FONTE: http://www.fflch.usp.br/sdi/imprensa/noticia/008_2004.html
Informe FFLCH/USP - fevereiro 2004 nº 08 .Daniel Cantinelli Sevillano
Memória 70 anos - FFCL-FFLCH/USP - Entrevista com o Professor Oswaldo Porchat
Por Daniel Cantinelli Sevillano
Professor aposentado do Departamento de Filosofia, formou-se em Letras Clássicas pela antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Fez sua graduação em Filosofia na França, e o doutorado na FFLCH. Quando voltou ao Brasil permaneceu na USP até 1975, quando se transferiu para a Unicamp para formar o Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência e o Departamento de Filosofia daquela Universidade. Retornou à FFLCH em 1985, onde permaneceu até se aposentar em 1998.
Professor, eu gostaria que o senhor me contasse um pouco de sua formação acadêmica.
Eu me formei em Letras Clássicas na antiga Faculdade de Filosofia Ciências e Letras e, no fim do curso, ganhei uma bolsa do governo francês para fazer um mestrado em grego na França. Mas eu gostava de filosofia, já tinha feito uma matéria com o professor Livio Teixeira durante meu curso de Letras. Quando estava na França, na Faculdade de Rennes, onde lecionavam os professores Granger e Goldschmidt, decidi mudar de área, do grego para a filosofia, por sugestão de Goldschmidt, que conseguiu com que a burocracia francesa autorizasse essa passagem de um mestrado em grego para uma licenciatura em filosofia. Acabei por me formar em Filosofia em Rennes e, depois, fui para Paris, onde fiquei por dois anos na École Normale Supérieure e trabalhei com Goldschmdit numa tese de doutoramento sobre Aristóteles. Voltei ao Brasil para trabalhar no Departamento de Filosofia da USP como assistente do professor Livio Teixeira em Filosofia Antiga. Anos depois, defendi minha tese de doutoramento aqui no Brasil. Em que ano o senhor começou a trabalhar na USP? Em agosto de 1961 e fiquei na FFLCH ate 1975, ano em que me transferi para a Unicamp, onde fiquei por dez anos até me aposentar em 1985. O Departamento de Filosofia me convidou para voltar para a Faculdade de Filosofia e eu aí permaneci até 1998, ano de minha aposentadoria na USP.
Qual era o ambiente da Faculdade quando o senhor foi aluno?
Eu fui aluno de Letras e entrei na Faculdade muito reacionário. Eu era um bom orador, então comecei a ganhar assembléias no Grêmio com minhas propostas reacionárias. Eu soube mais tarde que isso criou um certo mal-estar entre os grupos de esquerda da Faculdade, tanto na Juventude Socialista como na Juventude Católica (JUC) e na União da Juventude Comunista. Até aquele momento, esses três grupos dominavam a política estudantil da Faculdade. Cientes do perigo que eu representava, eles decidiram me cooptar e tiveram êxito. Acabaram me levando para a esquerda através de conversas e debates. Dois anos depois, fui o candidato das esquerdas à Presidência do Grêmio da Faculdade e fui eleito. Conseguimos tomar a UEE das mãos da direita, mas a UNE continuou nas mãos de uma certa direita, até que anos mais tarde a esquerda tomou conta da UNE, onde permanece até hoje. Nesse meu itinerário para a esquerda, eu abri meus olhos para os problemas nacionais e para os problemas estudantis. Era uma época em que o Movimento Estudantil era bastante forte, havia causas nacionais defendidas por esse movimento e havia uma grande politização estudantil, que iria desaparecer com a ditadura militar. Foi uma época agitada, boa sob muitos aspectos, e eu acho que, mesmo com alguns exageros por parte dos estudantes, o que é normal, o Movimento Estudantil tinha um papel altamente educador, na medida em que ele conseguia abrir os olhos de muitas pessoas para problemas que a gente não conhecia quando entrava na Faculdade. O senhor aprendeu mais sobre o país nas discussões estudantis? Sim, porque o curso que eu freqüentava era o de Letras Clássicas e não se destinava a tratar de problemas brasileiros. Foi graças ao Movimento Estudantil que eu me abri para esses problemas e, a partir daí, comecei a ler autores que deles tratavam. Devo ao Movimento Estudantil esse papel na minha formação.
O senhor concorda com os que dizem que Letras era um curso apolitizado?
Certamente era um dos cursos menos politizados da Faculdade. Entre os mais politizados, estavam Ciências Sociais, Filosofia e Matemática. Qual a reação da Faculdade ao golpe de 64? Nos últimos meses que precederam 64, a gente não acreditava que o Governo pudesse ser derrubado e que houvesse a possibilidade de instalar-se no Brasil uma ditadura militar. Eu lembro que, no dia do golpe, a maioria de nós acreditava que era uma tentativa desesperada de grupos de direita para tomar o poder, porque temiam uma esquerdização da política nacional. Isso mostra quão ingênuos nós éramos. O golpe foi, assim, muito chocante para nós.
O senhor acompanhou os acontecimentos de 68 na Maria Antonia?
O Movimento Estudantil fez manifestações, como era natural, contra o regime militar e a Maria Antonia era um centro efervescente de agitação. Havia uma grande ingenuidade por parte dos estudantes e de grupos que os apoiavam e eu estranhava o fato de o poder ditatorial estar tolerando, sem reagir, as mobilizações estudantis. O governo permitiu que os estudantes fechassem a rua Maria Antonia e tomassem conta do prédio da Faculdade. Houve um episódio em que os estudantes prenderam, dentro da Faculdade, um investigador de polícia disfarçado, o “julgaram” numa espécie de “Tribunal Estudantil” e o “condenaram” a ficar trancado dentro de uma sala de aula. Ele era alimentado e bem tratado, mas ficou preso por alguns dias.. Havia um som muito alto, com músicas revolucionárias, que era tocado na Faculdade e se ouvia ao longe na rua. Era estranho ver aquela euforia toda sem nenhuma repressão e alguns professores e estudantes mais afoitos acharam que se estava assistindo ao início de um grande movimento nacional de libertação... Eu temia bastante pelo que pudesse acontecer, mas era uma voz isolada. Houve aqueles dias terríveis em que a Faculdade foi bombardeada com coquetéis molotov a partir do Mackenzie. Eu me lembro do desespero do Diretor da Faculdade, Euripedes Simões de Paula, um homem de centro-direita, mas extremamente decente, ao ver um de nossos estudantes morto. Ele falou com o comandante de uma força policial estacionada na esquina da Itambé com a Maria Antonia, que tinha algumas dezenas de homens, os quais apenas observavam aquela guerra, mas sem impedi-la. O Diretor pediu que ele dispusesse duas viaturas e alguns homens entre a Filosofia e o Mackenzie, para fazer com que o pessoal do CCC (“Comando de Combate ao Comunismo”), tocaiado no Mackenzie, parasse de atirar contra nossa Escola. O comandante replicou dizendo que tinha ordens para não intervir. A situação tornou-se insustentável e os estudantes resolveram abandonar o prédio e fazer uma passeata até o centro da cidade. Foi quando a polícia avançou e ocupou a Faculdade, o que era certamente o que o governo desejava. Ficou óbvio para todos que o regime militar deixou o Movimento Estudantil aparentemente triunfar durante quinze dias ou mais para ter uma justificativa para endurecer a repressão. Como foi a mudança para a Cidade Universitária? Foi triste, porque a Maria Antonia era um lugar que nós amávamos e que tinha toda uma aura ao seu redor, por isso nosso despejo para o campus foi muito doloroso. Pouco a pouco nós compreendemos que éramos peões de um jogo político que não controlávamos.
O senhor participava da Congregação nessa época?
Eu era representante dos professores doutores. E algum professor apoiava o regime militar nessas reuniões? Abertamente não. Se um ou outro apoiava, não se manifestava. É claro que havia freqüentemente na pauta da Congregação assuntos políticos e o resultado das votações em que esses assuntos estavam envolvidos era invariavelmente o mesmo, algo como vinte e cinco votos contra três, sendo que os três em questão eram Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e eu.
Mas em que tipo de assunto vocês eram derrotados?
Por exemplo, antes da ocupação da Faculdade, os estudantes ocuparam o saguão do prédio da Maria Antonia. Alguém na Congregação então propôs que os estudantes fossem obrigados a deixar o prédio. É preciso dizer que o Prof. Euripedes nunca chamou a polícia para dentro do prédio e a Congregação nunca tomou essa decisão, mas ela também não aceitava a ocupação do saguão; quando houve essa votação, Florestan, Fernando Henrique e eu votamos contra, temendo um confronto entre a Congregação e os estudantes. A Congregação era majoritariamente conservadora. Mas é de justiça dizer que ela nunca tomou medidas tipicamente reacionárias.
O senhor sabe por que o professor Eduardo d’Oliveira França deixou a Diretoria da Faculdade?
Antes de mais nada, eu queria dizer que tenho uma divida de gratidão para com o prof. França. Isso, porque, quando eu terminei o curso colegial, ele, que era amigo de meu pai e sabia que eu gostava de latim, me telefonou para incentivar-me a prestar vestibular para o curso de Letras Clássicas, já na segunda época do vestibular. Eu tivera antes esse propósito, mas tinha dele desistido. Segui seu conselho e formei-me em Letras Clássicas. Isso decidiu toda a minha vida acadêmica futura. O Prof. França era um homem profundamente honesto, de centro-direita, conservador, decente, extremamente inteligente. Quando ele foi Diretor da Faculdade, ele foi chamado ao DOPS para ser ouvido. O que circulou na época é que ele se sentiu muito humilhado com a maneira com que foi tratado verbalmente e atribuíram sua demissão a essa humilhação, que ele não estava preparado para suportar. Eu nunca soube dos motivos reais, mas acredito que possa ter sido isso, que ele não era uma pessoa psicologicamente preparada para enfrentar situações como essa. Quero mencionar que o professor França recusou-se, durante anos, a acreditar que estudantes e professores haviam sido torturados pelos agentes do Governo. Um dia eu lhe falei dessas torturas e ele me respondeu, para minha surpresa, que isso era propaganda política da esquerda. Esse fato me deixou perplexo, pois me mostrou sua grande ingenuidade política e seu despreparo para um cargo político como era o de Diretor da Faculdade naquela época. Contei-lhe que havia estudantes, colegas e amigos que tinham sido torturados, que um amigo e um estudante tinham sido mortos, e o prof. França, que confiava em mim, se convenceu, impressionado e confuso. Já o professor Euripedes era o oposto do professor França. O prof. Euripedes não era nada ingênuo e sabia jogar politicamente com todos os lados. Ele era uma pessoa extremamente simpática, agradável, que conseguiu habilmente manobrar no meio daquele tumulto para defender a Faculdade. Em que ano o senhor foi para a Unicamp? Em 1975 fui para a Unicamp, onde estava um grande amigo meu, o físico Rogério Cerqueira Leite, que, fazia tempo, insistia para que eu me transferisse para lá. Devo dizer que se estava processando uma transformação de minhas idéias filosóficas, que me levaria posteriormente a tornar-me um filósofo cético. Eu tinha naquela época a idéia de criar um centro de estudos de Lógica e de Análise Lógica e propus isso ao Departamento de Filosofia da FFLCH, que aceitou a proposta e a enviou para a aprovação da Reitoria. Mas os anos se passaram e a resposta não vinha. Foi então que decidi me mudar para a Unicamp, para concretizar esse sonho. Rogério conseguiu uma entrevista minha com o Reitor Zeferino Vaz, que ficou entusiasmado com meu projeto e o aprovou inteiramente. O Reitor deu-me todo o seu apoio, inclusive contratando imediatamente todos os professores, brasileiros e estrangeiros, cujos nomes lhe indiquei. Criei, então, e desenvolvi na Unicamp o Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE), o Departamento de Filosofia e uma Pós-graduação em Lógica e Filosofia da Ciência, dedicando-me durante muitos anos a essa tarefa. Um fato curioso foi que eu já estava na Unicamp havia uns três anos quando recebi uma correspondência da Reitoria da USP, dizendo que a criação do Centro que eu propusera havia sido aprovada. Eu agradeci e disse que o Centro já havia sido criado na Unicamp.
E como foi sua volta para a USP?
Minha família ficou dois anos em Campinas comigo, mas, para minha mulher, que tinha uma clínica de psicologia em São Paulo, e para minha filha, estudante de colegial na época, foram dois anos difíceis. Decidimos voltar para São Paulo e eu passei a viajar diariamente para Campinas, lá alugando depois um apartamento durante certo tempo. Tudo isso me desgastou muito fisicamente e, quando eu pude me aposentar, após trinta anos de serviço, saí da Unicamp. Quando o Departamento de Filosofia da USP soube disse, conseguiu uma verba especial da Reitoria para minha recontratação e eu voltei a dar aulas na FFLCH.
Quais foram suas impressões da Faculdade quando o senhor voltou?
Quando voltei, em 1985, o ambiente era bem diferente, mas não necessariamente melhor, porque muito da antiga vitalidade se tinha perdido. Os professores não mais se entregavam às antigas disputas políticas, se entendiam melhor, mas havia ainda cicatrizes do passado. O Departamento de Filosofia por exemplo, na minha opinião, numa atitude talvez sábia de auto-preservação, se tornara um agrupamento de individualidades, onde ninguém perturbava a vida de ninguém, cada um fazia profissionalmente o que queria, mas não havia projeto coletivo. Os estudantes estavam despolitizados e o Departamento era um lugar tranqüilo para se trabalhar, sem a agitação de antes, mas também sem a vitalidade política de antes. A produção filosófica de seus membros era e continuou sendo, entretanto, excelente, do ponto de vista quantitativo e qualitativo. E como foi receber o título de Professor Emérito? Como disse no dia da outorga e com toda a sinceridade, não julgava merecer esse título. Eu acho que o Departamento de Filosofia e a FFLCH estão sendo demasiado generosos na atribuição do título. Eu o teria dado a pouquíssimas pessoas. De modo que eu acho que não havia nenhuma razão para que eu o recebesse, não fiz nada mais do que aquilo que se espera que um professor universitário faça
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