Outro fator que ajudou muito a minha decisão é que eu estava sem dinheiro e tínhamos decidido que, em nenhuma circunstância, recorreríamos a ações armadas para conseguir meios de sobrevivência. A única exceção era a resistência armada em caso de prisão, por isto, só circulávamos armados. Tínhamos assumido uma estratégia de luta política e tínhamos que ser coerentes com ela. Com o dinheiro acabando, isolado, sem perspectivas de uma ação política mais ampla resolvemos que eu deveria ir-me. A decisão foi minha e do Laércio. Não nego que a tudo isto, se somaram, também, é claro, razões pessoais, uma decisão particular minha. O isolamento era assustador. Vivíamos com muito medo. Cheguei a acordar de pé, com o revólver na mão, apontando para a janela em um quarto de hotel na Rua do Catete no Rio de Janeiro.

À época, a repressão passou a atingir sistematicamente as cabeças das organizações que resistiam à ditadura. Com a morte dos dirigentes mais experientes, os quadros mais jovens acabaram por assumir os principais postos na ALN. Depois de sair de Minas Gerais o Hélcio foi para o Rio de Janeiro. Lá foi galgando posições até chegar a ser o líder máximo da organização. Outros companheiros de Minas, como o José Júlio, o Arnaldo Rocha e o Cauzinho, também acabaram assumindo posições de importância no grupo. No processo de destruição das lideranças, eles foram sendo mortos. A ALN não foi uma organização que eles acabaram com ela porque foram acabando com as suas bases. Foi uma organização que eles conseguiram acabar com toda a sua cúpula. Eles destruíam sistematicamente as suas direções deixando os militantes que restaram isolados. É curioso que, no caso da VPR, a repressão tenha usado o mesmo processo, mas para controlar a sua máquina. Foram facilitando o caminho do cabo Anselmo para que ele controlasse a organização e, de lá, destruísse as bases que a ele estavam subordinadas. Mas a ALN foi uma organização que foi descabeçada por cima: Virgílio Gomes da Silva, Marco Antônio Brás de Carvalho, Carlos Marighella, Joaquim Câmara Ferreira, Aldo de Sá Brito Souza Neto, Hélcio Pereira Fortes, Yuri Xavier Pereira, Alex de Paula Xavier Pereira, Arnaldo Cardoso Rocha, Paulo de Tarso Celestino da Silva Filho, Antônio Carlos Bicalho de Lana e Luiz José da Cunha. Dos comandantes da ALN muito pouca gente sobrou. Acho que o Carlos Eugênio Paz foi a única liderança da ALN que sobreviveu.

Sem contato com a ALN, só soube da morte do Cauzinho pela imprensa. Eu morava numa pensão na Rua Paraná, 119 em Santos. Vi a notícia estampada na primeira página de um jornal exposto na banca da esquina. Eram os tempos do Emílio Garrastazu Médici. Aquele momento coincidiu com a minha decisão de sair definitivamente do país.

Exilar-me foi difícil. Faltavam recursos até mesmo para a passagem. Em Mendoza, tive que recorrera uma argentina que recém havia conhecido, para ter financiado o último trecho da minha viagem. Eu só tinha dinheiro para atravessar a Cordilheira dos Andes, até o Chile, por terra. As estradas estavam bloqueadas por causa da neve. Sem poder viajar por terra eu fiquei em Mendonza aguardando uma melhora do tempo. Havia lá, um grande número de estudantes esperando a abertura da estrada, para se dirigirem ao Chile, onde iriam participar de um congresso de arquitetura. Eu, ao perceber as dificuldades em prosseguir, procurei aproximar-me dessa gente que ia para o Congresso. Disse que tinha o mesmo objetivo que eles e também partilhava as suas dificuldades. Enturmei-me e fiz algumas amizades. Precisava observá-los para escolher alguém que oferecesse menos riscos ao pedir ajuda. No momento em que o meu dinheiro se acabou, saí do Hotel em que estava e procurei à pessoa que me pareceu mais confiável, entre aqueles com quem tinha estado em contato. Chamava-se Maria Inês de la Cruz. Era estudante de sociologia em La Plata, uma pessoa de esquerda, mas, aparentemente, não era muito engajada. Uma pessoa infiltrada sempre tende a aparecer muito. Mas ela parecia ser uma pessoa comunicativa que, apesar de suas convicções, comportava-se de forma moderada. Ficava no seu canto e se retraia diante de discussões mais acaloradas. Contei a ela quem eu era, disse que estava indo para o exílio no Chile e que o meu dinheiro tinha se acabado. Pedi que ela entrasse em contato com alguma organização à qual estivesse ligada e tentasse obter uma passagem aérea, para que eu pudesse prosseguir viagem. Eu a reembolsaria, quando chegasse ao meu destino. Abri o jogo esperando que, com isto, ela confiasse em mim. Ela marcou um encontro comigo para aquela mesma tarde. Cheguei ao encontro, morrendo de medo. De longe, eu vigiava a praça, antes de entrar. Quando constatei que ela estava sozinha e achei que não havia movimento estranho por perto, me aproximei. Ela me pediu que fechasse os olhos e abrisse as mãos. Atendi, morrendo de medo. Podia ser uma algema. Ela me entregou um papel e, quando eu abri os olhos, constatei que eram duas passagens de avião para viajarmos juntos. Fiquei emocionado. Ela era uma pessoa que eu mal conhecia. Esta noite, passei num colchonete no seu quarto de hotel. No Chile, por algum tempo, ficamos hospedados juntos em casas de amigos que eu tinha por lá. Paguei a passagem de volta e, depois de algum tempo, ela voltou para a Argentina. Desapareceu e, dela, nunca mais tive notícias.

Assim, acabei voltando para o Chile em setembro de 72. Um dia após chegar a Santiago, por acaso, encontrei o Dario Canalli na rua. Mantive, até o golpe que derrubou Salvador Allende, a minha militância junto ao Zaratini e ao Fratti. Logo depois deste nosso encontro o Dario voltou para o Brasil e, meses depois, foi preso.

A partir daí, vivi um período sem contatos com a militância de Ouro Preto. Só voltei a encontrá-los muitos anos depois, no Brasil. A exceção foi a Sônia que, também, estava ligada ao grupo da ALN interessado em acabar com a luta armada. Ela veio para o Brasil e, ao não me encontrar, retornou para o Chile.

A retomada do dia a dia

Fiquei mais um ano por lá e deixei o país para asilar-me no Panamá após a instauração da ditadura do General Augusto Pinochet em Setembro de 1973. Naquele país, casei-me com a Sônia e, com ela, tive dois filhos, Hélcio e Paloma. Do Panamá fomos para a Suécia e, lá estivemos exilados até que a anistia permitiu o nosso retorno. Em 1978, um ano antes, separei-me dela e, desde então, tive mais dois casamentos e mais duas filhas, Irenee Beatriz. Enquanto estava no Chile, completei meus estudos secundários fazendo exames supletivos. Na Suécia, após fazer um curso técnico em automação industrial, trabalhei algum tempo como instrumentista nos laboratórios do Departamento de Resistência de Materiais da Escola Superior de Tecnologia da Universidade de Lund. Posteriormente, me formei Bacharel em História Econômica e Teoria do Desenvolvimento por aquela mesma universidade.

O trabalho de pesquisa do qual esta entrevista fez parte, surpreendeu-me de forma extremamente positiva. Estou convencido de que o papel desempenhado pelos militantes de Ouro Preto na luta contra o governo militar foi muito importante. Pouco se fala dele, mas ele foi crucial na resistência estudantil à ditadura, na reestruturação do PCB em Minas após o golpe, na formação da Corrente Revolucionária de Minas Gerais e da ALN, na constituição de um núcleo sindical politizado em Contagem e, finalmente, na estruturação da luta armada que se opôs à tirania. Na história da resistência democrática no Brasil moderno, faltava a citação de Ouro Preto como destaque. Espero, firmemente, que o trabalho do historiador Otávio Luiz Machado cubra esta lacuna.

FIM

2 comentários:

Antonio M disse...

O depoimento do Ricardo é sincero e recria o cenário de tensão e de escolhas trágicas que fizemos naquela época...cada um de nós convivendo com seu sonho particular, com suas ilusões e dificuldades...muitos de nós não havíamos completado 20 anos... Muitos companheiros desprendidos e de um grande caráter que ficaram pelo caminho..Ricardo os citou a todos...o dificil depois de toda essa odisséia é conseguir retomar a caminhada e reconstruir um novo mundo...Foi bom viajar com as confissões do Ricardo e me lembrar dos meus verdes anos...Antonio Carlos Menezes

carlosguerrero@uol.com.br disse...

QUANDO LI ESTE DEPOIMENTO, VOLTEI À MINHA JUVENTUDE LÁ PELOS ANOS DE 1967 NO COLÉGIO DO VERBO DIVINO EM MINAS GERAIS. PUDE PERCEBER QUE A SERIEDADE E INTEGRIDADE NO COMPORTAMENTO DESTE JOVEM QUE COMO MUITOS TIVERAM QUE VIVENCIAR O TRISTE PERÍODO PELO QUAL PASSAMOS. TAMBÉM VIM DE MINAS GERAIS E TAMBÉM MILITEI POR TRES LONGOS ANOS EM ORGANIZAÇÃO QUE OUSOU LUTAR CONTRA A DITADURA MILITAR QUE SE APODEROU DO BRASIL COM O GOLE DE 1964. ENFIM, PUDE FAZER UMA VIAGEM AO TEMPO E RECORDAR OS MOMENTOS MAIS DIFÍCEIS QUE PASSEI. UM ABRAÇO A ESTE COMPANHEIRO. ANTONIO CARLOS DIAS