quarta-feira, 18 de julho de 2007

DEPOIMENTO DE IRUN SANT`ANNA - SOBRE A FUNDAÇÃO DA UNE

PRÉ-HISTÓRIA DA UNE E SUA FUNDAÇÃO, INSTALAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO (BASEADA EM MINHAS MEMÓRIAS, NO LIVRO “O PODER JOVEM” DE ARTHUR JOSÉ POERNER E NA MEMÓRIA DE DANTE VIGGIANI)

IRUN SANT`ANNA
[1]

Seja por doação, empréstimo ou mesmo aluguel, a Casa do Estudante veio a se instalar num velho casarão do Largo da Carioca. No 1º andar, após subir uma íngreme escada, um vasto salão estava instalado um bandejão (dos primeiros da época) frequentadíssimo. No segundo andar, o gabinete de Ana Amélia tendo em torno as salas da secretaria, da correspondência nacional e internacional e mais afastadas, as salas onde funcionavam a União Universitária Feminina, a Federação Atlética de Estudantes e outras entidades estudantis. Também havia um ambulatório no qual eu fui exercer, propositadamente, atividades para me inscrever na entidade, ali conquistando popularidade, baseado na minha longa experiência no ambulatório de doenças venéreas da Fundação Gaffrée Guinle, exercendo a principal especialidade da época, a urologia.
Tanto a minha ida para a Casa do Estudante como a de outros companheiros, coroavam mudanças de visão política dos estudantes comunistas. No período de 1934 a 1937 os estudantes comunistas se esforçaram em realizar congressos, criar e fazer funcionar entidades com cunho ideológico de esquerda e antifascista, mas desligadas da massa estudantil. Foi assim com o 1º Congresso da Juventude Operária-Estudantil, “cujo comitê dirigente e organizador era composto por Ivan Pedro de Martins (Presidente)
[2], Carlos Lacerda (vice), Edmundo Muniz (secretário), Jorge Amado[3] e Medeiros Lima[4]”. Todos eles esquerdistas, comunistas ou acompanhando a linha da Juventude Comunista da época, exceto Edmundo Moniz, trotquista declarado. Todos eles foram presos ou tiveram que cair na clandestinidade após novembro de 35.
Foi assim com a União Democrática Estudantil que em 1936/37 surgiu como uma entidade antifascista de estudantes e que terminou com seus membros presos, perseguidos quando o General Newton Cavalcanti (integralista) criou na Vila Militar o primeiro e único campo de concentração do Brasil.
Da União Democrática Estudantil faziam parte os estudantes de Direito, Raul Lins e Silva, Medeiros Lima, Dante Viggiani, Hélio Walcacer, Carrera Guerra, Emílio Amorim, Gustavo Simões Barbosa e os estudantes de Medicina, Aurélio Monteiro, Milton José Lobato, Esmeraldino Mathias, Waldir Medeiros Duarte e eu. Todos comunistas ou simpatizantes.
Aqui, como em vários episódios da criação da UNE atuava Eliezer Schneider mais como dirigente da Juventude Comunista de que como estudante.
Apesar de não ter conseguido nunca ser um verdadeiro órgão estudantil, a U.D.E. teve naquela época, de repressão fascista, o papel que seu nome indicava. Suas notas, manifestos e outros materiais eram publicados religiosamente no conservador Jornal do Commercio e aleatoriamente em outros jornais.
Através de um simpatizante que trabalhava nos jornais Associados de Chato, aquelas mesmas matérias antifascistas eram transmitidas para o mundo, de madrugada, com a nossa participação, através das agências internacionais de notícias Havas e United Press, com sede no Chile.
Foi assim com a Associação Reivindicadora dos Estudantes de Medicina, que, apesar de levantar questões justas, como a faculdade gratuita (naqueles tempos não haviam Universidades e as taxas oficiais eram mais caras que as das faculdades particulares) ou medida para tornar pragmático o ensino, não tinha apoio dos estudantes por não se inserir no viés oficial dos Diretórios.
Após o fechamento da União Democrática Estudantil travou-se uma séria discussão política que levou à conclusão da necessidade de nos inserirmos nos órgãos oficiais dos estudantes. Cumprindo esta diretiva já no início de 1938, conquistávamos, em todo o Brasil, participação nos diretórios de várias faculdades.
Tornou-se claro para nós a necessidade de criar, em bases democráticas e sem arroubos esquerdistas, um órgão nacional de estudantes. Ana Amélia já se adiantara promovendo a instalação do 1º Congresso Nacional de Estudantes que veio a se denominar 2º Congresso, porque fomos comunicados pelo Dr. Jorge Dodsworth Martins, médico irmão do político Henrique Dodsworth, interventor federal no então Distrito Federal, que hoje é o Rio de Janeiro, de que já ajudara a realizar um 1º Congresso Nacional de Estudantes em São Paulo, em 1910.
Nosso objetivo era criar um lídimo órgão nacional dos estudantes de caráter representativo indiscutível, democrático, antifascista, voltado para os interesses dos estudantes, mas, ao mesmo tempo, ligado às grandes questões nacionais como a industrialização do país, a siderurgia, o petróleo.
“Cerca de 80 associações universitárias e secundárias, da maioria dos Estados, acorreram à convocação, participando no dia 05 de dezembro de 1938, às 20 h, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, da sessão de abertura do 2º Congresso, à qual compareceram muitos professores universitários e grande número de estudantes, além de um representante do Ministro da Educação. Inúmeros oradores se fizeram ouvir, na ocasião, entre eles o Prof. Evaristo de Morais, em nome dos mestres universitários, o futuro cientista nuclear José Leite Lopes, pela delegação estudantil pernambucana e Bercelino Maia
[5], representando os estudantes secundários”.
Apesar de estarmos em pleno Estado Novo, o governador Getúlio Vargas teve que engolir o Congresso. Mas para termos idéia do ambiente opressor, o orador oficial Wagner Cavalcanti, para defender a democracia, teve que basear o seu discurso no do então presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, no Vassar College.
A preocupação com os problemas nacionais, da luta contra analfabetismo à implantação da siderurgia, se manifestou em muitas das 60 teses discutidas as 13 sessões plenárias, tais como “Os Estudantes e a Siderurgia”, de Marcelo de Meneses, da Faculdade de Direito da UB, “Orientação Universitária”, de Armando Calil
[6] do Centro Acadêmico de Direito do Paraná, que alertou os colegas para “o perigo de ensinamentos reacionários’ e propôs a criação de uma cadeira de Sociologia em todos os cursos superiores, além de “considerar perigo iminente a absorção da Universidade pelo Estado”; “Função da Universidade”, de João Paulo Bittencourt[7], do Centro Acadêmico XI de Agosto da Faculdade de Direito de S. Paulo, que enalteceu a importância da ação social universitária e pediu a cooperação das Escolas Naval e Militar, “considerando-as como institutos universitários”; “Consideração de Ordem Geral sobre Regime Universitário – Harmonia com a Realidade Brasileira e Orientação Teórico-Prática”, de Danilo Frasca, da Federação de Estudantes Universitários de Porto Alegre, que acentuou a necessidade de organização da Universidade” segundo um tipo brasileiro, conforme as condições que regulam nossa vida e as peculiaridades da nossa alma”, e de sua ligação à realidade do País; “Orientação Técnica e Profissional”, de Guilherme de Almeida e Silva, do Diretório Acadêmico da Escola Eletromecânica da Bahia, que sugeriu a manutenção de cursos especializados para técnicos, sobretudo para operários, nas Universidades, com vistas à industrialização do País e à “formação de uma mentalidade capaz de conquistar o Brasil para os brasileiros, na exploração intensiva e em grande escala de suas riquezas extraordinárias”; “Difusão da Cultura e Problema do Livro e Publicações, de Irun Sant´Anna[8], da Casa do Estudante do Brasil, que reivindicou o barateamento do preço do papel, mediante o fomento à instalação de fábricas nacionais e a concessão de facilidades de importação de maquinismo e técnicos, ao mesmo tempo que denunciou o “truste estrangeiro do papel” e os obstáculos antepostos à entrada, no País, ‘de qualquer livro que tenha um leve e fugidio tom de democracia, sob o pretexto de evitar penetrações de doutrinas exóticas”; “Difusão da Cultura”, de Medeiros Lima[9], da Federação Atlética de Estudantes, que encareceu “a necessidade de libertar a economia nacional da exploração imperialista”, pleiteou a redução das taxas e matrículas e a intensificação “da luta pela nacionalização do ensino” e recomendou que se pusesse termo à limitação do número das vagas nas escolas superiores; e “Educação de Adultos”, de Rubens Brito, da Casa do Estudante do Brasil, que sustentou a conveniência da criação de Universidades Populares, para fazer frente ao crescente analfabetismo.
...
Outras teses interessantes foram a “Situação Econômica do Estudante”, de Valdir Ramos Borges, da Federação dos Estudantes Universitários de Porto Alegre, que propôs o lançamento de uma campanha no sentido de mais Casas do Estudante, então já formadas em alguns Estados (Pernambuco, Ceará, Paraíba e Espírito Santo); “A Mulher Estudante Frente ao Problema do Lar”, de Leda Boechat
[10], da União Universitária Feminina, que defendeu, entre outros pontos altamente revolucionários para a época, a instituição do divórcio e do exame pré-nupcial obrigatório, bem como o amparo das leis trabalhistas à mulher; e, finalmente, “União Nacional dos Estudantes Brasileiros”, de Antônio Franca[11], do Diretório Acadêmico da Faculdade Nacional de Direito, segundo o qual o Conselho Nacional de Estudantes demonstrara que, sem uniões estaduais, seria difícil a formação de uma organização estudantil nacional.
Antonio Franca, grande batalhador pela criação da UNE, da qual seria o secretário-geral e figura principal nos três primeiros anos, contribuiu, com sua tese, para a decisão mais transcendente do 2º Congresso, transformado, automaticamente, em 22 de dezembro (de 1938), na segunda assembléia do Conselho Nacional de Estudantes: a formação efetiva e o reconhecimento formal da UNE, bem como a aprovação dos seus Estatutos, pelos quais ela se tornou, oficialmente, “o órgão máximo de representação dos estudantes no Brasil para a defesa dos seus interesses”. O Conselho Nacional de Estudantes passou à condição de órgão deliberativo da UNE – exatamente o que seria, depois, o Congresso da UNE - e a nova entidade instalou sua sede e secretaria na Casa do Estudante do Brasil.
Face às considerações acima, somos daqueles que consideram como data da fundação da U.N.E. 22 de dezembro de 1938, ao término do 2º Congresso Nacional de Estudantes e não 11 de agosto de 1937. Esta data é a data anti-UNE por excelência, pois marcou a intenção de matá-la no nascedouro.
Ao Conselho Nacional de Estudantes cabia a eleição da Diretoria da UNE, o que cumpriu logo após a aprovação do Estatuto, na tarde de 22 de dezembro de 1938. Apurados votos, a primeira Diretoria oficial da UNE, com mandato de dezembro de 1938 a agosto de 1939, ficou assim constituída: presidente – o gaúcho Valdir Ramos Borges (posteriormente, próspero advogado, inclusive do ex-presidente João Goulart, de cujo último Ministro da Fazenda, Ney Galvão, chefiou o Gabinete); vice-presidente – Armando Calil
[12], do Centro Acadêmico de Direito do Paraná; 2º vice-presidente – César Barbosa Filho, do Centro Acadêmico XI de Agosto; 3º vice-presidente – Newton Pimentel, do Diretório Acadêmico da Faculdade de Medicina do Recife; secretário-geral – Antônio Franca[13]; 1º secretário (de Relações Internacionais) – Clotilde Cavalcanti[14], da Casa do Estudante do Brasil; 2º secretário (de Relações Nacionais) – Américo Reis[15], do Diretório Acadêmico da Escola Nacional de Agronomia; e tesoureiro – Wagner Cavalcanti[16], do CACO.
À parte essas realizações e iniciativas, o maior problema da gestão de Valdir Borges constituiu no agravamento da crise que lavrara, desde a instalação do conclave anterior, nos bastidores da política estudantil, entre a UNE e a Casa do Estudante do Brasil
Aqui nos detemos para transcrever a notícia de uma ocorrência de suma importância, paralela ao II Congresso Nacional de Estudantes e totalmente esquecida. Para isso vamos nos servir do meu livro “Brasil, país sem futuro?”
Em 1938, quando organizamos o Congresso Nacional de Estudantes que consolidou (ou criou) a UNE, tivemos a idéia de promover um teatro universitário. Aprovada a idéia, procuramos Paschoal Carlos Magno, escritor, diplomata e um dos maiores agitadores culturais que o Brasil já teve. Este, não só aceitou como quis iniciar audaciosamente: Romeu e Julieta, de Shakespeare, no Teatro Municipal, com estudantes amadores, dirigidos pela grande dama do nosso teatro na época, Itália Fausta. Quase desmaiamos, mas não poderíamos recuar. Pois foi um sucesso.
Desta iniciativa resultou o início da carreira de Paulo Porto, Sônia Oiticica, Sandro Polônio, Iara Salles e vários outros.
Essa iniciativa foi o embrião, a nosso ver, do interesse da U.N.E. pelo teatro universitário, como registra o livro “O Poder Jovem”.
No mais, a segunda diretoria da U.N.E. procurou impulsionar bastante o teatro estudantil, através de uma comissão especialmente designada para esse fim – na qual despontava o estudante Mário Brasini – e da instituição de um Concurso Nacional de Peças ...
Voltando à política, é interessante verificar que a influência do Partido perdurou através de seus quadros de 1938 a 1942.
O 3º Conselho elegeu os nomes incumbidos de suceder a gestão de Valdir Borges. Com mandato de agosto de 1939 a julho de 1940, essa nova diretoria tinha entre seus membros: secretário-geral – Antônio Franca (reeleito)
[17], presidente do CACO; secretário de Relações Nacionais – Américo Reis[18] (reeleito), presidente do Diretório Acadêmico da Escola Nacional de Agronomia; secretário de Relações Internacionais – Osvaldino Marques[19], do Centro Acadêmico Viveiros de Castro, da Faculdade de Direito do Maranhão e para o Conselho Consultivo Clotilde Cavalcanti[20] e Wagner Cavalcanti[21].
O 4º Conselho Nacional de Estudantes elegeu, em julho de 1940: Presidente – Luiz Pinheiro Paes Leme, do Diretório Acadêmico da Faculdade Nacional de Direito e futuro vereador do Distrito Federal pela UDN; secretário-geral – Antônio Franca (novamente reeleito), do Diretório Central dos Estudantes da Universidade do Brasil.
Foi esta dupla de um futuro udenista e um comunista, que, após o despejo da U.N.E. da Casa do Estudante, em 1940, manteve viva a chama da União Nacional dos Estudantes, de 1940 a 1942, para isso fazendo do apartamento de Paes Leme a sede da U.N.E.

Observações:
Estas notas foram escritas para:

1) Mostrar a quase absoluta participação do Partido Comunista na criação, fundação, instalação e consolidação da União Nacional dos Estudantes;

2) Que a hegemonia conquistada resultou da correta visão política de irmos participar dos órgãos oficiais e não a de fundar entidades sectárias, seguindo assim a política preconizada na época pelo grande líder comunista e sindicalista, de projeção mundial, o camarada Dmitrof.

Irun Sant´ Anna
Rio de Janeiro, abril de 1999.

[1] Depoimento por escrito repassado ao pesquisador Otávio Luiz Machado, em dezembro de 2005, após a gravação de seu depoimento.
[2] Este veio a ser um dos maiores oradores da Aliança Nacional Libertadora, disputando com Carlos Lacerda.
[3] Jorge Amado já ensaiava os primeiros passos do escritor que veio a ser.
[4] Medeiros Lima, o Medeirinho, terminou sua carreira pessoal como “socialite”.
[5] Comunista.
[6] Simpatizante comunista
[7] Dirigente da delegação paulista, foi o homem chave da derrota de Ana Amélia ao alinhar-se com as posições dos comunistas.
[8] Comunista militante.
[9] Comunista militante.
[10] Na época, namorada do futuro historiador José Honório Rodrigues, o qual, se não era comunista militante, fechava conosco em todas posições políticas.
[11] Comunista militante.
[12] Agitado esquerdista que se não era comunista fechava com os comunistas em todas as questões.
[13] Comunista militante.
[14] Futura esposa de Antônio Franca e cujas posições políticas veio adotar inteiramente.
[15] Comunista militante.
[16] Comunista militante.
[17] Comunista militante.
[18] Comunista militante.
[19] Comunista militante.
[20] Mulher de Antônio Franca.
[21] Comunista militante.

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