segunda-feira, 16 de julho de 2007

Depoimento de Modesto da Silveira

FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS
CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (CPDOC)
ALERJ
Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. Permitida a cópia xerox. A citação deve ser textual, com indicação de fonte conforme abaixo.
SILVEIRA, Antônio Modesto Da. Antonio Modesto da Silveira (depoimento, 2000). Rio de Janeiro, CPDOC/ALERJ, 2001.
Esta entrevista foi realizada na vigência do convênio entre CPDOC/FGV e ALERJ. É obrigatório o crédito às instituições mencionadas.

ANTONIO MODESTO DA SILVEIRA
(depoimento, 2000)


O senhor se formou em direito em 1962, com o Brasil pegando fogo. Pouco depois viria o golpe de 64. Como viu o golpe, onde estava naquele momento?

Depois que me formei, eu e alguns amigos, colegas de faculdade, sem abandonar nossos empregos, nos associamos e abrimos um escritório. Éramos Zé Quarto — José Quarto de Oliveira Borges —, que depois se tornou procurador do Banespa, Maurício de Oliveira, que depois virou juiz, Werneck Viana, que era um excelente advogado mas deixou porque tinha paixão pelas ciências sociais... Mais tarde veio Rosa Cardoso, que foi secretária no governo Brizola,3 excelente advogada, que entrou no escritório ainda como estagiária, bem jovem. Enfim, éramos um grupo de amigos e estávamos indo muito bem. O escritório ficava na Cinelândia, e havia um comício marcado para lá no dia 1º de abril de 1964. Sabendo disso, e desconhecendo a evolução do golpe militar, resolvi ir. Tive grande dificuldade, porque tinha havido a decretação de uma greve de transportes; como eu morava no Humaitá, tive que ir de táxi. Quando cheguei, senti que o golpe estava na rua. Quem apareceu lá, também atordoado, tão ignorante quanto eu sobre o que estava acontecendo, foi Roland Corbisier: “O que está havendo?” Nós estávamos esperando as lideranças de oposição, que eram os trabalhistas, socialistas e comunistas, mas não aparecia ninguém. Enquanto estávamos ali conversando, chegou a tropa do Exército. Tanques e soldados com metralhadoras e baionetas caladas foram chegando em grande número. O povo, inocentemente, ensaiou aplausos. O Exército era subordinado ao governo, e o governo era o presidente João Goulart. Pois bem, ainda sob os ensaios de aplauso, os soldados fizeram a volta e viraram os canhões e baionetas contra o povo. A partir dali, começou a haver vaia. Quando as vaias começaram, eu me lembro bem, duas pessoas caíram ao meu lado, fuziladas. Mas não foram os soldados, foram dois homens à paisana, de aparência militar, que atiraram no povo que estava vaiando — atiraram para matar! Depois, os dois homens, seguros de si, atravessaram a rua bem na esquina da Santa Luzia com Rio Branco. Entreabriram-se aquelas portas gigantescas, pesadas, do Clube Militar, eles entraram, e as portas se fecharam de novo. E aí foi um corre-corre lá fora. Já nesse primeiro dia, o golpe militar deu a perceber mais ou menos qual era a sua filosofia. Fomos procurados no escritório por pessoas de esquerda, lideranças sindicais, trabalhadores, mulheres em desespero porque seus maridos tinham sumido, ou tinham sido arrastados de casa. Já em 1º de abril! Já ali percebemos que aquele movimento era contra o trabalhador, o que logo depois veio a se configurar. Como isso se configurou para mim nitidamente? Primeiro, porque naqueles primeiros dias todas as lideranças sindicais operárias passaram a ser cassadas, com “ss”, e com “ç” também, e quase todos os sindicatos de trabalhadores foram fechados, mas nenhuma liderança ou organização patronal foi incomodada. Era um recado muito claro da filosofia do movimento de 64: era um movimento contra o trabalhador e a favor do patronato. Logo depois, é claro, no plano teórico, surgiram as várias teorias que consolidavam essa prática. Por exemplo, o famoso crescimento do bolo: “É preciso preparar o bolo, fermentá-lo e fazê-lo crescer, para depois de grande fatiá-lo com todos.” Fatia essa que nunca veio, só veio mais arrocho salarial. Foi aí que nós entendemos melhor as coisas e começamos a atuar com mais clareza.

O senhor então começou a atuar como advogado de perseguidos políticos logo no início do regime militar?

Já aí. Já no dia 1º de abril fomos procurados no escritório por pessoas desesperadas. Se não me engano os primeiros foram a família do Pereirinha, que era líder bancário, ou do Oton Canedo Lopes, uma daquelas lideranças do famoso CGT. Tive a veleidade de ir ao Dops, na rua da Relação, para ver se falava com o preso, mas quando cheguei não pude nem ir à calçada do Dops, pois a polícia não permitia. Do outro lado da rua, ali do Bar Don Juan, ficamos observando o movimento. Enquanto eu estava lá, apareceu quem? Sobral Pinto,5 maravilhoso advogado, e advogado do governador da Guanabara, Carlos Lacerda, em todas aquelas brigas dele com o governo federal, portanto um homem com muito prestígio. O próprio Sobral Pinto não conseguiu entrar. Quando vi Sobral Pinto barrado no portão do Dops, pensei: “É um sonho querer entrar. Vou preparar um habeas-corpus” — até 68 ainda tivemos possibilidade de entrar com habeas-corpus. E começou a nossa luta. O escritório virou um muro de lamentações e de desespero. Acumulamos mil histórias de pessoas e seus sofrimentos, impostos por infinitas perseguições ideológicas.

Antes da edição do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, os advogados ainda conseguiam soltar os presos políticos com alguma rapidez?

Era um tanto mais fácil, porque a maioria dos casos preenchia condições legais de soltura. Habeas-corpus, só quem recebia era o Superior Tribunal Militar, para o qual se deslocou a competência jurídica para os processos políticos. Mas o Tribunal Militar era segunda instância. A primeira instância era o juiz auditor. Então, quando o juiz não estava sob coação, não era muito medroso, mandava soltar o preso, ou pelo menos mandava pedir informações e depois dizia: “Isso é ilegal. Melhor soltar.” Às vezes os advogados também ganhavam o habeas-corpus no Tribunal Militar, até porque a própria composição do tribunal favorecia isso. Ele era composto por 15 membros, 10 oficiais generais e cinco civis. Os oficiais generais eram três almirantes, três brigadeiros e quatro generais, e os cinco civis eram togados. Eram eles os verdadeiros juízes, pois eram os que entendiam de direito. Tanto que o relator em geral era civil, e os outros eram revisores. O togado era quem votava primeiro e dava a condução jurídica possível. Mesmo que fosse muito reacionário, pelo menos tinha a noção de que se devia, se possível, não violar a lei. A lei já era um lixo; se se fosse violar o lixo, onde cairíamos? Iríamos direto para a cloaca. Na maioria dos casos nós ganhávamos os habeas-corpus, às vezes até para trancar a continuação de um processo. Quantas vezes matamos o processo por via de habeas-corpus! Simplesmente, se interrompia o processo por falta de justa causa. Era uma coisa tão absurda, tão sem prova nem mesmo indício, uma tal vergonha, que até pela lei do menor esforço o juiz dizia: “Bom, realmente não dá pé. Isso não existe.” Às vezes, os presos eram meros reféns: mulher, para o marido aparecer; moça, para o namorado se apresentar. Criancinha! Eu vi criança de colo seqüestrada para o pai se entregar, conheci casos assim! Agora, quando acabaram com o habeas-corpus em 68, pelo AI-5, tivemos que ficar muito mais criativos. Quase todos os advogados eram liberais, alguns eram progressistas, mas havia um elo harmônico maravilhoso entre todos, o que fazia com que, sem troca de palavras, funcionássemos de forma praticamente orgânica. Tivemos que fazer muita ginástica, muita acrobacia mental a partir daquele momento. Fazíamos, e dava certo. Por exemplo, já que não podíamos mais apresentar uma petição de habeas-corpus, apresentávamos uma petição simples, sob outro título. Fazíamos a petição com fundamentos e argumentação fortes e com isso levávamos o juiz auditor a requisitar informações para saber se aquilo era verdade. Como era verdade — nós não podíamos mentir e nem precisávamos, porque os fatos eram por demais contundentes —, o juiz dava uma decisão geralmente salutar. O juiz auditor era um togado entre quatro militares, geralmente coronéis ou capitães. Quando recebia aquela petição, podia se impressionar ou não, mas em geral pedia informações. O encarregado do IPM consultava o promotor que o orientava, e eles davam um jeito. E funcionava, praticamente, como se fosse um habeas-corpus. Em resumo: era notável a eficiência, a cooperação e a solidariedade entre os advogados de perseguidos políticos.

Havia divergências dentro da Justiça Militar?

Ah, havia. Havia divergências até dentro do Doi-Codi, dentro do próprio sistema de repressão e tortura. Quantas vezes recebi telefonemas anônimos, de denúncia, que eu alimentava porque sentia que eram verdadeiros, e eram. E o que nos interessava era a verdade. Porque se você tem a verdade, você cria uma estratégia de defesa. Foi por descobrir certas verdades, às vezes através de telefonemas anônimos, que eu estou seguro de que conseguimos salvar a vida de muitas pessoas. Às vezes até blefando, não para a Justiça, mas para o torturador. Eu sabia, por exemplo, que um determinado cliente podia estar marcado para morrer, tinha um indiciozinho, e chegava para o torturador — não que fosse o torturador oficial, mas era o representante do esquema, o chefe da tortura; por exemplo, um delegado do Dops que, por ser muito reacionário, era ligado à chamada “área verde”, ou seja, ao Exército, na fase em que o Exército passou a assumir e a monopolizar todo esse esquema nazista —, pois bem, chegava para o torturador e dizia: “Doutor, é o seguinte. Eu não vou brigar, desde que o meu cliente, que está preso, não sofra de agora em diante nenhuma tortura, e o seu seqüestro seja legalizado. Se isso acontecer, eu, como advogado, aconselharei o meu cliente a não fazer nada. Está bem?” Porque ele estava escalado para morrer e ia morrer. Houve o caso, por exemplo, do advogado Afonso Celso, que tinha sido deputado estadual no antigo Estado do Rio e que foi seqüestrado pelo Codi e levado para a Oban, em São Paulo. Ele foi um dos que nós estamos convencidos de que salvamos a vida, exatamente por essa tática de trabalho. Houve o caso do Gildásio Cocenza, irmão da Gilda, ex-mulher do Henfil. Esse quase chegou a dizer a frase do circo romano “Morituri te salutant”. Foi levado para São Paulo para ser torturado e morto. No final, os torturadores tiraram os capuzes deles próprios e do Gildásio e disseram: “Bom, agora você pode nos conhecer.” Como quem diz: “Você vai morrer mesmo, logo pode ver a gente.” Mas nesse exato momento houve um corre-corre por causa de um meio blefe que eu fiz, baseado nos poucos dados que tinha. Um dos dados eu obtive do Ivan, filho do Henfil, que na época era um menininho e gostava muito do tio. De vez em quando o Gildásio, mesmo clandestino, ia buscar o menino para dar um passeio e, como quem não quer nada, dizia uma série de coisas que se tornaram úteis. Depois, a namorada dele também contou algumas coisas que ajudaram. Nós somamos aquilo, pegamos um fiozinho de lógica e montamos o blefe, que funcionou. Depois de me ouvir, o delegado disse: “Doutor, espera aí, ele não está aqui.” Respondi: “Não tem problema. Veja lá na sua ‘área verde’. Mas desde hoje ele não pode mais ser torturado”. Ele queria três dias. Eu disse: “Não. Três dias é muito. Eu tenho que tomar uma providência, não pode ficar do jeito que está. Eu tenho dados; não quero briga, mas tenho dados!” Acho que ele teve medo de ser envolvido, porque o Gildásio tinha sido preso por ele, que o entregara à Oban. O cara ia morrer, ele sabia disso e no dia seguinte disse: “Vai ser legalizado.” Foi legalizado e realmente não foi mais torturado.

Que outros advogados, além do senhor, se dedicavam a defender presos políticos?

Muito poucos. Além de Sobral Pinto, que era advogado de preso político desde 1935, havia Vivaldo Vasconcelos, Oswaldo Mendonça, Bento Rubião, Heleno Fragoso, Evaristo de Moraes, George Tavares, Eni Moreira, que ainda era estudante mas continuou, Rosa Cardoso, Humberto Jansen, Alcione Barreto. Depois entrou o Sussekind, que era defensor público mas não era proibido de pegar clientes. Manuel de Jesus também deu uma ajuda boa. Outros deram ajudas eventuais, como Paulo Sabóia e poucos mais.

E Lysaneas Maciel?

Só me lembro de ter participado com ele de uma audiência, na Aeronáutica. Acho que ele dava suporte a algumas pessoas, mas tinha alguma dificuldade, porque creio que era procurador. Por outro lado, ele era uma espécie de pastor ou presbítero, e as igrejas, no começo, ainda estavam com uma visão bastante estreita a respeito do problema. Mais tarde é que elas foram se conscientizando, de tal maneira que fui chamado para conversar seriamente com eles e até para dar palestras para pastores e bispos protestantes. Lysaneas deu uma grande ajuda em outras áreas, sobretudo políticas.

O senhor tem idéia de quantos presos políticos defendeu?

Heleno Fragoso afirmava que, pelos cálculos dele, quem mais defendeu presos políticos no Brasil fui eu. É muito difícil saber quantos defendi, porque às vezes eu funcionava junto com outro advogado, ou era advogado de dezenas de pessoas no mesmo processo. Vou dar um exemplo. Houve um grupo da Ishikawagima, de 60 e tantos presos, e fui procurado por todos. Eu não seria tolo de aceitar todos, porque pareceria que eu era um advogado orgânico: “Ele faz parte da organização dessa turma, e a organização o mandou defendê-los.” Para evitar esse tipo de cogitação e suspeita, eu chamava os colegas e sugeria: “Você figura com uns 10 ou 15, eu figuro com 30, outro com cinco, ou então figuramos conjuntamente.” Algumas procurações eram conjuntas, outras eram individuais, mas nós atuávamos em favor de todos, sem contradição. Já que falei na Ishikawagima, vou aproveitar para mostrar como muitas empresas, naquela época, se beneficiaram da situação. Como se sentiram no poder, elas puseram ou tentaram pôr os generais para fazer o seu trabalho sujo e os bancavam por trás. O que eles fizeram na Ishikawagima? Aproveitaram-se daqueles 60 e poucos “subversivos”, relacionaram quase 600 que queriam demitir por interesse econômico da empresa e os demitiram sem direito nenhum, sob a alegação de “subversão”, que era a palavra mágica. Como os 600 e tantos não puderam ser envolvidos em nenhum processo, porque era um absurdo, a própria Justiça acabou por reintegrá-los. E muitas outras empresas fizeram coisas assim. Ainda antes de 64, no fim do governo Jango, a direita estava tão articulada e organizada que, como eles sabiam que havia na Ishikawagima um foco de socialistas e comunistas, puseram lá dentro alguns olheiros. Um desses era um famoso policial do Dops chamado Mário Borges. Era um policial acostumado com a área política, um torturador, não sistemático, mas eventual. Era horroroso. Um dia, um dos meus clientes, Zé de Arimatéia, me contou que ele ficava na janelinha da cozinha anotando quem conversava com quem, quais eram os comunistas e os suspeitos. Ele já devia ter uma lista de suspeitos fornecida pela empresa e anotava todos os seus movimentos. Certo dia, fez uma ampla anotação que redundou na prisão de muita gente, não só daqueles 60 e tantos como de outros, que não entraram no processo. Um dos que foram presos foi torturado para contar a história do Chapeuzinho Vermelho. Ele não sabia do que se tratava e apanhou muito. Depois que saiu da tortura é que veio a saber pelos outros presos qual era a história. Sabem qual era? A Ishikawagima, como toda a empresa que lida com máquinas e óleos, graxa etc., costuma comprar muita estopa e trapo para limpeza. Numa dessas ocasiões, eles compraram meias vermelhas com defeito de fábrica. Quando os operários encontraram aquelas meias, simplesmente as cortaram, amarraram e puseram na cabeça para proteger o cabelo contra a graxa. Pois bem, burramente, todo mundo que botou chapeuzinho vermelho, o seu Mário Borges relacionou como comunista. E aquele pobre operário, se mal conhecia a história infantil, nada sabia de organização comunista... Eu vi montanhas de livros presos, bíblias apreendidas como material subversivo porque tinham capas vermelhas... Há muitas histórias tragicômicas, que seriam só cômicas se não houvesse tanto sofrimento envolvendo as pessoas. Mas, voltando à pergunta, ouso dizer que defendi alguns milhares de clientes. Não sei quantos, porque também tive que destruir documentos ao longo das perseguições que eu mesmo sofria. Tive que destruir até dois livros que escrevi sobre essa temática em períodos diferentes, depois de 68, principalmente, e antes de 78.

A partir de quando o senhor começou a ser perseguido? Desde 64?

Nesse momento não, até porque eu não era uma pessoa muito “queimada”. Mas depois perdi o emprego e fui muito perseguido. Fui seqüestrado, finalmente. Nos primeiros anos consegui me esgueirar, mas depois me seqüestraram.

Depois de 64, que tipo de atuação o senhor teve no Partido Comunista?

Pequena, no começo. E depois, dada aquela situação especial, eles também tinham uma relação especial comigo. Eu tinha um contato prudente com a alta direção. Além disso, fui advogado do Prestes, embora o advogado ostensivo dele sempre tenha sido Sobral Pinto. Mas eu também fui: dele, da filha Anita e da irmã Heloísa.

(...)

Como e quando o senhor foi seqüestrado?

No dia 13 de dezembro de 1968, dia do Ato 5, eu tinha uma audiência numa auditoria da Marinha, que era aquele terror. O clima político estava muito tenso. Nós tínhamos sabido que Sobral Pinto tinha sido seqüestrado numa viagem de Brasília para Goiânia, onde ia paraninfar uma turma de advogados, e os advogados dos processos daquela audiência ou resolveram não comparecer, ou não puderam fazê-lo. Eram Evaristinho, George Tavares, Heleno Fragoso, e nenhum compareceu. Mas eu compareci, até porque pensei: se tenho que ser preso, é melhor que o seja dentro da Justiça, porque aí se torna mais difícil desaparecerem comigo. Fui à auditoria, dentro do Ministério da Marinha, e lá denunciei a perspectiva do meu seqüestro.
Aconteceu o seguinte. Quando percebeu que os advogados não tinham ido, o promotor fez uma catilinária contra os ausentes: “Um desrespeito dos advogados, não comparecerem aqui! O país está na mais perfeita ordem, por que eles não comparecem?” — querendo intrigar, até para pedir algumas prisões preventivas. O juiz então me nomeou para substituir os outros, mas antes me consultou. Eu disse que teria muita honra em representar os meus colegas ausentes desde que os clientes deles concordassem, e aproveitei para, à moda shakespeareana no Júlio César, ironizar o promotor: “Diz o promotor que o país está na mais perfeita ordem. Mas todos nós sabemos que o decano dos advogados brasileiros, o professor Sobral Pinto, foi preso em Brasília quando ia para Goiânia. Os nossos colegas, advogados deste processo, podem ter tido o mesmo destino. E aliás, eu, por estar dizendo estas verdades, nada me assegura que, ao sair daqui, não seja também seqüestrado. Do lado de fora ou, quem sabe, até dentro da área do ministério.” E continuei: “Se eu desaparecer das próximas audiências, não pense o senhor promotor que é desrespeito ou desídia do advogado. Seguramente será por uma impossibilidade de altíssimo grau, como por exemplo um seqüestro em minha casa.” Isso, em 1968, me poupou quase dois anos. Só vim a ser seqüestrado em 1970. Fui então levado para o Doi-Codi, mas pensei: esta não foi a pior das coisas que me aconteceram. Por exemplo, as minhas filhas eram todas pequenininhas. Às vezes eu estava falando durante uma audiência numa auditoria militar e via um escrivão angustiado. Mal terminava a minha fala, e ele vinha rápido, dizendo: “Doutor, corra! O telefone está chamando o senhor!” Eu ia ao telefone e alguém dizia: “Ah, dr. Modesto? Eu queria avisar ao senhor que a sua filhinha fulana de tal, aquela pequenininha” — dava até o tipo da menina — “acabou de ser atropelada aqui na rua Humaitá. Ela está morrendo.” Eu, em desespero, ligava para casa e via que era um mero terror psicológico. Não era verdade, a menina estava lá muito bem. Esse tipo de coisa aconteceu muito. E também cartas anônimas fazendo ameaças, às vezes até sugestões diretas. Quantos desses torturadores, os famosos coronéis de IPM, me perguntavam sugestivamente: “O senhor não tem medo?” “Mas medo de quê?” “Ah, de sofrer alguma coisa…” “O que eu posso sofrer? Sou cuidadoso, não faço nada errado.” “Não, mas o senhor não pode ser atropelado? O senhor vive com a cabeça cheia...” Às vezes até diretamente falavam. É claro que eu entendia o recado de ameaça, que vinha de mil formas e em mil ocasiões diferentes. Por isso é que eu digo que esse seqüestro que sofri foi talvez o menos grave que me aconteceu nesse período. E eu não fui o único, como ia dizendo. Além de Sobral Pinto, quase todos os advogados da área sofreram não só pressão, como seqüestro também. Houve um fim de semana — em geral eles preferiam fim de semana, sobretudo fim de semana longo — em que seqüestraram Heleno Fragoso, George Tavares, Sussekind… O meu seqüestro foi assim: eu quase nunca tinha tempo de passear, nem de coisa nenhuma, mas, quando tinha, telefonava para minha mulher e perguntava se ela queria fazer alguma coisa. Nesse dia, nós conseguimos ir a um cinema, sessão das 10. Quando cheguei em casa vindo do cinema, à meia noite e meia, por aí, percebi que o meu seqüestro estava montado na rua, pelo ambiente, pelo clima e pelas pessoas espalhadas. Fui seqüestrado e levado inicialmente para o meio do mato, para uma estrada que sai da avenida Niemeyer, no número 550. Hoje é um pequeno bairro que sobe, mas naquela época havia muito poucas casas lá no fundo. Eu nem conhecia aquilo. Me levaram para lá, e na minha frente iam carros, metralhadoras, fuzis — até metralhadoras semipesadas eles tinham, dessas pesadíssimas para um homem. Era uma equipe grande. Enquanto estava sendo levado, pensei: “Eles vão me fuzilar.” O AI-5 em plena vigência, total impunidade para o torturador e para o assassino oficial e oficioso… “Eles vão me matar aqui nesse mato e ainda vão fazer uma montagem no meu escritório. Vão lá tirar o meu material profissional, furtar documentos, e dizer que foram os comunistas.” Aí, o que eu fiz? Eu tinha a chave do escritório num bolsinho. Perguntei a um dos seqüestradores, o que me pareceu mais acessível: “Escuta, você não disse que nós íamos para o Doi-Codi?” Ele, do mesmo jeito que estava, respondeu ríspido: “Vamos fazer uma diligência. Depois iremos.” Enquanto eu falava com ele, tirei do bolsinho a chave do meu escritório, passei-a por cima do ombro, a janela estava aberta, e a chave caiu no mato, enquanto a caminhonete subia aquela estradinha em ziguezague. Depois de uma certa altura eles pararam, ficaram dois comigo e os outros foram lá para seqüestrar mais alguém. Depois voltaram e ouvi um dizendo: “Chefe, ela não está aí” — era uma mulher que mais tarde eu vim a saber quem era —, “foi para Santa Catarina.” Não puderam levar essa pessoa, e dali realmente fomos para o Doi-Codi, naquele quartel da PE, na Barão de Mesquita, e lá fui interrogado. Já de começo, quando cheguei, havia uma mesa grande, e me levaram para a frente dessa mesa. Veio um nazista daqueles, sem nome, à paisana, sentou e botou as botas em cima da mesa — pelas botas eu vi que era militar, depois vim a saber que era major ou coronel — bem na minha direção. Meu rosto ficou entre o V das botas dele. Ele me olhou, e em volta de mim, em meia-lua, estavam todos os torturadores que foram me buscar. Disse: “Aqui não tem doutor. Doutor somos nós.” Realmente, eles se chamavam de doutores e chefes, nunca se chamavam pelo nome na frente de um preso. “Aqui não tem habeas-corpus, habeas-corpus somos nós. Aqui não tem Justiça, Justiça somos nós. E vai falando, doutor!” Quando ele disse isso, eu percebi: “Bom, ele não está tão seguro assim. Se diz que não tem doutor e me chama de doutor, é porque ele mesmo não está certo se tem ou não tem.” Aí eu disse: “Falando o quê? O que os senhores querem saber?” Ele: “Tudo o que sabe!” Eu: “Tudo o que eu sei, qualquer um pode saber. O senhor tem direito. Se quiser, pode ir à Justiça, porque pela lei os processos são públicos. Qualquer pessoa habilitada e interessada pode ir lá e pode até tirar certidão se quiser. Tudo o que eu sei está lá.” Ele: “Ah, não vai falar não? Leva!” Aí me levaram para uma salinha pequena. Ele próprio veio, mais uns poucos, porque a sala era menor, e de novo fiquei de frente para uma mesa, ele com os pés em cima. Também sobre a mesa, um revólver e um aparelho de choque, daqueles de campanha, que foram muito usados. As paredes sujas de sangue e de tudo quanto é porcaria. Um ambiente já de constrangimento, de coação. Ele dizia: “Não vai falar?” Eu: “Falo o que sei e posso. Mas o que sei e posso não lhe interessa. O senhor lê no processo que é mais exato. Eu posso não ter boa memória.” Ele: “Mas não tem mais nada?” Eu: “Mais nada.” Aí, eles trouxeram uma senhora toda quebrada, e ele perguntou: “Esse é o dr. Modesto?” “É, sim senhor.” “A senhora se encontrou com ele?” “Encontrei sim.” Ela foi confirmando coisas que até eram verdadeiras, mas que não diziam nada. “Encontrou onde?” “Em Niterói.” “Qual era a finalidade?” “Dar dinheiro a ele.” Enfim, foi fazendo perguntas nesse nível, e ela realmente não estava dizendo nada de criminoso. Afinal ele disse: “Podem levar”. Levaram-na. “Então, não tem nada a dizer?” Eu: “Não. O que ela disse é verdade. Só não está explicado. Recebi o pagamento dela num dia de audiência em Niterói.” Quando o cliente podia e queria pagar, nós recebíamos. Se não podia ou não queria, não cobrávamos, e isso era a maioria: 90% deles jamais pagaram um centavo; ao contrário, às vezes nós é que tínhamos despesas para ajudá-los. Às vezes também acontecia de uma pessoa aparecer com um dinheiro vindo da chamada solidariedade familiar. As pessoas ou as organizações pediam: “A mulher do fulano está morrendo de fome com os filhos. Por favor, o senhor pode passar esse envelope com dinheiro para ela?” Eu dizia: “Claro, tudo bem.” Era apenas um ato de humanidade, não havia nenhuma irregularidade nisso, nenhum crime. Pois bem. Quando eles se convenceram de que eu não tinha nada a dizer, senão o que estava nos processos, e que eu insistia em não dizer nem mesmo isso — “o processo é público, o senhor vá e veja”, ou então “o senhor pode pedir até certidão, trazer e ler, que eu não tenho nada a dizer, até porque minha memória não é boa para isso” —, começaram a pensar em me mandar embora. Passei a noite toda sob ameaças, respondendo a questionários infinitos e burros, nesse mesmo nível, sem dizer nada. Ao mesmo tempo, a OAB tomou conhecimento do meu seqüestro, pois quando saí de casa soprei para a minha mulher: “Telefone para a OAB e dê a informação”, e agiu rapidamente. Na mesma hora nomeou Evaristo de Moraes e George Tavares para me darem assistência como advogados, e eles atuaram rápido. Por outro lado, eu não tinha nenhuma atividade ilegal, minha atuação era toda fundada na legislação conservadora e reacionária existente, da qual nós aproveitávamos as brechas mais humanísticas para abrandar as penas ou absolver as pessoas — isso era conseguido na imensa maioria das vezes, graças a muitos juízes sensíveis e competentes. Afinal, no outro dia, à tarde, me soltaram. Acharam que eu não valia o preço de uma denúncia de tortura a advogado, até porque àquela altura meu nome era bastante conhecido, mesmo internacionalmente. Havia realmente muitas organizações internacionais e ONGs que acompanhavam o nosso trabalho. Vou dar um exemplo. Uma ocasião, quando houve o julgamento da Niomar Sodré, que era dona do Correio da Manhã, eles montaram um esquema teatral muito simpático e legal na auditoria militar, porque a ONU resolveu mandar como observador um dos seus maiores assessores jurídicos, Sebastián Soler, um jurista argentino muito respeitado, um doutrinador. Sebastián Soler veio e ficou bem impressionado com o julgamento. Mas, como ele queria conversar conosco, eu, Heleno Fragoso, Evaristo e se não me engano Jansen fomos bater um papo com ele e tomar um refresco. Ele nos disse: “Fiquei bem impressionado. Eles se conduziram corretamente, como um tribunal, não vi nada de anormal.” Aí eu pedi a palavra: “Mas o senhor me permita dizer que aquilo não é o normal, não é a rotina.” E contei: “Ao mesmo tempo que aquela sessão teatralizada se passava, eu tive uma audiência um pouco antes em que a minha cliente foi torturada dentro da sala de outra auditoria.” E dei o nome, da cliente e da auditoria. “Aconteceu isso, isso e isso. E nós próprios, para chegarmos à nossa mesa, tínhamos que passar por um corredor de soldados com metralhadoras e fuzis de baioneta calada. E cada um de nós estava sob a mira de um fuzil.” Ele perguntou ao Heleno se isso podia ser verdade, e o Heleno respondeu: “É exatamente isso.” Todos confirmaram. E aí nós demos para ele o AI-5. Ele lia português e chegou a emitir expressões assim: “Isto é uma antilei!”

Qual foi o papel da OAB nessa época?

A OAB passou a ter um papel importante depois do AI-5, quando nós conseguimos ganhá-la. Ganhamos em parte e depois, finalmente, no todo. Até então a OAB era conservadora e tradicional. A advocacia, fundamentalmente, é uma profissão conservadora. Como o advogado existe para manter o que está na lei, para conservar a lei, a tendência dele é ser conservador. Mas o conservador da lei, numa etapa autoritária de governo, já está avançado. Para nós isso já ajudava alguma coisa. E mais tarde a OAB veio a ajudar mais ainda, quando passou a ter uma maioria de liberais e progressistas na sua direção.
Pode-se concluir que houve então dois momentos distintos na história da OAB sob o regime militar?

Sim. A OAB, como quase toda organização profissional tradicional, tem resquícios de corporação de ofício. Ela funcionou, quase que desde a sua criação, como corporação de ofício dos advogados ricos, sobretudo dos advogados da Light. Mas mesmo esses davam alguma ajuda porque, como eu disse, eram conservadores, mas em geral não eram reacionários nem concordavam com torturadores. Para nós, um conservador já era, em alguns momentos, quase um aliado. Mas como eles ajudavam muito pouco, nós começamos uma campanha, exatamente em 68, para eleger quem prestasse para a OAB e para, dessa maneira, colocá-la numa posição de luta em favor do associado. Sem dinheiro, sem preparação, com toda a manipulação, pusemos seis nomes da maior categoria na direção da OAB.

(...)

Os exilados voltaram em função da lei de anistia. Como o senhor viu essa lei, promulgada em 28 de agosto de 1979?

Aquela lei restrita de anistia, a 6.683, que nós conseguimos fazer passar, não era o que queríamos. Nós lutávamos pela anistia ampla, geral e irrestrita e conseguimos apenas aquilo, num acordo interpartidário em que o governo tinha a maioria. Mas aquele arremedo de anistia que saiu já beneficiou uma boa parcela de perseguidos políticos. Foi graças àquela lei que conseguimos fazer voltar, se não todos, quase todos os exilados e perseguidos políticos lá de fora.

Afinal a lei se mostrou mais ampla do se supôs de início, não?

Só foi ampla para os torturadores, para os torturados não. Se parte deles teve algum benefício, foi porque o momento era de amplitude e abertura. Se fosse um momento de fechamento político, não funcionaria. Depois vieram outras leis de anistia, amplificações da 6.683: a Emenda Constitucional nº 26, de 1985, e o artigo 8º do ato das disposições constitucionais transitórias da Constituição de 1988. Mas o fato é que, além de ter saído a lei da anistia, em 1979 começou o fracionamento dos partidos. E eu era favorável à manutenção da unidade por mais uma eleição, talvez.

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