sexta-feira, 23 de maio de 2008

DEBATE SOBRE COTAS: A guerra dos manifestos

FONTE: http://www1.folha.uol.com.br/folha/pensata/helioschwartsman/ult510u404203.shtml
22/05/2008
A guerra dos manifestos


Às vésperas da votação, pela Câmara dos Deputados, da lei que institui cotas para negros e índios nas universidades federais e na iminência do julgamento de duas ações sobre o tema no STF (Supremo Tribunal Federal), Brasília assiste à guerra dos manifestos.
De um lado, estão os auto-intitulados
"Cento e treze cidadãos anti-racistas contra as leis raciais", que, no último dia 30, enviaram ao Supremo um arrazoado com suas posições. Na semana passada foi a vez de defensores da reserva de vagas visitarem a corte e a Câmara para apresentar seu documento.
De minha parte, sou mais sensível aos argumentos do primeiro texto, embora reconheça que o segundo também traz raciocínios que não podem ser desprezados.
Antes de mais nada, é preciso ter perdido o juízo para afirmar que o Brasil não é um país racista. Trata-se, porém, de um fenômeno insidioso. Chega a ser difícil detectá-lo com precisão na escala das relações privadas.
Se um negro, por exemplo, deixa de ser contratado para uma vaga após a entrevista com o empregador, é quase impossível provar que o foi por ser negro. O contratante sempre poderá alegar, para o juiz e para sua consciência, que preferiu o candidato branco por considerá-lo mais capacitado ou apenas mais "simpático" --no que estaria em seu direito. A norma jurídica, para o bem e para o mal, não pode regular gostos e pensamentos. Daí o reduzidíssimo número de condenações com base na Lei Anti-Racismo (nº 7.716/89), que prevê penas de 2 a 5 anos de reclusão para quem, em virtude de "preconceito de raça, cor, etnia religião ou procedência nacional", "negar ou obstar emprego em empresa privada".
Basta, entretanto, uma espiadela nos números oficiais levantados pelo IBGE para constatar que aquele racismo quase inapreensível na esfera dos contatos interpessoais adquire pesada materialidade. Para não redundar com as várias matérias publicadas ao longo das últimas semanas, cito apenas um dado recente apurado em pesquisa do Ibope com o Instituto Ethos: embora negros e pardos constituam mais ou menos a metade da população brasileira, ocupam só 3,5% dos cargos de chefia nas maiores empresas do país. Se isso não é o que os matemáticos chamam de viés e se este viés não é clara e candidamente racista, então precisamos rever os nossos conceitos estatísticos e sociológicos.
Também me parece óbvio que essa situação é absolutamente indesejável e ações que visem a saná-la são bem-vindas. As desavenças entre os pró e os anticotistas começam quando se debate a natureza das medidas a adotar.
Eu não gosto do sistema de reserva de vagas porque acho que o poder público deve ser o primeiro a jamais discriminar cidadãos, seja para prejudicá-los, seja para beneficiá-los em detrimento de outros. Em minha opinião, ao tentar combater o racismo com uma "discriminação positiva", contribuímos mais para tornar "naturais" as categorias racistas e aprofundá-las do que para rechaçá-las. Em resumo, não creio que injustiças históricas possam ser consertadas com políticas compensatórias. A meu ver, a soma de dois erros, mesmo que de sentido oposto, é sempre um erro maior, nunca sua anulação.
É preciso ter em mente aqui que há um grande descompasso entre o universo de prejudicados pela injustiça histórica original (negros escravizados, índios dizimados) e o de beneficiados pela política reparatória (alguns de seus descendentes, em geral os mais dotados e que menos precisariam de ajuda). E vale lembrar que os que pagam a conta (o branco preterido no vestibular, por exemplo) tampouco coincidem com aqueles que, no passado, lucraram com o erro primordial (mercadores de escravos, grandes fazendeiros). Quando a conta pelos crimes históricos é cobrada no espaço de uma ou duas gerações, ela ainda pode fazer algum sentido. Mas, quando há séculos a separar a ofensa original da reparação, o próprio objeto da queixa perdeu materialidade. Soaria meio ridículo se os berberes levassem a Berlusconi a fatura pela destruição de Cartago pelos romanos (146 a.C.) ou se os descendentes dos jebuseus, se é que ainda os há, fossem a Israel cobrar uma indenização pelas perseguições promovidas por Josué antes do ano 1000 a.C..
Receio que o conceito mesmo de justiça histórica seja uma impossibilidade. O máximo em que pode resultar é em séries de pedidos de desculpas como as feitas pelo papa João Paulo 2º a judeus, índios, Galileu etc.
No mais, penso que a discriminação positiva esbarra numa objeção prática incontornável: quem é negro no Brasil? O critério adotado pelo IBGE, a autodeclaração, é inegavelmente democrático, mas tende a tornar-se pouco eficaz, em especial se as reservas de vaga se multiplicarem por todas as esferas da vida do cidadão. Gosto de citar o exemplo de um de meus filho, David, que é loiro, tem a pele perigosamente clara e carrega um nome indisfarçavelmente iídiche. Pelo menos por ora, não enfrentou adversidades econômicas ancestrais que poderiam em princípio justificar acesso preferencial a vagas em universidades ou empregos. Nada, porém, o impediria de pleitear tal ingresso privilegiado. Nem mesmo o constrangimento moral de que de vez em quando falam os economistas: David, afinal, graças aos milagres da miscigenação, conta, entre seus ascendentes maternos, com uma bisavó negra e uma trisavô índia, o que, pelo critério do "one drop blood" (uma gota de sangue) utilizado nos EUA e visto com simpatia por parte do movimento negro brasileiro, o legitimaria a considerar-se negro ou índio.
Existe, entretanto, uma forma de evitar essa armadilha. Um dos efeitos colaterais do racismo é que os grupos discriminados acabam perenizando-se nos estratos de mais baixa renda. Uma política que favoreça pessoas mais pobres automaticamente contemplará negros, índios e outras minorias sem o risco de racializar as relações sociais. A pobreza, afinal, diferentemente da negritude e da indianidade, pode ser aferida por critérios objetivos e até quantificada. Assim, parece-me defensável um sistema que fizesse recortes por nível de renda, beneficiando pobres de todas as cores e não apenas negros. Não seria algo tão diferente da progressividade do Imposto de Renda, que já está aí e são muito poucas as vozes que reclamam de sua "injustiça intrínseca".
Pessoalmente, eu ainda seria mais simpático a uma seleção exclusivamente meritocrática, que me parece mais de acordo com os ideais republicanos. É preciso, contudo, reconhecer que, aqui, as considerações práticas se voltam contra essa utopia. Os vestibulares e concursos públicos, afinal, ainda não atingiram um grau de precisão tal que permitam afirmar que de fato selecionam os melhores.
Defensores do sistema das cotas raciais em sua forma clássica costumam argumentar, não sem razão, que as diferenças já estão dadas e que ignorá-las significa no mínimo ajudar a perpetuar um "statu quo" inaceitável. Dizem que, na hora de prender e reprimir, policiais sabem muito bem quem é que quem não é negro. Pode ser, mas não creio que seja o caso de montarmos comitês de PMs para decidir quem pode ou não participar de vestibulares como cotista. Como eu disse no início, o Estado deve ser o primeiro a não discriminar.
No fundo, não adiro com entusiasmo à idéia de cotas raciais porque faço uma apreciação pouco otimista da natureza humana. Receio que o homem tenha herdado de seus ancestrais uma estrutura psíquica que favorece atitudes etnocêntricas e, no limite, racistas. Pensamos, afinal, através de operações mentais de categorização e generalização. Se um membro da tribo vizinha uma vez me atacou, é evolucionariamente útil que eu parta do pressuposto de que todos aqueles que pertencem àquela tribo inimiga tentarão me agredir e antecipe o ataque. É claro que esse tipo de raciocínio, que fazia sentido no passado darwiniano, perdeu inteiramente a razão de ser em sociedades modernas. Quem hoje parte para ataques preventivos no meio de uma cidade grande não aumenta suas chances de sobrevivência, apenas as de ser preso ou mesmo morto. O problema é que essa mudança no ritmo de vida ainda não teve tempo de deixar marcas em nossos genes. Sou, portanto, cético em relação à possibilidade de uma sociedade sem preconceitos étnicos. O etnocentrismo é um universal humano que dificilmente será eliminado e ele está sempre a um passo da xenofobia e do racismo. É claro que, por razões racionais e morais, devemos apoiar iniciativas anti-racistas, mas elas talvez possam pouco diante de alguns milhões de anos de seleção natural. Minha sensação é que, ao tentar implantá-las, agimos como o sujeito que busca proteger-se de um tsunami erguendo um baldinho de praia. Alguns problemas não têm solução.
Hélio Schwartsman, 42, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha Online às quintas.E-mail:
helio@folhasp.com.br

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