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Alipio Freire
em 11/12/1998
Alipio Freire*
Aquela sexta-feira 13 de dezembro de 1968 foi tensa. O clima vinha nervoso havia alguns dias e pela manhã recebi um telefonema do Jeremias (nome de guerra) que trabalhava na sucursal do Jornal do Brasil, ali na avenida São Luís. Marcava um almoço no Chá Mon – na Galeria Metrópole, o primeiro self service de São Paulo. Com outros companheiros da Ala Vermelha, formávamos a base de jornalistas, organismo do qual eu começava a ser deslocado para atuar no "setor militar" (unidades de combate).No almoço, Jeremias passou algumas informações que davam conta da prevalência das teses dos setores mais duros do regime: era iminente um fechamento maior, com intervenção no Legislativo, suspensão das garantias individuais que haviam sobrevivido à razia de 1964 e prisões. Um novo ato institucional seria anunciado nas próximas horas. Eu deveria repassar essas informações à direção da organização, com a qual teria um ponto no final da tarde, e deveríamos reforçar a segurança nas próximas horas. Nada de ficar circulando, dando bandeira. Confirmamos nossa reunião para a manhã seguinte. Voltei ao meu trabalho na Medisa – uma editora de revistas técnicas –, na Barão de Itapetininga. A tarde pareceu se arrastar, infinita, entre o rádio de pilha, os comentários dos companheiros da redação (todos de esquerda) e a revisão de textos sobre medicina e medicamentos.Nas ruas do Centro, as pessoas caminhavam como bons transeuntes. Será? Vá lá saber o que se passa nos corações e mentes dos aparentemente pacatos transeuntes. Eletricidade no ar, ou era apenas o meu espírito? Por fim, o ponto na Livraria Ler, atrás do Caetano de Campos. Seguimos para um boteco próximo à Vieira de Carvalho onde pedi uma dose de Otard Dupuy. O companheiro de direção que foi ao encontro, creio ter sido o Machado. Na verdade, apenas confirmamos um ao outro informações que já trazíamos, mas que não eram públicas nem oficiais. Não éramos inocentes: sabíamos que estava fora do nosso alcance reverter de imediato o quadro que se armava. Sabíamos também que aquelas divergências (qualquer que fosse seu desfecho) não produziriam no poder qualquer aliado – sequer pontual – para a nossa causa. A ditadura radicalizava. De certo modo, era o esperado, mesmo antes dos episódios que envolviam o Congresso Nacional. Era intrínseco à lógica do projeto dos golpistas. Inscrevia-se em sua escalada. Tratava-se antes de evitar quedas, proteger os militantes e a organização, e tirar algumas orientações políticas gerais para a ação junto aos movimentos onde atuávamos. E depois, bem... depois, prosseguir. Coberto pelo álibi que me conferia a condição de jornalista, circulei por lugares "manjados" pela repressão, inclusive a Maria Antônia. Cruzei caras conhecidas, mas não encontrei os militantes das outras organizações de esquerda com os quais mantinha contatos. Evitei procurá-los em suas casas.Nas ruas, os transeuntes caminhavam, os carros transitavam, a vida ia indo, mas não me parecia que essas coisas acontecessem normalmente.Conforme combinara com Machado, fui dormir no apartamento dos meus pais, na Luís Coelho, em frente ao que hoje é o Center 3.Lá ouvi e vi o locutor, acompanhado do ministro da Justiça Gama e Silva, anunciar as medidas: "... após ter ouvido os membros do Conselho de Segurança Nacional, resolveu baixar um ato institucional que tem como finalidade fundamental preservar a revolução de março de 1964 ..." Condensavam-se no anúncio oficial os motivos de nossas preocupações, as informações do Jeremias batiam.(Usei recentemente a imagem e o áudio dessa proclamação num vídeo: Viva o povo brasileiro, 1994. Ainda me perturba, ainda me deixa indignado.)À noite, não consegui dormir. Precisava trocar idéias, discutir, estar com os meus pares. Conspirar.Mas tinha que esperar a reunião do dia seguinte. Fora o combinado. Passei a noite dividido entre pensamentos, anotações para a reunião da manhã de sábado (nas quais pus fogo durante a madrugada) e desenhos com grafite, lápis de cor, nanquim e outras tintas à base de água. Folheei livros de história da arte.Às 7 horas em ponto desci, tomei um café na esquina da Luís Coelho com a Augusta, e na Paulista o ônibus Hospital das Clínicas-Cambuci, rumo à casa do Nei. Este fora convocado momentos antes pelo jornal onde cobria a área de política e tivemos que mudar o local do encontro.As 11 horas da manhã nos encontrou sentados no gramado do monumento à Independência, às "margens plácidas" do Ipiranga. Éramos uns seis ou oito, entre jornalistas e membros da Direção Regional. A idades variavam entre 23 e 27 anos. Lembro nitidamente das expressões nos rostos de Pedro, Tânia e Jeremias: traduziam nossos temores e nossas esperanças. O que derivava do Ato era óbvio. O que nos esperava depois do Ato era ainda mais óbvio. Nossos esforços (e não apenas da Ala Vermelha) de travar uma luta de massas contra o regime e o sistema sofreria um corte, mal começavam a florescer algumas dessas iniciativas. Era preciso recuar as lideranças que emergiam nas lutas de organização da oposição dos bancários, dos jornalistas, do movimento estudantil (universitário e secundarista), entre os artistas e intelectuais e outros setores médios urbanos. Novas levas de companheiros desses setores passavam à clandestinidade. À mais absoluta clandestinidade. Do nosso pequeno setor operário, a maioria já estava clandestina desde 1964. Virava-se mais uma página. Dispersamo-nos cheios de maus presságios, mas decididos a construir novos caminhos. Definíramos algumas tarefas mais urgentes, marcáramos pontos, combináramos reuniões.Em todo país, milhares de pequenas reuniões semelhantes à nossa devem ter acontecido naquele dia ou nos subseqüentes. Como nós, milhares de militantes das diversas tendências reafirmaram seus compromissos.Peguei uma carona com Pedro e Tânia num fusca verde escuro. Falamos do "setor militar" da organização e de medidas a serem encaminhadas no que dizia respeito à unidade de combate. A partir daquele momento, esse setor passaria a ocupar cada vez mais as nossas energias – resultado de nossas análises políticas, nosso instrumental teórico e, até mesmo, pela necessidade de mantermos uma pesada estrutura clandestina. Deixaram-me na avenida Paulista, no meio do caminho. Despedimo-nos. Acompanhava-nos a sensação – que desde então seria cada vez mais intensa e recorrente – de que poderia ser a última vez que nos encontrávamos.Sentei-me numa mesa na calçada do Fasano, no Conjunto Nacional, e pedi um sorvete de creme e chocolate, um misto quente em pão de forma e uma água. O garçom me olhou apenas estranhando a composição do pedido, enquanto eu olhava os transeuntes e os carros como se os estranhasse. Havia algum sol e brisa. Depois, fui cumprir minhas tarefas – enfim, a luta sempre continua.No final da tarde, voltei para o quarto-e-sala onde morava. Li jornais do Rio e de São Paulo. Queimei uns poucos papéis, mexi em pastas onde guardava desenhos de amigos, pus na vitrola portátil sucessivos LPs e me servi de conhaque. Tomei um banho para esperar a namorada. Já me sentia pronto para participar do novo capítulo que se abria.No som, Janis Joplin insistia: "no, no, no, no, no, no, no, no, no, no, don’t you cry ... ".Começava uma longa noite. Uma longa agonia.
Nela imergíamos todos. De cabeça erguida.
*Tem 53 anos, é jornalista e escritor. Editor da Revista Sem Terra, do MST, é também membro do conselho de redação da revista Teoria & Debate. Militou na Ala Vermelha em São Paulo, e esteve preso de agosto de 1969 até outubro de 1974.
FONTE: FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO
segunda-feira, 16 de julho de 2007
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Um comentário:
necessario verificar:)
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