domingo, 15 de julho de 2007

Depoimento de Clemente Rosas

Jornal do Commercio
ENTREVISTA/CLEMENTE ROSAS
éramos uma elite intelectual”
Publicado em 08.03.2004
A União Nacional dos Estudantes (UNE), fundada na década de 30, viveu seu auge exatamente nos anos que antecederam o golpe militar de 1964. Foi em 1961, por exemplo, que ficou conhecida como a casa da resistência democrática por causa da participação dos universitários no movimento que defendeu o cumprimento da Constituição brasileira, quando ministros militares quiseram evitar que João Goulart assumisse a Presidência da República após a renúncia de Jânio Quadros. O paraibano Clemente Rosas, 63 anos, vice-presidente de Intercâmbio Internacional da entidade no período 1961-1962 e ligado ao Partido Comunista Brasileiro, conta, na entrevista por telefone a Veronica Almeida, detalhes da organização da UNE da época.

JORNAL DO COMMERCIO - Como era o movimento estudantil de sua época?
CLEMENTE ROSAS - Eu tive o privilégio de participar do movimento estudantil no ano de seu ponto culminante e importante, a ponto de termos acesso direto ao presidente da República e ao ministro da Educação. A UNE atuava em todo o País. Em cada Estado havia a União Estadual dos Estudantes e em cada universidade, o Diretório Central dos Estudantes. Cada faculdade tinha seu diretório acadêmico. A eleição para a UNE era indireta, da qual participavam delegados de todos os diretórios acadêmicos do País. A UNE tinha dez diretores, cinco vices por área específica (coordenação universitária, assistência universitária, problemas nacionais, problemas educacionais e intercâmbio internacional), além de um secretário-geral, dois secretários e um tesoureiro. Havia encontros de estudo, reuniões do conselho e o congresso anual, em que se discutiam as principais linhas de atuação política.


JC - O Partido Comunista Brasileiro e a Juventude Universitária Católica (JUC) eram as principais forças políticas na UNE naquela ocasião. Havia divergências entre elas. Como se uniram?

CR - No essencial, a JUC e o PCB concordavam. Quando entrei para a diretoria da UNE, já havia uma conciliação entre as duas forças, uma política de frente única. A JUC e o Partido Comunista Brasileiro se associaram para eleger, na conciliação, a diretoria da UNE. A diretoria era formada com a participação das duas tendências. Isso começou na eleição de Oliveiros Guanais de Aguiar, anterior à nossa gestão. Herbert de Souza (Betinho), depois líder da Campanha Contra a Fome, foi o grande pensador da JUC e, num gesto de renúncia, desistiu da própria candidatura em favor de Oliveiros Guanais. Betinho nunca teve cargo na UNE, mas sempre mereceu o respeito de todos nós, sobretudo de Aldo Arantes, que foi o presidente na minha época. Aldo era muito ligado a ele. Essa política de frente única continuou na gestão posterior, de Vinícius Caldeira Abrantes, prosseguiu depois na de José Serra, até que a UNE foi invadida em 1964 e passou à clandestinidade.

JC - Quais eram as diferenças entre JUC e PCB?

CR - A principal divergência ideológica era o fato de o Partido Comunista Brasileiro ser marxista e, portanto, materialista. A JUC era de inspiração cristã. Havia um esforço de Betinho de formular toda uma concepção de ação política com rótulos e conceitos novos para firmar a diferença entre ele e nós, do PCB. Mas havia um certo artificialismo. Por exemplo, quando falávamos de classe dominante, classe dominada, Betinho falava em pólos dominante e dominado, categoria abstrata que talvez explicasse menos que a outra. Quando distinguíamos as classes entre latifundiários, burguesia, proletariado e classe média, a JUC adotava um conceito meio confuso, de burguesia latifundiária. No plano de ação política, as principais bandeiras eram as mesmas.

JC - E quais eram essas bandeiras?

CR - As reformas de base. As principais eram a reforma agrária e a universitária. Achava-se que a universidade tinha padrões feudais e precisava se modernizar para atender às necessidades do País, tanto do ponto de vista técnico quanto do ponto de vista de formulação teórica. Além disso, as cátedras eram passadas quase de pai para filho, como se fosse um direito hereditário. Também havia outras coisas que combatíamos ardorosamente. Achava-se que a universidade era elitista, porque absorvia um percentual muito pequeno da população brasileira. Éramos na época em torno 100 mil estudantes universitários.

JC- Como a UNE discutia os outros problemas da sociedade?

CR - A UNE promovia seminários. O Nordeste era uma preocupação nacional e realizamos, no Recife, o Seminário de Estudos do Nordeste. A questão internacional também era debatida. Tínhamos contato com órgãos representativos dos estudantes de outros países. Apoiávamos manifestações de operários e camponeses. Manifestações do 1º de Maio eram gigantescas e a palavra da UNE, indispensável.

JC - Havia preocupação em manter independência de partidos políticos?

CR - Sim. Na campanha pela legalidade, que garantiu a posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros, a UNE apoiou a solução democrática mantendo sua independência. Algumas vezes escorregávamos por inexperiência. Havia a preocupação de que a UNE não fosse em nenhum momento caudatária de nenhum partido político oficial. Nenhum deles tinha participação no movimento estudantil. As forças políticas que atuavam no movimento eram o Partidão, ilegal, e a JUC. Nossa linha de princípios previa também a independência das estruturas oficiais, embora tivéssemos verbas federais. A sede da UNE, no Rio, localizada na Praia do Flamengo, número 132, era do Clube Alemão. O governo desapropriou e repassou o prédio para o MEC, que cedeu o espaço à UNE. Lá funcionavam também a União dos Estudantes Secundaristas e outras entidades. Os porteiros eram pagos pelo MEC.

JC - Vocês esperavam o golpe militar de 1964?

CR - Não tínhamos previsão do que ia ocorrer em 1964. Éramos otimistas, achávamos que o País marchava para uma solução socialista, tínhamos a ingenuidade de pensar isso. Não pensávamos que as forças de reação fossem capazes de interromper esse processo democrático. Em 1964, estava fora do movimento estudantil. Estava trabalhando na Sudene, de onde fui demitido exatamente após o golpe.
JC - No livro que escreveu, Praia do Flamengo 132, o senhor chama o golpe de desastre. Por quê?

CR - Porque interrompeu o processo de crescente participação popular na política e de crescimento da força das massas. O golpe foi mais duro na intelectualidade. Quantos brasileiros brilhantes migraram! Quantos se sacrificaram ou foram para outra atividade! Tínhamos uma contribuição de intelectuais de peso. Havia um jornal da União Metropolitana de Estudantes, o Metropolitano. Apesar de feito por universitários, era do melhor nível, um tablóide de idéias, como é o Idéias, da Folha de São Paulo.

JC - Qual era o perfil dos universitários?

CR - No meu tempo, o universitário era de classe média e alguns de classe mais elevada. Não havia filho de operário. Éramos uma elite intelectual com nível que compararia hoje ao das turmas de pós-graduação. O que ocorreu com a democratização da universidade foi um pouco diferente do que queríamos. Queríamos que ela não fosse elitista no sentido de só permitir o acesso de pessoas de classe média e abastada. Que pudesse permitir a entrada de pessoas de extrato inferior da sociedade, do operariado, do camponês, que fosse democrática, sem critério econômico na sua composição. Na realidade, observamos que, se houve melhora, foi discreta. E a democratização que se deu foi no nível do conhecimento. As pessoas que entram na universidade hoje entram com uma bagagem de conhecimento muito inferior à nossa.

JC - A que se deve o fracasso do movimento estudantil de hoje?

CR - Três aspectos podem explicar. Um deles é o nível do universitário da graduação, inferior ao nosso naquele tempo. Segundo: a linha política da liderança da UNE está muito sectária e, ao fazer isso, distancia-se das bases. O caminho que a UNE atual deveria tomar para reconquistar seu prestígio na massa universitária era encampar bandeiras mais amplas, como a defesa da ecologia e das minorias. Não é sem razão que o ponto em que a UNE esteve mais em moda foi na luta pelo impeachment de Fernando Collor, uma exigência nacional. Foi nesse tempo que a entidade teve um lampejo de prestígio. Mas não souberam dar continuidade a essa linha. Um terceiro aspecto é que não se pode ter hoje os sonhos que tínhamos, que eram de construir uma sociedade alternativa, globalmente diferente daquela. Uma sociedade socialista, mais democrática, mais solidária. A inviabilidade disso foi demonstrada. A prova foi a desagregação da União Soviética. Não se pode ter mais a ilusão que tínhamos. Naquele tempo, a União Soviética apresentava índice de crescimento de PIB maior que o dos Estados Unidos, estava na frente da corrida espacial e nós não estávamos sós. Todos os intelectuais estavam conosco. No nosso tempo não havia a preocupação desesperada de buscar um lugar no mercado de trabalho.

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