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Flávio Aguiar
em 11/12/1998
Flávio Aguiar*
Tomei conhecimento da edição do Ato Institucional nº 5 na noite do dia 13 de dezembro de 1968. Eu estava na casa de campo dos pais de minha namorada, Iole Druck, no balneário de Belém Novo, em Porto Alegre. O pai dela ouviu a notícia no rádio e nos comunicou o fato. As conseqüências do clima repressivo intensificado – pois no sul, pelo menos, a repressão fora brutal desde 1964 – em minha vida foram imediatas. Eu trabalhava no Colégio Israelita Brasileiro e nos dias subseqüentes, junto com mais três professores e o próprio coordenador do Curso Colegial, Rui Carlos Ostermann, fomos convidados a deixar a escola, por serem nossas atividades consideradas como demasiado esquerdistas pelos responsáveis da mantenedora. Em razão disto, instalou-se uma crise que levou 17 professores à demissão coletiva, destruindo o trabalho acumulado. Este processo apressou resolução que eu já tinha tomado, de transferir-me para São Paulo, onde desejava terminar o curso de Letras e fazer pós-graduação.
Dentro do clima de arbítrio deflagrado, com a suspensão completa das garantias constitucionais, o grupo de Teoria Literária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, de que eu fazia parte, com a liderança dos professores Angelo Ricci e Dionísio Toledo, foi todo compulsoriamente aposentado em 1969. Esta foi uma das razões pelas quais a hipótese de retornar a Porto Alegre fechou-se para mim e eu acabei fixando-me em São Paulo, onde comecei a trabalhar na USP em 1972. Em julho de 1971 fui preso pelo Doi-Codi, juntamente com minha companheira Iole, suspeitos de participarmos ativamente das ações de grupo clandestino. Lembro-me de ouvir seus gritos – que nunca mais me saíram da memória – ao ser submetida a choques elétricos. Pessoalmente não sofri torturas físicas e o pior que tive de passar foi por um interrogatório de quatro horas de duração com várias ameaças de todos os tipos, além de se passar um pente fino em minhas atividades, inclusive profissionais. Na verdade, na época, estávamos implicados em ajudar a fuga de companheiros ameaçados do país, e essa foi a razão real de nossa prisão. Éramos "peixes pequenos", como se dizia então. Meu irmão Rogério nos acompanhou neste momento difícil – pois estava conosco no momento da detenção – e ficou trancafiado os dias que lá passamos. Os dias foram poucos, libertados que fomos no quarto dia pela mesma equipe que nos deteve, como era costume no Doi-Codi. Devo registrar que esse tempo recorde da liberação deveu-se aos esforços da família de Iole.
Em 1974 fui ameaçado, com mais quatro professores da Faculdade de Filosofia, de ter meu contrato rescindido, com base em acusações de natureza política. Mas os tempos eram outros. Diante da reação solidária de muitos professores da Universidade, entre eles os professores Antonio Candido e Décio de Almeida Prado, a rescisão foi trocada por uma promessa de não renovação do contrato quando do seu término. Mas logo em seguida a oposição venceu em número de votos as eleições daquele ano, e consolidou-se aquela interminável política de distensão "lenta, segura e gradual" do general Geisel mas que, verdade seja dita, trouxe pequenos desafogos ao neutralizar os grupos mais fascistas dentro do "Sistema", como se dizia então. E a seguir, em novo episódio de ameaças de rescisões contratuais, descobriu-se que na verdade estas eram tramadas dentro da própria Reitoria da Universidade de São Paulo, com a conivência, é claro, do representante do Serviço Nacional de Informações lá instalado em plantão permanente. Descoberta a manobra, e sobretudo o fato de que na verdade ela não dispunha de apoio, pelo menos ostensivo, em Brasília, ela foi neutralizada e o grupo responsável desarticulado.
Durante todo o tempo da ditadura trabalhei em jornais alternativos. Aquele em que fiquei mais tempo – Movimento –, no qual fui editor de Cultura, era submetido à censura prévia, em Brasília, com base no Ato 5.
Diante das iniqüidades cometidas, que envolveram torturas, mortes, exílios prolongados, perda de empregos, e de alguns fatos desta natureza de que fui testemunha próxima, considero que os efeitos diretos do Ato 5 em minha vida pessoal foram pequenos, embora indeléveis. Quanto aos efeitos indiretos, como sobre todo mundo no Brasil, foram enormes, pois todos fomos, numa penada, postos numa espécie de clandestinidade, em que tudo podia acontecer e nada ser apurado. Uma última observação. Hoje há uma tendência, por parte de algumas pessoas e instituições, especialmente aquelas que se dizem liberais e que foram coniventes, cúmplices, ou articuladoras diretas do golpe de 1964, em quererem construir a versão de que o Ato 5 foi um "desvio" dos "nobres" motivos dos golpistas. Discordo, e veementemente. A instalação despudorada da barbárie, que o Ato 5 significou, estava embutida no regime militar desde a sua conspiração. Graças a ele tivemos no Brasil o regime mais iníquo de toda a nossa história.
*Professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Militou no Movimento Estudantil desde 1961. Trabalhou ou colaborou em vários jornais da imprensa alternativa durante a ditadura. Foi presidente da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp), hoje Seção Sindical da ANDES-SN, na gestão 89/91. Ocupou outros cargos no movimento sindical, tendo sido assessor para educação da Secretaria de Políticas Sociais da CUT. Membro do Conselho Editorial da revista Teoria & Debate, hoje é coordenador do Centro Ángel Rama da FFLCH-USP.
FONTE: FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO
domingo, 15 de julho de 2007
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