segunda-feira, 26 de maio de 2008

A MOCIDADE brasileira e o desafio do subdesenvolvimento (Por José Sérgio Leite Lopes)



COMENTÁRIO DE OTÁVIO LUIZ MACHADO: Em 07 de janeiro de 1968, na formatura dos engenheiros químicos da UFRJ, o Professor José Sérgio Leite Lopes leu um discurso intitulado “A MOCIDADE brasileira e o desafio do Subdesenvolvimento” na condição de paraninfo. Além das considerações sobre a realidade social, cultural, científica, educacional e econômica que a ditadura de todas as formas tentava esconder, certamente o que mais marcou o discurso de Leite Lopes foi a seguinte frase: “O progresso juntamente com a liberdade, tem de ser conquistado”. Por essa e outras ousadias, Leite Lopes foi perseguido e teve que sair do país. Esse mesmo discurso foi impresso e não pôde ser distribuído pelo Centro dos Estudantes de Engenharia (CEUE) da UFRGS, segundo o livro “CEUE: uma história do movimento estudantil”, pois as autoridades acadêmicas discordaram. E ainda foi o motivo para a suspensão dos seguintes estudantes daquela instituição pelo Decreto-Lei 447: Renato Peixoto Dagnino (Presidente do CEUE), Luiz Oscar Matzembacher (Presidente do DCE), Luiz Carlos Santana (Presidente do D.A. de Ciências Humanas) e Renato Severo de Miranda (Presidente do D.A. de Ciências Econômicas).



A MOCIDADE brasileira e o desafio do subdesenvolvimento*


José Sérgio Leite Lopes


* Saudação de paraninfo dos engenheiros-químicos daUniversidade Federal do Rio de Janeiro, 7 de Janeiro,1968, Rio de Janeiro.


Publicado no Correio da Manhã, Rio de Janeiro,28 jan. 1968. 4º Caderno.


Felicito-me por esta oportunidade, que generosamente me oferecestes, de participar convoscodesta cerimônia. Recebeis, neste momento, desta Universidade, o documento que vos habilita a exercer aprofissão que escolhestes. A engenharia química, tôdas as especialidades da engenharia, constituem, ao lado daquelas que exercemos pesquisadores científicos, atividades deimportância fundamental para o desenvolvimentoeconômico do País. Sabeis, tão bem como nós outros, que estauniversidade, que tôdas as universidades brasileirasainda oferecem condições altamente insatisfatórias deestudo e trabalho para uma formação profissionaladequada e que esteja à altura do acelerado progressocientífico e tecnológico que se processa no mundocontemporâneo. São deficiências provenientes, emparte, da estrutura e da forma nas quais foram criadasas universidades, do sistema de trabalho que seatribuiu aos professôres, dos critérios de escolha docorpo docente, da própria estrutura administrativa doPaís que, ao invés de propiciar o exame, o debate e asolução dêsses problemas, os agravou ainda mais,subordinando as instituições de ensino e pesquisa edecisões de organismos burocráticos, ao método docongelamento e da redução das dotações orçamentáriasindispensáveis ao progresso e à contínua modernizaçãodessas instituições. Mas não são apenas estas ascausas dos defeitos do atual sistema universitáriobrasileiro. A situação está claramente entrelaçada comas dificuldades, provàvelmente ainda mais graves, noensino médio e no ensino primário, com a obsolescênciade estruturas nos setores básicos da vida do País. queimpedem a sua decolagem para o progresso autônomo esocialmente significativo, sufocam os esforçosnecessários à sua libertação econômica. Não somos o único pais subdesenvolvido do mundo.Tôda a América Latina, países da Ásia e da Áfricaenfrentam situações análogas à nossa. Constituímos,todos, o chamado Terceiro Mundo, aquêle conjunto depovos que formam 2/3 da humanidade, que não estãoconseguindo realizar um desenvolvimento socialmentesignificativo na agricultura na industrialização, nossistemas educacionais, nos domínios da pesquisacientífica e tecnológica, nas atividades do pensamentocriador, indispensável à criação de riquezas e àmanutenção do bem-estar generalizado. Temos dificuldades internas, a ausência de umesfôrço nacional, em caráter de emergência, no sentidode reduzir drasticamente a insuportável taxa de maisde 50% de analfabetos, a incapacidade do sistemaescolar de atender à nossa população que cresce, afalta, em pràticamente todos os domínios, demão-de-obra especializada, de técnicos, deprofessores, de médicos, engenheiros e cientistas;temos, diante de nós, o desafio de encontrar o caminhoadequado para vencer o subdesenvolvimento. Mas existem também as dificuldades externas, aconjugação de forças e circunstâncias que tornam cadavez mais difícil o progresso econômico e social noTerceiro Mundo. "Os povos da América Latina", disse o senadorRobert Kennedy em seu discurso dos dias 9 e 10 de maiode 1966 perante o Senado dos Estados Unidos da Américado Norte, "lutam contra algo mais do que os acidentesgeográficos". Vivem ainda sob o peso de muitasheranças recebidas do período colonial. "Mas, o que émais importante", segundo o senhor Kennedy, "é que opassado vive através da estrutura social: nos sistemaseducacionais projetados para uma elite; napropriedade, concentrada, de terras; nas cartasconstitucionais que, em algumas áreas, podemefetivamente marginalizar 80% do eleitorado; em umdesprêzo feudal pelo investimento produtivo e peloárduo trabalho que é a sorte da maioria". "Homens que não receberam educação", continua osenador Kennedy, "estão condenados a viver comomarginais - fora do século XX, estrangeiros em suaprópria pátria. Mesmo para aqueles que podem ler,novos estudos constituem a chave da liberdade e damobilidade econômica e social; não podem existircarreiras abertas aos homens de talento sem sistemaeducacional que desenvolva o talento." Por outro lado, permiti-me afirmar que aexperiência em tôdas as áreas do Mundo Subdesenvolvidotem demonstrado que os esforços nacionais para odesenvolvimento encontram resistência da parte dosrepresentantes dos países superdesenvolvidos, desdeque colidam aqueles esforços com os interesses destesúltimos. Uma tese que se costuma defender em círculos dasnações prósperas e que é repetida por seusrepresentantes nativos nas áreas subdesenvolvidas é ade que a pesquisa científica, os trabalhos de invençãotecnológica são muito caros para que os possamosimplantar e desenvolver. A nós caberia apenas oprivilégio de comprar produtos, fábricas e indústriasinventadas no exterior, quando disponíveis, deveríamoslimitar-nos a alugar patentes, a importar tecnologia econhecimento científico já elaborado, pronto para usoimediato. Constituiriam, assim, as naçõesdesenvolvidas uma espécie de supermercado científico etecnológico, no qual iríamos comprar ou alugar osprodutos expostos, desde técnicas e métodos de ensino,até os artefatos nucleares para uso pacífico. Eis uma tese que, estou certo, como representantesda mocidade brasileira, que deseja o progresso donosso País, sem restrições, considerareis inaceitável.Podemos e devemos, certamente, adquirir tecnologia,aprender métodos científicos, importar indústriasbásicas, produtos essenciais que não possam sercriados no País. Mas a importação permanente do quefoi inventado, a atitude de ficarmos sempre à esperado último produto, do nôvo modêlo, não podem ser metasde nenhum povo que tenha confiança em seus destinos eque não tenha vocação para ser colônia. A ciênciaprogride continuamente, tecnologias novas substituem,em pouco tempo, tecnologias recém-inventadas, máquinasde amanhã tornarão obsoletas as máquinas de hoje. Eêste avanço é o resultado da investigação em todos osdomínios da ciência e da tecnologia, da atitudeinterrogativa do homem perante os fenômenos doUniverso, do pensamento criador. Certamente,considerareis que nações subdesenvolvidas devem tercomo objetivo para que possam passar verdadeiramenteao estágio de nações em vias de desenvolvimento, oacesso aos meios de produção de conhecimento em suaspróprias instituições, em suas universidades, em seusinstitutos de pesquisa científica, em seislaboratórios de pesquisa tecnológica e industrial,graças ao trabalho de seus próprios homens de ciência,dos seus engenheiros, dos seus homens de cultura. É claro que a troca de informações científicas emescala internacional é necessária ao florescimento daciência, da cultura, do conhecimento. A cooperaçãocientífica internacional é uma conseqüência danecessidade de estimular êsse intercâmbio, da vontadede homens em algumas partes do mundo verem outroshomens em outros países partilharem dos benefícios deuma descoberta, de inventar, de compreender as leis danatureza. Como parte do conhecimento básico, a ciênciaé universal. As leis da física e da química nuclearsão universais, não dependem da nacionalidade, nem dacôr do cientista que as encontra, nem de suaideologia, nem do seu status social, muito embora sejamuito mais difícil a cientistas, a tecnólogos de umPaís subdesenvolvido obterem condições de trabalhopara realizar as suas investigações. Ilustração dêstefato, atualmente do conhecimento da opinião públicabrasileira, são as dificuldades opostas, desde mais de15 anos, ao desenvolvimento da ciência e da tecnologianuclear em nosso País, à adoção de uma políticacompatível com a nossa realidade e os nossos maislegítimos interêsses. A história nos mostra que os governos quediscriminam cientistas e técnicos por motivospolíticos adotam um caminho que dificilmente osconduzirá a resultados felizes. Lembrai-vos do êxodode homens como Einstein, da Alemanha de Hitler, comoFermi, da Itália de Mussolini, da promoção de umpseudocientista como Lysenko na Rússia de Stalin.Certas fôrças sociais e políticas é que impedem auniversalização dos resultados da ciência, dos frutosda tecnologia. E os têrmos do comércio internacional,dominado pelos países ricos, impedem que as naçõessubdesenvolvidas obtenham e acumulem recursos paraaprimorar sua economia, para industrializar suasriquezas, e se vêem elas assim forçadas a exportá-lasem estado primitivo, a preços que em geral flutuam comdesvantagem para os países pobres. Os exemplos estãonas estatísticas publicadas por organizaçõesinternacionais, nos Acôrdos comerciais negociadosentre países fortes e países produtores dematérias-primas, exportadores de bens que os paísesindustrializados enobrecerão com a tecnologia. No anode 1963, em uma Conferência Mundial sôbre Alimentos, oDr. B. R. Sen, diretor da Organizagio das NaçõesUnidas para Alimentos e Agricultura, FAO, denunciouque no período de seis anos, entre 1955 e 1961, ospaíses do Terceiro Mundo tiveram um prejuízo, emtêrmos de comércio internacional, de 20 bilhões dedólares, em conseqüência da diminuição dos preços dasmatérias-primas por êles exportadas e do aumento dopreço dos produtos manufaturados importados. Na mesmaépoca, os lucros obtidos por cinco paísesdesenvolvidos, provenientes de investimentos em paísesem vias de desenvolvimento, foram da ordem de 18bilhões de dólares. As perdas no comércio mundial, porparte dos países subdesenvolvidos, constituem, narealidade, uma importante componente, uma contribuiçãoinvisível para o financiamento da educação e dacultura, da ciência e da tecnologia, do bem-estarcrescente dos povos superdesenvolvidos. Que fazer? Diante da complexidade dos problemasque se nos apresentam, não terão razão os pessimistas,os que gostariam de capitular - ou que já o fizerampara obter lucros e vantagens pessoais - já que pareceimpossível vencer obstáculos tão poderosos? A situação não é fácil, pois essas questões nãopodem, por vêzes, ser resolvidas durante o período deuma ou várias gerações. Nesta segunda metade do SéculoXX, assistimos a um desenvolvimento da ciência e datecnologia, sem precedentes na história, que contribuipara alargar, cada vez mais, a distância que nossepara, a nós do Terceiro Mundo, dos paísessuperdesenvolvidos. Sabeis que, pelos novos métodoscientíficos e técnicos, a riqueza gera mais riqueza,enquanto que o atraso, a falta de conhecimentos, gerampobreza. Será possível encontrar-se uma solução paradistribuir entre todos os povos do mundo os benefíciosda ciência moderna, da engenharia contemporânea, dacultura em tôdas as formas? Estou certo de queconcordareis com a afirmação de que os povos menosdesenvolvidos devem encontrar, êles mesmos, as formas,os meios e modos de realizar seu própriodesenvolvimento. Será isto possível no mundocontemporâneo? Admitirão os povos ricos ter menosriquezas, gozar de menos privilégios, permitindo queoutros povos industrializem suas riquezas nativas,adotem sistemas e métodos que permitam atravessar comrapidez a barreira do subdesenvolvimento? Ou desejarãoêsses povos ricos que outros povos, possuidores dematérias-primas, de espaços vazios, de fauna, flora esubsolo pràticamente inexplorado, que êstes permaneçamsempre em subdesenvolvimento, como uma reserva para ofuturo dos primeiros, como celeiro capaz de forneceros bens primários que asseguram o luxo e a civilizaçãodos povos ricos? Uma resposta, entretanto, estou certo de queconcordareis comigo, podemos e devemos dar: não foi emobedência a um tal espírito de subserviência econformismo que foram construídas as grandescivilizações. Não foi à espera de que outrosresolvessem suas indagações que Newton, Lavoisier eEinstein realizaram as descobertas que tanto marcarama humanidade. Não foi acreditando em proteçõespaternalistas que povos, verdadeiramentesubdesenvolvidos há cinqüenta ou há cem anos atrás, seimpuseram no mundo contemporâneo como líderes doprogresso. Cada geração de um país subdesenvolvido não podedeixar de ser mais inconformada que a que a precedeu,e mais estudiosa, mais competente, pois o progressonão espera por quem permanece parado: a reforma, aimplantação de estruturas e sistemas adequados àlibertação econômica não resultam da permissão, daoutorga de outros povos. O progresso juntamente com aliberdade, tem de ser conquistado. Antes de concluir, permiti que mais uma vezmencione alguns números recolhidos pelo Senador RobertKennedy: "de 1.400 criangas brasileiras, por exemplo,1.000 entram na primeira série da escola primária e396 passam para a segunda série. Destas, 169 terminama 4ª série primária; 20 completam a escola de ensinomédio; 7 entram em uma instituição de ensino superior- e talvez uma dentre as 1.000 crianças que entraramna 1ª série da escola primária conclua um curso naUniversidade". "Isto é - arremata o ilustrerepresentante do Estado de Nova York - uma dentre1.400 crianças brasileiras" tem chance de receber umdiploma de instrução de nível superior. E isto sabemos nossos melhores educadores. Por outro lado, em artigo recente, publicado naconhecida revista norte-americana Newsweek, edição de11 de dezembro de 1967, página 64, conclui-se que parafazer face às despesas crescentes com os seus projetosde pesquisa e de ensino, terão as universidadesnorte-americanas de ser necessàriamente encampadaspelo govêrno. No fim do ano de 1967, mais de 4.361.000estudantes estavam matriculados em estabelecimentosgovernamentais de ensino superior - mais do dôbro donúmero de estudantes matriculados nas escolasparticulares. Em 1975, a relação correspondente entreestudantes matriculados em universidades privadas seráde 3 a 1. Assim, conclui o mencionado artigo, pareceestar chegando a vez de quase tôdas as instituiçõesnorte-americanas de ensino superior se tornarempropriedade do poder público. Para um país que apresenta a irrisória chance deapenas uma entre 1.400 crianças concluir um curso denível superior, seria um contra-senso transformarem-seas instituições governamentais de ensino eminstituições ou fundações privadas, sobretudo se selevar em conta a inexistência no país de organizaçõesparticulares capazes de prover recursos para amanutenção e expansão das escolas e institutos depesquisa. Procurar-se-ia certamente cobrar caro oensino ministrado e o resultado inevitável seria umadrástica diminuição da porcentagem de jovensconcluintes de um curso universitário e o conseqüenteaumento de marginalização de sua população, emcrescimento, numa época em que a sobrevivência danacionalidade está a exigir competência, homens detalento, instrução generalizada e acessível a tôda apopulação. Desejariam dirigentes de um tal país,provàvelmente, imitar tendências do passado nosEstados Unidos, sem saberem, talvez, que estariamassim imprimindo uma evolução em marcha à ré à suacomunidade, pois que, no grande e poderoso país doNorte, são exatamente opostas as medidas tomadas pataassegurar a educação superior para o maior número. Mas um país como o Brasil, além do privilégio desua extensão territorial, de suas riquezas naturais,possui uma riqueza maior, que é a chave para a soluçãodos seus grandes problemas: a sua mocidade. Jovens engenheiros químicos: estou certo de quenão vos deixareis desanimar com as dificuldades queconheceis. Nenhum de nós, por mais que tenhaaprendido, pode ser capaz de resolver todos osproblemas da nossa Pátria; mas nenhum de nós podenegar-se a continuar a aprender para o bem comum, acolaborar, a trabalhar, a lutar para encontrar aslegítimas soluções que o povo reclama. A mocidade brasileira dos dias que vivemos,inquieta pelas dificuldades que nos impõem ascondições de subdesenvolvimento em que sempre temosvivido, é uma mocidade voltada para a discussão e oestudo dêsses problemas, deseja um ensino melhor, estálutando por um sistema educacional mais aberto acamadas cada vez mais amplas da nossa população, atodos os nossos filhos. É uma mocidade consciente de que, se por um lado,"não podem existir carreiras abertas aos homens detalento sem sistema educacional que desenvolva otalento", não pode ser fértil um sistema de educaçãose não estiver integrado com os programas dedesenvolvimento econômico, com um sistema deagricultura e de indústrias que exija a pesquisa, ainvenção, os homens de talento. Sei que onde quer que estejais, nas universidades,nos laboratórios de pesquisa, nos escritórios, naindústria, tereis sempre presente que, acima dosvossos justos anseios de riqueza e bem-estar pessoal,estará a consciência da necessidade de trabalhar pelasolução dos problemas nacionais, pelo progresso sem restrições de um Brasil independente.

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