segunda-feira, 16 de julho de 2007

DEPOIMENTO DE PAULO PAVANELLI

UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
LABORATÓRIO DE PESQUISA HISTÓRICA


DEPOIMENTO DE PAULO PAVANELLI A OTÁVIO LUIZ MACHADO

Depoimento realizado pelo projeto “A Atuação do Diretório Acadêmico da Escola de Minas de Ouro Preto - o desenvolvimento e o radicalismo entre 1956 e 1969”.

ENTREVISTADOR: OTÁVIO LUIZ MACHADO
DEPOENTE: PAULO PAVANELI
LOCAL: BELO HORIZONTE-MG
DATA: 13/
02/2003.
FICHA TÉCNICA

Entrevistado: Paulo Pavanelli
Tipo de entrevista: Temática
Entrevistador: Otávio Luiz Machado
Levantamento de dados e roteiro: Otávio Luiz Machado
Conferência, leitura final e notas de rodapé: Otávio Luiz Machado
Elaboração de temas: Otávio Luiz Machado

Local: Belo Horizonte-MG
Data: 13/02/2003
Duração: 2 h aprox.
Fitas cassete: 2





Proibida a publicação no todo sem autorização
Permitida a citação.
A citação deve ser textual, com indicação de fonte.
Permitida a reprodução.


Norma para citação:

MACHADO, Otávio Luiz (org.). Depoimento de, Paulo Pavanelli a Otávio Luiz Machado. Ouro Preto: Projeto “A Atuação do Diretório Acadêmico da Escola de Minas de Ouro Preto - o desenvolvimento e o radicalismo entre 1956 e 1969”, 2003.

OTÁVIO LUIZ MACHADO*: Paulo, quando você entrou na Escola de Minas de Ouro Preto havia um processo de mudança nas práticas do Diretório Acadêmico, como a questão do trote? Como foi isso?

PAULO PAVANELLI: Nós entramos em 1967. A Comissão de Trote[1] escolhida pelo Centro Acadêmico tinha como Presidente o César Epitácio Maia (atual Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro). Sua atuação sempre foi política, cheia de estratégias, e uma de suas atitudes marcantes, na época, foi reduzir o trote, que ficou restrito ao corte de cabelo. O meu, por exemplo, foi no estilo Santo Antônio. Não fomos submetidos a carregar aqueles cartazes pendurados no corpo, nem aos trotes com intuitos de ridicularizar o calouro.

E nem teve o tal de tomar cachaça de uma forma forçada?

Tomava se quisesse. Não era obrigado. Eu sempre achei aquele modelo de trote meio babaca, com aqueles cartazes pendurados em homens e mulheres. Naquele ano não houve. Não sei se foi discutido na Comissão, ou se foi ato de exclusiva responsabilidade dele, César. Lembro-me que muitos veteranos não gostaram. Nós gostamos. O que ele conseguiu com isso? Ele conseguiu angariar a simpatia dos calouros, dos novatos. Depois eu fui entender o porquê: na verdade ele estava tentando conquistar votos, e isso ele conseguiu.

Qual foi o trote que ele deu?

Foi um trote de reuniões e palestras. Ou seja, acabou-se com aquelas posições públicas e vexaminosas de você sair na rua (fantasiado). Tirando a questão do corte do cabelo, e em termos de exposição pública, creio que nós não tivemos mais nenhuma.

Mas nesse período também teve o movimento liderado pelo Diretório para comprar repúblicas. E um acampamento. Você poderia falar um pouco?

Realmente havia um problema sério de moradia em Ouro Preto. Eu tinha um colega de República que se chamava Aloísio Moreira, cujo apelido era “Spy”, “Espião”. Ele se formou em 1967, no ano em que eu entrei. Antes, portanto, da minha chegada em Ouro Preto, no ano de 1963 ele chegou em Ouro Preto e não havia lugar para ficar. Então montou uma barraca no adro da Igreja de São Francisco de Assis, uma barraca do tipo de camping, e ficou morando lá. E aquela atitude teve repercussão. E corria, na época – isso aí eu conto de ouvir falar – que ele era um espião tcheco (risos). Era um negócio muito doido. Foi aí o primeiro movimento. Quando a minha turma entrou, em 1967, ainda havia um problema sério de falta de moradia. E este era um problema que tinha de ser enfrentado pela Escola de Minas, inclusive comprando casas, porque a demanda era crescente.

E no caso do Jornal do Diretório (O Martelo) com os pensamentos do Mao Tse-Tung? Como estas citações estavam no Jornal?

Estava de forma direta. Era como se fosse o Livro Vermelho condensado nas quatro páginas d’O Martelo. Ainda trago na memória a imagem do Cesar (Maia) na porta do Centro Acadêmico (da Escola de Minas) e do REMOP (Restaurante da Escola de Minas de Ouro Preto) e anunciando: “Leiam os pensamentos do Presidente Mao!”. (risos). Foi desse jeito. Eu achei aquilo meio estranho, aquilo de um jornal de estudantes falando dos pensamentos de Mao. Esse foi mais um impacto que eu tive.

E quando você coordenou O Martelo também teve dificuldades?

Eu fui convidado para assumir a Coordenação d’O Martelo, em 1969, após ganharmos a eleição para o Diretório Acadêmico. O Presidente era o Zé de Lourdes (José de Lourdes Motta), e eu, o vice. Foi uma época que, para se colocar uma coisa no papel, tinha que pensar trezentas vezes. Era difícil, porque toda e qualquer coisa que você publicasse poderia ser vista como uma contestação, que não era aceitável pelo regime. A gente tinha essa dimensão. Afinal de contas era um veículo escrito e com responsabilidade. Foi rodado na gráfica do Arquidiocesano, lá em Mariana, o mesmo que publica a famosa “Folhinha de Mariana”. E aconteceram coisas até interessantes. E algumas eu posso citar como exemplos: primeiro, era muito difícil achar pessoas para escrever no jornal (risos). Todo mundo tinha medo. Eu me lembro que até o João Bosco (cantor e compositor) escreveu um artigo sobre um Festival da Canção daquele ano. E (para evitar perseguições) eu criei um personagem, mas eu não sei se existe alguma cópia deste exemplar ainda. Teria que ver. O personagem era chamado Doutor Pelópidas Cesário d’Assis Mourão, que era um professor erudito etc e tal. E o Doutor era uma homenagem ao Machado de Assis. Então, eu tinha que arrumar um meio de publicar as coisas que a gente precisava falar, como sobre a falta de liberdade, sobre a ditadura. E eu comecei com “O Dicionário Esquecido do Doutor Pelópidas”, escrito sob a forma de verbetes que começava com a letra A, letra B, letra C etc, e que cada número haveria três verbetes. Só durou um número. Acabou na letra C.

Por qual motivo?

As coisas eram tão difíceis. Tinha um problema para conseguir congregar as pessoas para escrever. Assim, o próprio jornal foi definhando, no sentido de não termos colaboração, e ainda, a pressão ser bem mais forte. Por exemplo, nesta época o Newton Morais (que foi do Diretório Acadêmico da Escola de Minas e da Ação Libertadora Nacional) escrevia. Ele escrevia uma seção de economia e botava para quebrar (risos). E eu às vezes agia sendo uma espécie de censor, para ver se adequava, e para que o jornal tivesse uma vida maior do que teve, porque O Martelo saía uns tempos e uns tempos depois sumia. Não é que alguém chegou pra gente e falou: “este jornal não vai sair”. Ele não foi empastelado, não. A linguagem que se usava em termos de imprensa, como “empastelou o jornal de fulano de tal”. Ou seja, invadiram, quebraram máquinas etc. Não houve nada disso. Houve um constrangimento, vamos dizer assim não declarado, mas muito forte do ponto de vista de “olha lá o que vocês vão falar”. Aquela coisa foi pressionando e fazendo com que as pessoas que escreviam deixassem de escrever. E aí que vai aquela reminiscência que te falei: houve um dia – esse dia foi interessante – que eu passei um pouco apertado; os meus colegas sabem disso. Como eu era Coordenador do jornal, chegaram e me falaram que o delegado queria conversar comigo: “Paulinho, o delegado Fulano de Tal quer falar com você”. “E caramba, o que é isso?”. Eu sei que nem fui almoçar naquele dia no Remop, ficando o dia inteiro na rua. E eu perguntava: “o que esse camarada quer comigo?” Eu me lembro que era um delegado natural do município de Rio Casca e, como eu tinha um colega que era de Rio Casca, perguntei: “Você o conhece?” “Vamos ver o que esse camarada quer comigo”. Eu falei com o Zé de Lourdes, inclusive, que era o Presidente do Diretório. Mas eu era o responsável e estava personalizada a responsabilidade como Coordenador. E disse: “Zé, vamos dar um jeito nisso, eu vou”. E fui. E sabe o que o delegado me falou? Ele disse assim: “eu estou te procurando o dia inteiro para você não publicar a notícia da morte do (Carlos) Marighela”. E era a morte do Marighela. Ninguém lá em Ouro Preto sabia disso, porque você sabe como era a imprensa. Não sabia nada. Absolutamente nada. Nós, em Ouro Preto, quando ficamos sabendo da morte do Marighela, foi aí através do delegado falando para a gente não publicar. Para você ver como é que era.

E você presenciou invasões de militares em repúblicas?

Nessa época, que devia ser um 21 de abril, caiu num final de semana. E a gente tinha bebido na noite anterior. Ao acordar, no dia da solenidade, na rua das Mercês, que era a rua da Consulado, da Sinagoga, da Reino de Baco, Vaticano, Pureza e lá embaixo ia dar na República Canaan. E o Lincoln (Ramos Viana), ex-Presidente do Diretório (Acadêmico da Escola de Minas), que morava na República Canaan, estava sendo procurado pelo serviço de repressão. Na verdade, o que aqueles militares estavam fazendo ali? Era um aparato militar bem desproporcional e com tanques.... Sabe aqueles carros pesados e blindados de cor verde? E eles foram arrombando todas as portas das repúblicas. E procurando quem? O Lincoln. Então houve fatos humorísticos que não cabe aqui detalhar, que eram situações que depois a gente achou graça mas que, na época e na hora, foi um negócio absolutamente de terror, como a de pessoas sendo acordadas com metralhadoras apontadas na cabeça. Eles arrombaram a porta da República Consulado, da República Sinagoga etc. Uma semana depois o Lincoln reapareceu. E eu: “Ô Lincoln, o que houve?”. E ele: “tem uma semana que eu já sabia que eles iam ‘baixar’. E eu fui embora para uma casa...”. Então ele se refugiou. Foi um episódio bastante forte na ocasião.

E tinha também muito em Ouro Preto a chamada “esquerda festiva”?


Era o pessoal mais festivo no sentido de defender as idéias de esquerda puramente no discurso e sem maiores ações do ponto de vista prático da esquerda, um dos quais a luta armada. E muito distante também da luta cotidiana de quem ficava na retaguarda. Era mais o pessoal, mais ou menos concentrado em algumas repúblicas, que gostava de passar essa imagem de que eram de esquerda. E gostavam muito de conviver com os artistas, etc. e tal, e fazer o que se chamava de “badalação”.


* Parte do depoimento integral prestado ao historiador Otávio Luiz Machado.
E-Mail de contato: otaviosemprebrasil@yahoo.com.br

[1] A reação dos veteranos com a mudança radical do trote, que deixaram os calouros mais atentos com as questões locais (os problemas de moradia dos estudantes, por exemplo) e nacionais (a permanência de um regime claramente antidemocrático), poderá ser observados numa citação do Jornal oficial do Diretório Acadêmico da Escola de Minas de Ouro Preto: "A comissão de trote para o ano de 1968, nomeada pelo Centro Acadêmico , conseguiu até o momento, maior confiança e admiração dos veteranos , quando em comparação com a do ano anterior que tentou aplicar um processo objetivo no período de entrosamento dos calouros, sendo completamente queimada e desacreditada, apenas por razões da incompreensão dos estudantes, que não souberam avaliar o objetivo da tática, dando com isso fôrça e incentivo aos calouros a se rebelarem contra tudo e todos" ("Trote versão 68", O Martelo de abril de 1968).

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