Depoimento de Lauro Morhy

FICHA TÉCNICA

Tipo de entrevista: Temática
Levantamento de dados, roteiro e elaboração de temas: Otávio Luiz Machado;
Local: Brasília
Data: 29/01/2004 E 30/01/2004
Duração Total da Entrevista: 2 h
Fitas cassete: 2
Páginas: 06 (depoimento parcial)
OBSERVAÇÃO: Texto após revisão feita pelo entrevistado (em julho de 2004)

A citação deve ser textual, com indicação de fonte.
Permitida a reprodução.



Norma para citação:

MACHADO, Otávio Luiz (org.). Depoimento de Lauro Morhy a Otávio Luiz Machado. Ouro Preto: Projeto “O Debate da relação educação e sociedade no movimento estudantil das tradicionais escolas de engenharia de Ouro Preto e Recife”, 2004.

Otávio Luiz Machado (OLM):
-Como foi a sua trajetória até o início dos estudos na Universidade?
Lauro Morhy (LM):
- Eu sou do interior da Amazônia, de Guajará-Mirim, cidade que hoje pertence ao Estado de Rondônia. Quando ali nasci, ainda não havia sido criado o Território Federal do Guaporé, que depois passou a ser o T.F.de Rondônia, hoje Estado de Rondônia. Aprendi as primeiras letras em minha casa mesmo. A cidade estava em fase inicial e ali só existia o primário. Quando terminei esse curso, tive que sair para estudar em outros lugares mais adiantados. Saí então de casa com apenas 11 anos de idade para estudar fora. Fui interno em colégios, morei com parentes e em repúblicas. E andei por aí: Porto Velho, Manaus, Belém, Rio de Janeiro, São Paulo... Tive então uma vida típica daqueles jovens interioranos que saem para estudar fora, com grandes sacrifícios pessoais e da família. Mas sempre fui bom aluno, responsável, dedicado, estudioso. Permaneci mais tempo estudando em Porto-Velho, Belém e São Paulo.
(OLM) -Depois o senhor saiu do Pará, estudou em outros Estados por causa do movimento estudantil?
(LM) – A minha participação no movimento estudantil antecipou a minha saída de Belém. Fui para o Rio de Janeiro e, mais tarde, para São Paulo. Em Belém participei da liderança do movimento estudantil. Fui presidente do Diretório Acadêmico de Química, da Escola Superior de Química do Pará, a qual foi absorvida pela Universidade Federal do Pará - UFPa depois de muitas lutas, nas quais estive muito envolvido. O Reitor de então era contrário à inclusão dessa Escola na UFPa, assim como a de outra unidade isolada, a Escola de Serviço Social do Pará. Haviam divergências locais, contaminadas por interesses e posições pessoais. Nada que se pudesse considerar em bases científicas, princípios educacionais ou estratégicos. Tais dificuldades geraram frustrações e indignações no meio estudantil. Foi então que o movimento estudantil se organizou e passou a ter papel importante na encampação das duas instituições de ensino superior pela UFPa. De fato, conseguimos sensibilizar a opinião pública e as autoridades, de modo que as duas Escolas passaram a integrar a UFPa. Essa causa foi apoiada pela entidade estadual dos estudantes sediada em Belém, filiada à UNE, a UAP, União Acadêmica Paraense, de cuja liderança participei, inclusive como Diretor. Nessa época fui eleito para a diretoria da União Nacional dos Estudantes (UNE), como representante do Pará.
Como estudante de química que era, frequentei a Escola Nacional de Química da UFRJ no Rio de Janeiro, atuando no movimento estudantil em âmbito nacional. Morava no próprio prédio da UNE, no modesto alojamento destinado aos 10 diretores da entidade. Ali estava então baseada a liderança do movimento estudantil brasileiro, que era bastante forte nessa época.
Do Centro Popular de Cultura, o CPC da UNE, despontaram pessoas de destaque do mundo cultural brasileiro, como as que deram origem ao Cinema Novo. Ali atuaram, entre outros, Oduvaldo Viana Filho (o Vianinha), Leon Hirszman e Carlos Estevam Martins, que desenvolveram talentosas e criativas atividades culturais, com o apoio direto da própria UNE. O CPC promovia muitas atividades artísticas e sociais, inclusive em favelas e outros lugares pobres. Havia também o Teatro da UNE, que ficava no andar térreo, e que teve também papel cultural importante. A UNE-Volante percorria o Brasil conscientizando e mobilizando para a Reforma Universitária, em momentos enriquecidos por espetáculos teatrais, musicais e cinematográficos.
“A mais-valia vai acabar, seu Edgar”, de Oduvaldo Viana, peça apresentada no teatrinho da Faculdade de Arquitetura do Rio de Janeiro, mexia com todos e revelava o talento de Carlos Lyra. Por outro lado o pessoal de São Paulo “atacava” com “Eles não usam black-tie”, de Gianfrancesco Guarnieri, e “Revolução na América do Sul”, de Augusto Boal. Foi a UNE, com as suas atividades culturais, que conseguiu polarizar intelectuais como Ferreira Goulart (sua esposa Teresa Aragão teve papel importante nas promoções do CPC) e muitos outros. Nesse período foram lançados numerosos livros e publicações diversas, sob o “calor” da guerra fria. Os cineastas Alex Viany e Cacá Diegues praticamente nasceram nesse movimento cultural. E foi nessa época que apareceu a “Canção do Subdesenvolvimento”, a publicação “Um dia na vida do Brasilino” e a peça “Morte e Vida Severina”, de João Cabral, numa das interpretações teatrais mais expressivas, apresentada inúmeras vezes no TUCA, pelo pessoal de São Paulo, no Rio e em outros lugares por outros grupos artísticos ligados aos estudantes..
O movimento estudantil era realmente pujante e pleno de idealismos. Gerava belos sonhos, impulsionado pelo entusiasmo e pelo vigor da juventude. Compunham o movimento vários grupos político-ideológicos de todos os matizes e também os estudantes independentes. Na verdade alguns desses independentes tendiam para a esquerda, e atuavam como “linha auxiliar” de grupos político-ideológicos organizados. Estes grupos geralmente atuavam clandestinamente, pois não era possível o seu registro como partido político. Mas eram eles que fermentavam toda aquela movimentação estudantil, por meio das suas lideranças. Entre esses grupos, havia o “pecebão” ou “partidão” - Partido Comunista Brasileiro PCB); o Partido Operário ou Política Operária (POLOP) e a Ação Popular (AP). A AP surgiu da fusão de uma corrente da Juventude Universitária Católica (JUC) com outro grupo que se chamava grupão. O grupão incluía estudantes independentes, alguns dos quais tinham ligações político-partidárias. Mas a característica comum dos que o compunham, era a tendência socialista, a busca por um novo socialismo, um socialismo brasileiro. Na fusão discutiu-se e adotou-se nacionalmente o documento básico da Ação Popular. Esse documento foi sendo aprimorado: era a base teórica e filosófica da AP, que passou a orientar as suas ações. Mas pretendia-se mais: queria-se chegar a um documento maduro, em aprimoramento continuo e adequado aos sonhos dos que compunham o movimento.
A AP ganhou a juventude, cresceu e se fortaleceu no movimento estudantil e chegou ao campo, com o auxílio de membros oriundos do Movimento de Educação de Base (MEB) da Igreja Católica. Conquistou simpatizantes no mundo político-partidário, no movimento operário e até entre militares. Eu era ligado ao grupão e depois passei para a Ação Popular. Na diretoria da UNE compunha o grupo da AP, juntamente com o José Serra que era o presidente da instituição, e os diretores Duarte Brasil Lago Pacheco Pereira (da Bahia), Carlos Albano Castilho (do R.G. do Sul) e Nazaré Castro Gomes, hoje Pedrosa (do Maranhão). Os outros cinco diretores estavam ligados a outros grupos, principalmente ao “partidão”. A Diretoria da UNE alcançou um bom nível de maturidade e entendimento, de modo que, em geral, as iniciativas tomadas pela instituição tiveram boa receptividade no âmbito universitário e foram bastante exitosas. Acho que fizemos boa história. Vivemos plenamente a nossa juventude, com ideais bastante elevados. A gente sentia aquela vontade pura de ajudar o país e a humanidade, com todo vigor e entusiasmo. Pode-se dizer que havia uma certa ingenuidade no movimento estudantil, mas acho que isso fazia parte daqueles dias históricos, do nosso amadurecimento e conscientização, e, enfim, da fase pela qual passávamos.
Pouco antes do golpe de 1964 eu participei do Comício do dia 13 de março, o “sexta-feira 13”, famoso comício da Central do Brasil. Estavam lá: o Presidente João Goulart, o Arraes, o Brizola, o José Serra e diretores da UNE, além de muitas outras importantes lideranças políticas e sindicais. Via-se ali uma grande massa estimada de mais de cem mil operários e militantes de todos os partidos legalmente reconhecidos e dos que atuavam na clandestinidade. Foi aquele, de fato, um acontecimento grandioso e impressionante. Difícil era imaginar que menos de um mês depois, tudo aquilo seria derrubado pelo regime que se instalou em março de 1964.
Seguiu-se à “Marcha com Deus, pela Família e pela Liberdade” todo um processo político repressivo e de mudanças. É provável que muitos dos que estiveram no comício do dia 13 estavam também naquela Marcha... Mas, de qualquer modo, o comício foi um acontecimento grandioso e acredito que a maioria das pessoas que lá estavam resguardavam os seus sonhos e idealismos. E então veio todo aquele período político difícil: muitos fugiram, outros foram presos, perseguidos e até mortos. Eu consegui chegar à Bolívia e depois passei um tempo na região brasileira vizinha. Quando voltei estive um tempo em Belém e fui para São Paulo, onde vivi por um bom tempo clandestinamente. Mas sempre procurando estudar e crescer cientificamente. Afinal, pensava, não se fará revolução nenhuma sem pessoas competentes, bem preparadas...Associei-me a laboratórios científicos e tecnológicos da USP, do Instituto de Botânica de São Paulo e de indústrias. Como eu estava na lista de pessoas visadas e procuradas, tinha que manter muita discrição.
Apesar de viver na clandestinidade e do quadro perigoso e sombrio, o pessoal da AP, entre os quais estava o Betinho, ainda se reunia e buscava caminhos para o movimento. Cada encontro era cuidadosamente preparado. O último do qual participei foi em Santo Amaro. Mas a situação complicou e a Ação Popular ficou muito visada. Houve denuncismo e até mesmo ações de outros partidos contra o movimento, além de, infelizmente, algumas traições ao que soubemos. Em certo momento a AP teve um racha interno, surgindo a Ação Popular Marxista-Leninista. A outra parte continuou defendendo as idéias originais do movimento. Após esse “racha” surgiram outras correntes que na verdade tiveram algumas raízes políticas na Ação Popular. Foi o caso do PC do B, com seus militantes oriundos da AP. Alguns deles estiveram no exterior, exilados, inclusive em países socialistas. Acho que o PT e o PSDB, criados mais tarde, tiveram raízes na AP.
Em resumo, a nossa participação no movimento estudantil ocorreu num período de lutas e esperanças, rico em idealismos, sonhos, experiências e aprendizados, apesar de todos os riscos, de todos momentos de tensão, perseguição e decepção.
As pessoas dificilmente imaginam o que seja viver em um período de perseguição, período em que a gente sabe que está sendo procurado, pode ser preso e sofrer outras coisas até piores. Isso é terrível. O cidadão sente-se permanentemente perseguido, sob riscos... Desconfia de tudo, até mesmo de pessoas amigas. Desse período, além das diversas experiências e lições de vida, foram aproveitados valiosos avanços culturais e artísticos. Alguns documentos ainda estão sendo resgatados historicamente, mas outros se perderam mesmo. Houve o episódio da ocupação da UNE, depois o incêndio e a derrubada do próprio prédio. A gente não sabe onde foi parar muita coisa que estava lá. Perdi livros, documentos e trabalhos em andamento. É possível que tenham sido levados por agentes do sistema policial e de repressão, ou que tenham sido simplesmente destruídos no incêndio do prédio.
(OLM)- Professor, para encerrar, pediria para o Sr. falar um pouco daquela reforma universitária proposta pelos estudantes nos anos 1960, levando-se em consideração o atual debate.
(LM)- Sobre a Reforma Universitária, considero que o nosso marco inicial foi o I Seminário de Reforma do Ensino (1957). Mas no final dos anos 50 é que o debate “esquentou”, com as discussões em torno da Lei de Diretrizes e Bases (LDB). Entretanto, o assunto ficou mais substancial com a Declaração da Bahia (maio de 1960) e com a Carta do Paraná (março de 1962), resultantes de seminários sobre reforma universitária, realizados, respectivamente em Salvador e em Curitiba. No período 1963-1964 o assunto estava em pauta já em fase mais madura e com posicionamentos bastante convergentes sobre certos princípios reformistas, como a democratização do ensino superior e a representação estudantil nos conselhos das universidades. O debate permeava as discussões sobre as Reformas de Base, propostas e incentivadas pelo Governo João Goulart. Houve, de fato, avanço considerável das idéias sobre a Reforma Universitária naquele tempo. Quando veio 1964 o debate foi interrompido, mas continuou-se a conversar e a discutir nos bastidores, embora com menos intensidade. O quadro nacional passou a ter novos focos e outras prioridades políticas. O próprio governo militar, aproveitando os resultados e as ressonâncias ainda existentes de todo aquele período de debates, discussões e agitações, acabou promovendo uma reforma universitária. E houve aquela fase de 1968... Não veio a reforma que se pretendia no período das discussões de 1963-1964, mas foram realizadas algumas mudanças interessantes, que tiveram o seu papel.
Depois do período militar as universidades voltaram a viver nova crise. Terminado o “milagre econômico” os recursos escassearam, e as coisas começaram a complicar de novo. Tudo isso trouxe uma série de problemas que foram se acumulando e se a agravando, com sucessivos movimentos de contestações e greves. E eis-nos então, de novo, discutindo Reforma Universitária, sendo que, agora, o próprio governo prega a reforma e chama todos para a discussão. Há desconfianças de todos os lados, mas sabe-se que é preciso mudar. Na verdade a universidade devia estar mudando sempre, num processo natural e contínuo. A necessidade de mudanças episódicas e sob cobranças político-sociais revelam que ainda precisamos evoluir muito.
Não tenho dúvidas em afirmar que a fase pré-1964 teve papel importante. Muitos aspectos discutidos naquela época são considerados ainda hoje, com as atualizações necessárias, impostas pela dinâmica do processo histórico-evolutivo nacional e mundial. A Reforma Universitária apresenta-se hoje mais complexa do que naquela época, mas com vários aspectos já bem conhecidos e discutidos. Deve-se observar que, com a aceleração da globalização, o nacionalismo tende a tornar-se uma bandeira distante e até desprezível para muitos, mas há certos valores que não podem ser simplesmente negligenciados ou abandonados como aqueles que são parte da nossa cultura e da nossa história. Esses valores precisam estar sempre presentes, e esperamos que no novo panorama, em busca do desenvolvimento sustentado, não predominem os interesses individuais, as influências culturais degenerativas e nem as velhas ou novas formas de controle das liberdades democráticas.