FONTE: http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=11521
Fundador de uma época (Entrevista de Zuenir Ventura publicada na Revista Língua Portuguesa)
Luiz Costa Pereira Junior
O jornalista que já foi professor de português lança obra em que compara gerações, e garante que hoje o recato é linguagem de vanguarda.Zuenir Ventura, um dos maiores jornalistas do país, já foi professor de português. Colunista de O Globo, autor da reportagem do Jornal do Brasil que em 1990 pavimentou a condenação dos assassinos de Chico Mendes, formou-se em Letras e queria ser apenas professor quando o jornalismo o fisgou, em 1956.
Hoje, é o conceituado autor de obras como 1968 - O Ano que Não Terminou, editado há vinte anos, quando a geração das Diretas Já revisava seus mitos fundadores. Aos 76 anos, Zuenir Carlos Ventura tira do forno 1968 - O que Fizemos de Nós (Planeta), saboroso retorno ao tema, agora com o contraste da geração de 68 com as de seus filhos e netos. O livro é de equilíbrio notável, que Zuenir não é de olhar o novo com o "saudosismo retrógrado do velho". Diz que a linguagem do período corre nas veias atuais e 68 nem mais ano é, virou personagem. De um romance que tão cedo deverá ser esquecido.
Para você, 68 é um ser, não um ano. Como descreve esse personagem?
Zuenir Ventura - A de 68 foi a última geração literária, a que aprendeu lendo, não vendo. Diria que é personagem autocentrado, com onipotência e um voluntarismo que não são seus traços mais simpáticos. Quando se fala nele, já se conferem a 68 categorias humanas. Ele é simpático, prepotente, arrogante, voluntarista. E generoso. Talvez a última geração que se entregou a uma causa coletiva, arriscando a pele. Por isso, é uma presença, uma sombra, uma figura quase paternal. Pode ter acabado, mas a discussão sobre ele continua.
Em que difere este seu livro do anterior sobre 68?
Tive o cuidado de falar sobre os filhos e netos de 68 sem olhar saudosista, para não ficar dependente ou ser por 68 subjugado. Como diz Paulinho da Viola: não vivo no passado, o passado vive em mim. Há jovens com visão idealizada da época.Que foi tudo maravilhoso, e tal. Mas houve coisas tão ruins quanto boas.
É possível generalizar o que toda uma geração pensa?
O [antropólogo] Gilberto Velho diz algo fantástico. Quando falamos do que é típico de uma geração estamos falando do que lhe é "emblemático", que a marca de um grupo nem sempre é compartilhada pelo conjunto, mas é representativa. Havia uma minoria no "espírito de 68", mas muito ativa, que vocalizou uma vontade mais ampla. Sempre tomamos o todo de uma geração pela parte.Somos metonímicos. Marcamos o que há de diferente num período em relação ao comportamento anterior.
Que quis dizer com "a geração de hoje é 68 em 2008"?
É preciso ter um olhar generoso sobre as novas gerações. Caetano Veloso me fez uma síntese genial sobre a possibilidade de surgir algo semelhante a 68: "Para ser parecido com aquilo tem de ser muito diferente daquilo". Quando fui pela primeira vez a uma rave, levei um susto. Imaginava bailes como na minha época, em que se paquerava para ir pra cama; o baile era um meio. A festa de hoje é um fim, é toda uma coisa divertida, que não se sabe como nasce. Achei que haveria violência. Você bota 25 mil pessoas no Rio Centro, quer o quê? Mas há uma confraternização imensa e, ao mesmo tempo, cada um na sua. É uma coisa individualista e também coletiva.
Diferente da geração que leu o primeiro 1968?
Quando o lancei, a garotada vinha a mim, toda curiosa. Não vivera 68. E vi neles a nostalgia do não vivido. Essa coisa de olhar para trás sem saber bem o quê, à procura de algo mítico, do heroísmo meia-oito, do "quem sabe faz a hora não espera acontecer", aplicável na época às Diretas Já, à nova Constituição, ao tesão político dos anos 80 e à vida por construir.
Em que sentido a atual seria uma geração "oximora", como diz seu livro?
Muito da linguagem de 68 passou a seus netos. Aquele ano rompeu tabus de linguagem. O palavrão, o desregramento, era uma marca. Havia um excesso meio infantil, que marcava a conquista de uma liberdade verbal. A atual é uma geração com linguagem não tão exibida, sem necessidade de afrontar, pois tudo é permitidoOximoro é o encontro de palavras que deveriam se excluir, mas não se anulam, como "gritos silenciosos". A geração de hoje é assim. Individualista e festiva. Quer prazer e controle corporal. Não liga para política, pudera, mas é engajada quando o tema é meio ambiente. A gente fica malhando, que ela só pensa no aqui e agora, mas tudo para ela é instável. Em 50 anos, e tiverem minha idade, não terão tanta água e ar. É uma geração sem garantia de futuro. Não quer saber do passado, a não ser em evocações como a de 68. E do futuro, muito menos, pois não há certeza no porvir.
Há linguagem 68 em 2008?
Muito da linguagem de 68 passou a seus netos. Você vai a lugares jovens e vê Woodstock, algo florido, psicodélico, uma alegria de comportamento. Aquele ano rompeu tabus de linguagem. O palavrão, o desregramento, era marca. Havia um excesso meio infantil, que marcava a conquista de uma liberdade verbal, que depois se tornaria obsessão por sexo. Mas a revolução sexual começou nos livros. Falava-se mais do que se fazia. Hoje, é natural. A atual é uma geração com linguagem não tão exibida, sem necessidade de afrontar, de expor transgressão, pois tudo é permitido.
No jeito de falar, como tal diferença se reflete?
Em 68 havia um ardor por linguagem própria, uma gíria que não existisse antes. "Paca" é apócope de "bom para caralho"."Seguinte" é redução de "o negócio é o seguinte" e "transa", da "transação" com traficantes, que migrou para a sexual e, depois, a todo tipo de relação. Você vê esse mecanismo hoje em "tá se achando": nem é preciso dizer que a pessoa se acha mais do que é. "Ficar" deriva da situação em que não é mais possível o compromisso longo, pois todo sexo é um risco na era da aids. Sinaliza que o encontro pode não ter a carga erótica de 68.
Que fato de linguagem atual seria impensável em 68?A radicalização daquele despudor que começa com o palavrão. Nada mais chato na minha idade que um olhar moralista, de geração mais velha. Mas a revolução verbal se tornou retórica, chula, não produz novo comportamento. Hoje talvez a coisa mais avançada seja o recato. O recato, veja você, é a novidade, a reação revolucionária. O que me fascina num Paulinho da Viola é essa coisa antiga, que não se usa mais, não é exibicionista, não apela, não quer sucesso a todo custo, não cai no vazio da própria exposição. Este é hoje o apelo estético ousado.
Quando professor de português, você era ousado?
No início, era até careta, mas sem gramatiquice. Não gosto quando pegam a gramática e a exploram no que ela tem de pior. Se há crise da palavra, como de outras instituições, é a da redução de repertório, uma degeneração das formas de expressão, e um desrespeito a normas que estão ali porque permitem que uma pessoa fale e outra a entenda.
Há disputas nesse campo...Há linhas de pesquisa, da retrógrada, que endossa clássicos, à oportunista, para quem o povo sempre tem razão. Em meio a isso, encontrei gramáticos que não eram isso nem aquilo, como Celso Cunha, Antonio Houaiss e Adriano da Gama Cury. Era gente que experimentava a vida, provava da fala cotidiana com prazer. Celso passava as noites bebendo à Noel Rosa, Manuel Bandeira ia à Lapa dos malandros. Eles me mostraram que amar a língua não precisa ser chato e a gramática não é a chatice dos meus tempos.
Como era no seu tempo?O sujeito pegava Os Lusíadas, um monumento de metáforas, versos lindos e viagens maravilhosas, e perguntava onde estava o sujeito oculto. A língua não é só instrumento de comunicação, tem algo de prazer, de vida, de estética, de que os grandes são exemplos. Eles curtem o cotidiano. Não são teias de aranha.
Como virou professor?
Meu pai era pintor de parede, minha primeira profissão. Depois fui contínuo, faxineiro em bar, protético, fiz bicos. Minha mãe fazia questão de que eu estudasse; papai não, que era pra rico. Aí chegou o científico (ensino médio), e dei aulas para manter os estudos. Começara a ler aos 12 anos, em Friburgo. Eu o fazia de modo desorganizado, o que caía à mão, quando uma professora, Letícia Pinto, me apresentou a Proust e Machado de Assis, e deu orientação à minha leitura. Era minha professora de noite e colega de dia, no primário (o básico). Dona Letícia foi uma amiga. Descobri a vocação e só queria dar aulas.
Foi fazer Letras...
Juntei dinheiro para o vestibular em Letras Neolatinas, e mudei pro Rio. Dava aulas de português e latim. Já a faculdade, foi um mundo encantado. Fui aluno de Bandeira, Alceu Amoroso Lima, Celso Cunha, um timaço, e de um gênio, Hélcio Martins, que morreu aos 37 anos, de aplasia medular. Ficamos amigos. Em 1956, ele chefiava o arquivo do Tribuna da Imprensa e me chamou. Eu recortava jornais e separava fotos. Aí, me chamaram para escrever...
Qual o maior esforço que já fez ao apurar uma história?O da morte do Chico Mendes (22 de dezembro de 1988, em Xapuri, Acre). Cheguei um mês depois, a imprensa toda já passara por lá. Ia só uns dias, quando um amigo me sugeriu que ficasse; nem tudo fora apurado. De fato. Um rapaz, Genésio Ferreira dos Santos, de 13 anos, morava na fazenda do mandante do crime, o Darly (Alves da Silva). Testemunhara tudo e teve a coragem de denunciar. Zanzava pelo quartel, era monossilábico, de um jeito duro, dizia só o suficiente. Eu precisava conquistar sua confiança e seguir mais pistas. Enfim, ter tempo. O Jornal do Brasil me deu. Passei um mês lá. Aí soube de um plano para matar o menino. Não vi outro jeito e o adotei. Ele foi pro Rio, e ficou conosco até os 19, 20 anos.
A imprensa perde leitura, não só para TV e internet. É falta de credibilidade?
Sou crítico à imprensa. Há desrespeito, falta de tempo, invasão de privacidade, compulsão de dar furo antes de apurar direito e, sobretudo, julgamento precipitado. Julgamos, mas sem a paciência da Justiça. A imprensa criou mecanismos de autocrítica pois estava perdendo leitores. Aprendeu na porrada. Mas as pesquisas recentes a redimem. Do mensalão em diante, pecou por excesso, forçando barras, mas não por falta, por não noticiar, como na ditadura. Uma das coisas ruins do texto de mídia é o excesso de informação. E excesso é ruído. O desafio não é mais obter informação, mas interpretá-la.
Quanto o levantamento da informação define o jeitão que um texto assume?
Em desenho industrial há a máxima de que "a forma segue a função". A categoria de beleza de um objeto se dá por ele cumprir a função para a qual foi criado. O fusca é horroroso, mas "virou bonito" quando se viu que era funcional. No jornalismo, o principal é a função: informar. Tudo se subordina a isso. Mas a diferença do jornalismo para uma linguagem só funcional, burocrática como relatório, é a pretensão estética, o que não é fácil. Fácil é imitar a ficção, o que fica ruim vira pastiche. Essa coisa de mandar ler Machado para aprender a escrever bem. É como achar que se pode ensinar a jogar bola vendo videoteipe do Pelé.
SEXO, DROGAS, ROCK E EMPREGO NO DIA SEGUINTE
Num tempo em que a obsolescência planejada atinge todas as áreas, inclusive a das idéias e dos sentimentos, predomina nesses jovens a busca meio agônica do paroxismo - a viagem, a voragem, o risco e o transe. Em uma palavra, o êxtase, ou melhor, o ecstasy, a droga-símbolo dessa geração. Não estão a fim de fazer uma revolução para mudar o mundo, mas de criar o seu próprio, o de sua tribo. Em vez de uma nova vida, um substituto a ela, um universo paralelo, ainda que artificial. Mas que isso não signifique necessariamente viver à margem, à maneira dos hippies. Eles são capazes de passar a noite embalados por drogas e, no dia seguinte, ir trabalhar ou estudar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário