FONTE: http://www.secom.unb.br/unbcliping-tv2/indexTv.php?data=14/04/2008
Mémorias do irmão mais novo descrevem a trajetória de um homem que se orgulhava em ser libertário
Kelly Couto (texto) e Irene Sesana (arte)Da Assessoria de Comunicação
or causa do regime militar, Norton Monteiro Guimarães teve sua vida virada de cabeça para baixo. Foi preso e torturado mesmo sem, segundo ele, nunca ter tido ligação com o movimento estudantil ou político. Perdeu três empregos públicos nos anos 1970. Seu maior crime, revela, era ser irmão de um dos personagens políticos mais atuantes de Brasília: Honestino Guimarães.
Norton viu de perto a morte do pai, a prisão do irmão, o sofrimento da mãe. Na década de 1960, o lider estudantil Honestino, ex-aluno da UnB e ex-presidente da Federação dos Estudantes da Universidade de Brasília (FEUB), foi perseguido, torturado, preso e acusado pelos governos Castello Branco, Costa e Silva e Médici de ser comunista.
A última vez que Norton esteve com Honestino foi em 1973. Em um rápido encontro, tentou entregar ao irmão um passaporte falso. O ex-líder estudantil recusou. “Ele me disse que se tivesse de morrer, morreria aqui no Brasil”, lembra Norton. Poucos meses depois Honestino foi preso pela Marinha.
Dos anos de chumbo, o irmão mais novo guarda na memória momentos bons. Fala, com brilho nos olhos, da inteligência do irmão e da forma como se sentia protegido. Faz questão de dizer que nunca deixou de amá-lo, mesmo depois de ser preso, torturado e impedido de trabalhar. "Os militares do Brasil foram usados pelos Estados Unidos para matar seu próprio povo", diz.
A seguir, os principais trechos da entrevista exclusiva concedida à UnB Agência na residência de Norton Monteiro Guimarães, no bairro de Águas Claras, em Brasília, em junho de 2004.
UnB AGÊNCIA – Quem foi Honestino Guimarães?NORTON MONTEIRO – Ele era o cara mais inteligente que conheci. Nunca encontrei outra pessoa como ele. Em 1965, foi o 1o colocado do vestibular. A prova, naquela época, valia 260 pontos, ele tirou 257. O segundo colocado ficou 43 pontos atrás dele. Ele fazia Geologia. A Petrobras mandava todos os meses uma cartinha dizendo que a vaga dele estava guardada para quando ele se formasse.
Daiane Souza/UnB Agência
UnB AGÊNCIA – O que ele fazia que o tornava diferente?MONTEIRO – Ele sempre foi muito inteligente. Lia uma média de 180 livros por ano, fazendo uma espécie de resenha de cada um. Lia dois a três jornais por dia. Ele fazia pastas de notícias. Por exemplo, a Guerra do Iraque: se saísse uma notícia daquele assunto no jornal ou revista, ele cortava e guardava na pasta daquele assunto. E ele dormia muito pouco. A meta dele era dormir duas horas por dia, igual a Napoleão (Bonaparte). Fora que ele sempre lutou a favor das minorias, quase sempre contra o governo. Ele se indignava com as coisas que aconteciam durante o regime militar.
UnB AGÊNCIA – Quando Honestino começou a participar da política?MONTEIRO – Ele sempre foi muito político. Quando criança, nós brincávamos juntos e ele sempre era o presidente da República (risos). Ele me nomeava ministro da Aeronáutica e meu outro irmão ministro da Marinha. Ele sempre foi muito líder. Gostava de comandar. No golpe de 1964, ele ficou muito bravo porque estavam acabando com a democracia. Aí, ele se opôs ao regime. A primeira prisão foi por causa de uma pichação: ‘abaixo a ditadura’.
UnB AGÊNCIA – O que ele representou para a UnB e para Brasília?MONTEIRO – É difícil falar sobre o que ele representava. Naquela época, existiam dois mil alunos na UnB. Ele reuniu de 15 a 20 mil pessoas numa passeata na W3 (uma das avenidas principais de Brasília). Não foram só estudantes, foi a população de forma geral. Ele conseguiu o que nenhum político da época conseguia. Na UnB, ele era presidente da Federação dos Estudantes da Universidade de Brasília (FEUB). Ele sempre lutou pela liberdade do estudante universitário. Ele queria mudar essa visão errônea de que na universidade só existiam subversivos.
Daiane Souza/UnB Agência
UnB AGÊNCIA – O que aconteceu com seu irmão na invasão de agosto de 1968?MONTEIRO – A invasão de 1968 foi para pegar o Honestino. Não existiu outro motivo. Ele tinha um esquema de segurança.
UnB AGÊNCIA – Onde Honestino estava quando o Ato Institucional nº 5 foi decretado (AI-5), em 13 de dezembro de 1968?MONTEIRO – Na véspera da publicação do AI-5, eu estava na rua com meu irmão. Ele falou comigo assim: ‘Eu vou pra Goiânia, não vou ficar aqui pra esperar esse Ato não. Você avisa meus pais’. Aí eu fui pra casa tarde da noite e meus pais já estavam dormindo. De manhã, chegaram uns homens apontando uma arma na minha cara. Perguntaram pelo meu irmão e eu disse que não sabia. Fui levado primeiro para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), depois para o Pelotão de Investigação Criminal da Polícia do Exército (PIC). Meu pai sabia que eu tinha sido preso, mas só eu sabia onde estava meu irmão. E o pessoal de Goiânia não falou nada, porque pensava que eu tinha avisado. Meu pai passou três dias sem dormir. Quando eu fui solto, ele estava um ‘caco’. Ele foi trabalhar (em Taguatinga), e a gente morava na Asa Norte. Voltou dirigindo, dormiu ao volante, bateu o carro e morreu. Bateu num caminhão parado. Eu estava me preparando para o vestibular e desisti.
UnB AGÊNCIA – Mas você teve contato com Honestino depois disso?MONTEIRO – Quando o Honestino foi para Goiânia, em 1968, não poderia voltar mais para Brasília, senão seria preso. Aí ele passou a viver na clandestinidade, no Rio de Janeiro. Ele foi morrer em outubro de 1974, eu acho. Ele passou mais de cinco anos na clandestinidade. Nesse tempo fui algumas vezes me encontrar com ele. E, mesmo na clandestinidade, ele mantinha o esquema de segurança. Eu ia para o Rio sem saber onde ele estava. Primeiro encontrava uma pessoa, que me dava um endereço e depois outro e mais outro. Nunca sabia quando o endereço era o certo.
UnB AGÊNCIA – Como você acha que ele morreu?MONTEIRO – Ele foi preso pela Marinha e havia alguns procedimentos. Os presos políticos eram levados de avião para o alto mar, furavam as barrigas, para não boiar, e depois jogavam no mar. Os presos da Marinha nunca apareceram. São considerados desaparecidos políticos. Aliás, sempre fui contra essa terminologia, porque é um nome que esconde quatro crimes: seqüestro, tortura, assassinato e ocultação de cadáver.
Daiane Souza/UnB Agência
UnB AGÊNCIA – Ele foi enquadrado pelo governo como terrorista?MONTEIRO – Não. Não conseguiram. Ele dizia que ‘nem essas mentes férteis e venenosas (militares) conseguiram me enquadrar como terrorista’, porque ele sempre foi contra tudo isso.
UnB AGÊNCIA – Depois de tudo o que aconteceu sua família foi indenizada?MONTEIRO – Teve uma indenização. Mas ele foi casado com a Isaura, que era filha única de professores da UnB. E a vida na clandestinidade era muito difícil, era uma vida de privações. Os pais dela mudaram-se para a Espanha e lá o pai faleceu. A família dela nunca gostou desse casamento. A mãe começou a presentear a Isaura com coisas que fizeram com que ela se arrependesse do casamento e pedisse a separação. Mas, como eles viviam na clandestinidade, não foi possível fazer isso legalmente. O que aconteceu foi que, quando a indenização foi paga, quem recebeu foi a Isaura, sendo que o Honestino havia se juntado com uma outra menina antes de morrer e a Isaura se casou novamente. Olha a ironia: ela se separou do meu irmão por causa de dinheiro e recebeu a indenização por ser viúva dele. E ela ainda achou pouco a indenização e entrou na Justiça pedindo mais. Aí saiu estampado no jornal: ‘Família de Honestino exige mais indenização’. Quando meu irmão se separou da Isaura, eu fui ao Rio encontrá-lo. Ele estava em uma depressão muito forte. A gente podia ter ido a juízo dizer que ela não tem direito à indenização, mas não queremos dinheiro, queremos saber quem matou o Honestino.
UnB AGÊNCIA – Você chegou a sofrer represálias por ser irmão de Honestino?MONTEIRO – Fiz vestibular na UnB, em 1969, e passei. Quando eu fui me matricular, estava em uma lista de oito estudantes que não podiam se matricular. Eram ordens do Jarbas Passarinho, então ministro da Educação. Nós fomos falar com ele e a secretária dele disse que ele não poderia nos atender. No outro dia, nós fomos esperá-lo na porta do Ministério com um repórter. E nós subimos e ele nos atendeu. A discussão foi levada para política. Mas a minha situação era diferente, me sentia prejudicado. Teve uma hora que o Jarbas Passarinho, no auge da discussão, disse que ‘o problema de vocês estudantes é não perceberem que o Brasil sempre foi e sempre será uma colônia’. Isso doeu no meu ouvido como uma bigorna. Fiquei com raiva e disse apontando o dedo na cara dele: ‘Olha aqui, eu ganhava muito bem, melhor do que a minha mãe que é diretora de escola. Passei no vestibular e larguei o meu serviço para estudar. Agora vem você me dizer que eu não vou estudar? O que você está me fazendo é prejuízo. E prejuízo vou pagar com prejuízo. Vou quebrar todos os vidros da universidade e não adianta colocar de dia que à noite vou lá e quebro. E só vou parar de quebrar quando essa raiva passar’. Os outros estudantes viravam pra mim e falavam: ‘Como você fala isso para o ministro da Educação?’. Eu falei: ‘Que ministro da Educação que nada, esse cara está é ensinando o povo a ficar revoltado’. Ele olhou pra mim e perguntou, com raiva, qual era meu nome. Eu disse e ele anotou rápido no papel e virou e disse: ‘Amanhã você vai à universidade falar com o Azevedo’ (então reitor da UnB). No outro dia, fui falar com o Azevedo. Ele perguntou o que tinha acontecido no dia anterior e eu o expliquei por alto. Ele me disse ‘Bom, você é maluco. Estou com um bilhete aqui do ministro pra te deixar entrar’.
UnB AGÊNCIA – Você se revoltou com os militares?MONTEIRO – Os militares do Brasil foram usados pelos Estados Unidos para matar seu próprio povo. E os militares não aceitam isso. A corrupção aumentou demais na ditadura militar. Mas isso é outra história. Não sou revoltado, só gostaria de saber o que foi feito com meu irmão.
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