segunda-feira, 16 de julho de 2007

Depoimento de Reynaldo Jardim - Um amor deslavado pela liberdade das pessoas

Reynaldo Jardim
Um amor deslavado pela liberdade das pessoas

A UNE do tempo de Jango não foi um fenômeno isolado da cultura brasileira. Efervescência, criatividade, rebeldia, coragem, audácia, dedicação às causas populares, um amor deslavado pela liberdade das pessoas, do povo, da sociedade. Década de 60. É o nascimento de Brasília, da bossa nova, do cinema novo, dos concretismos, do jornal O Sol. Sem o golpe de 64 viveríamos hoje um Brasil de justiça social, pelo menos. Centenas de nomes, heróicos companheiros: Vianinha (Oduvaldo Viana Filho, teatro), Gullar (Ferreira Gullar, poeta), Pontes (Paulo Pontes, teatrólogo), Teresa Aragão (jornalista). Não quero citar nomes, sempre fui um desmemoriado de Vigário Geral. Com ênfase lembro do Ênio Silveira, da Civilização Brasileira. Violão de rua, Cadernos do povo brasileiro, dirigidos pelo Moacyr Félix. Últimos meses do CPC, Vianinha e Gullar me chamam para criar um jogral. Começam os ensaios. Vem o golpe. Tudo encerrado. UNE em chamas. É a repressão, a censura, algum medo. Mas ainda era possível algum protesto, enganar os censores e falar. Tempo em que Fernando Barbosa Lima assumia a direção da TV Continental. Jornal de Vanguarda. Eu fazia por um dia um poema que escrevia e lia alguns minutos antes do programa ir ao ar, direto, ao vivo. A morte de Edson Luis de Lima Souto, no restaurante Calabouço. Assassinato. Rebelião estudantil. Passeata. 13 de dezembro, 1968, meu aniversário. AI-5. Instala-se de maneira definitiva o terror. É um massacre. O Jornal de Vanguarda do Fernando estava no ar. TV Rio. Recebo um telefonema. Não venha. O pessoal do Comando de Caças aos Comunistas estava lá, baixando pau. Programa fora do ar. A vida fora do ar. Um mês antes eu havia publicado Maria Bethânia Guerreira Guerrilha. Polícia em Casa. Depoimento no DOPS. Nessa época eu dirigia o Correio da Manhã. Intimidação. Compareço ao DOPS com três advogados. Acusação: livro subversivo e pornográfico. Havia a palavra vagina, considerada imoral. Marcelo Alencar era um dos diretores do Correio da Manhã. Ele também me acompanha e faz minha defesa. Tive a sorte de nunca ter sido preso. Ainda nos tempos da UNE publiquei o cordel As safadezas do diabo com a mulher do coronel. Era coronel de fazenda, os militares pensavam que era coronel do Exército. Um dia, pelos jornais, recebo uma intimação para comparecer ao QG. Primeira Região Militar. Dia e hora marcados. Compareço. Procuro o sargento ao qual deveria me apresentar. “Entrou ontem de férias”. Que é que eu faço? Ninguém sabe. Vou embora e me livro de um processo. O pior é que ninguém me dava emprego. Não tinha o salvo conduto do Partidão (Partido Comunista Brasileiro), que não me tinha nos seus quadros, apesar de promover na minha casa inúmeras reuniões com o pessoal enquadrado. Nicolas Gulhen esteve em casa lendo os seus poemas. Comeu dois ovos fritos com pão, pois não havia jantado. Voltando ao livro que foi apreendido pela polícia, o Maria Bethânia. Ela foi chamada a depor. Sinto enorme culpa por tê-la envolvido nesse episódio. Passei anos em vê-la, constrangido. Desses tempos ainda tenho os poemas de resistência lidos diariamente na tevê. O inimigo daqueles tempos é o mesmo de hoje: esse capitalismo miserável e bárbaro disfarçado em democracia representativa. A juventude saí às ruas de cara pintada e fica nisso. Precisamos restaurar a rebeldia antes que este país apodreça de vez.

Reynaldo Jardim, poeta e jornalista, criou o caderno B do Jornal do Brasil foi Porta-voz do movimento de arte concreta no Brasil e dirigiu a revista Senhor.

O Depoimento aqui foi publicado em:
BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO. Une: reencontro do Brasil com a sua juventude. Brasília, 1994.

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