COMENTÁRIO DE OTÁVIO: João Batista foi um dos líderes do movimento estudantil em Minas Gerais. Além do texto apresentado abaixo, também é importante citar sua significativa entrevista que publicamos no sítio da Fundação Perseu Abramo: http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/article.php?storyid=1076
Texto de João Batista dos Mares Guia apresentado em sesão sobre “Maio de 68, 40 anos depois”
Srs. Vereadores; estimados vereadores Neila Batista e Carlão Pereira, que idealizaram este agradável encontro sobre o assunto “Maio de 68, 40 anos depois”, para reflexão e homenagens;
estimados colegas homenageados;
amigos:
Aos estudantes chineses que, em junho de 1989, na Praça Celestial, em Pequim, corajo-samente lutaram pela liberdade. ... foram mortos pelo Exército, e ... encontram-se presos há 19 anos.
1968:
uma “revolução inencontrável” ou uma utopia possível?
Os organizadores deste encontro propuseram duas questões para reflexão:Quatro décadas depois, quais os significados dos ideais políticos, sociais e culturais defendidos pelos que fizeram 68?, e,
O que persiste e o que se perdeu nessas últimas décadas, e quais as lições para o futuro?
Os indivíduos que protagonizaram 68 no Brasil conheciam opções e dis-punham de oportunidades culturais para o conhecimento de mais opções, sendo, portanto, responsáveis pelas escolhas, esclarecidas ou não, que fizeram. Eram homens e mulheres jovens e livres que se despertaram para o mundo e para a vida adulta precisamente nos idos de 1968. A radicalização da ditadura, com o AI-5, decretado em dezembro de 68, não autoriza a descrição daquela situação de terror como uma trama de circunstâncias semelhante a um drama, que é quando a vontade humana parece como que suspensa e premida por uma conjuração de eventos que, por falta de opções, impõem como únicas escolhas a omissão ou o destemor, a renúncia ou a coragem moral, a fraqueza ou a virtude guerreira. As escolhas que os sujeitos fazem formam trajetórias e a teia de trajetórias ou dos processos de intervenção da vontade humana compõe a história. As circunstâncias (ou a “fortuna”) nós não escolhemos. Decerto elas condicionam intensamente, mas também elas são moldadas e modifi-cadas pelas ações humanas. Para ir direto ao ponto, a generalizada esco-lha ético-finalista, em nome de uma causa, empreendida no país tão generosamente pelos jovens militantes de esquerda pela luta armada, ainda em 68, meses antes da edição do AI-5, não foi um imperativo do tempo, mas uma escolha dentre outras possíveis. Esse é o pressuposto que orienta este ensaio.
Protagonizar a história tem conseqüências: a perda da inocência e a exposição à inquirição crítica da posteridade na busca do esclarecimento e de “lições para o futuro”, incluídos aí, 40 anos depois, os juízos qualita-tivos dos próprios protagonistas.
1968: Tudo que é sólido desmancha no ar?
As barricadas erguidas nas ruas de Paris em 1789 pelos sans-culotte, e, no século seguinte, pelos operários insurretos durante a guerra civil de 1848 e a Comuna de 1871, evocam como metáfora a idéia de revolução, recor-rente no imaginário dos franceses.
Quase cem anos depois da Comuna, em maio de 1968 a Rue Gay-Lussac, no Quartier Latin, no centro de Paris, foi tomada pelas barricadas, dessa feita protagonizadas pelos estudantes universitários. A “noite das barrica-das”, no dia 13 de maio, resultou em 945 feridos e 422 presos. A partir de Nanterre, sob a liderança do estudante judeu e alemão Daniel Cohn-Bendit, teve início a revolta estudantil na França, precedida, entretanto, por uma onda mundial de mobilizações estudantis mais ou menos simultâneas. As universidades de Paris são fechadas. Surge o grafite de rua e a revolta estudantil de Paris proclama e o mundo urbe et orbi reverbera os célebres lemas “É proibido proibir”, “Sejam realistas, exijam o impossível”, “A imaginação no poder” e “A beleza está nas ruas”, além de outros, menos conhecidos e de impacto circunscrito, como “As frontei-ras que se danem” e “Nós somos todos judeus alemães”, ambos em defe-sa de Cohn-Bendit, já sob ameaça de expulsão da França, “Liberdade democrática, igualdade social e fraternidade dos povos” e “É doloroso ter que suportar seus chefes, mas burrice maior é escolhê-los”. Ainda em maio a revolta expande-se vertiginosamente até o chão das fábricas e seis milhões de operários grevistas ocupam 300 fábricas por toda a França, dentre o total de dez milhões de trabalhadores em greve. No Reino Unido três milhões de trabalhadores entram em greve, e ainda na França, no âmbito da cultura organizada, os cineastas Louis Malle, François Truffaut, Alain Resnais e Roman Polanski retiram seus filmes do Festival de Cannes em apoio aos estudantes.
Em maio a França e, nela, Paris, logo ocupam o proscênio das revoltas estudantis e juvenis já então com extensão planetária. Na própria Europa fora desencadeada uma onda precursora vinda dos Países Baixos, Dinamarca, Suíça, Alemanha, Itália, Bélgica, Espanha, Iugoslávia e a hoje européia Turquia, e que se estendeu à Polônia, onde a Universidade de Varsóvia foi fechada, em fevereiro, após a sua ocupação por estudantes em luta contra a censura, e, em abril, à Tchecoslováquia, onde ocorrera o ensaio geral da Primavera de Praga, militarmente esmagada pelos tanques da ocupação soviética. Essa onda planetária precursora foi protagonizada na América Latina pelos estudantes do Brasil, Uruguai e México, e seu alcance estendeu-se à Ásia, em países como Japão, Vietnã, Paquistão, Bangladesh, Sri Lanka, Índia, Tailândia, Birmânia e Malásia, ao Oriente Médio, abrangendo a Palestina, Israel, Líbano, Iraque, Irã e Síria, e à África, com manifestações na Nigéria, Senegal, Egito, Argélia, Marrocos, Mauritânia, Congo e Camarões.
A adesão impressionante dos trabalhadores na França pára o país e evoca a idéia de uma revolução possível. Na coalisão da ordem e da política institucional emerge a percepção e o sentimento de que o movimento, que florescera por fora dos influentes Partido Comunista Francês e Partido Socialista, poderia transbordar como uma luta pelo poder. Mas uma revolução somente se impõe quando um governo nacional não mais consegue governar, o povo já não quer o governo que tem, as instituições políticas já não funcionam ou mostram-se incapazes de exercer a direção moral e cultural da vida política e uma força política organizada apresenta um programa, tem uma estratégia, quer alcançar o poder por quaisquer meios e tem capacidade para impor a sua vontade em nome dos oprimidos. A extensão continental e planetária do movimento dos estu-dantes era espetacular. A juventude estava se insurgindo contra todo e qualquer poder e instituição que recendesse a autoritarismo e a demo-cracia burocraticamente rotinizada.
Pompidou, o primeiro-ministro, abre negociações com as centrais sindi-cais, o presidente De Gaulle dissolve a Assembléia Nacional, convoca eleições gerais e o gaullismo leva às ruas de Paris um milhão de pessoas em apoio ao governo. No mês seguinte, a polícia recupera a Sorbonne e expulsa estrangeiros; a França vai às urnas nas eleições legislativas e reafirma a escolha pelo gaullismo com uma vitória maciça. A democracia e, com ela, a República e a liderança do venerando De Gaulle resultam robustecidas. Admitido o pressuposto de que não se derrota uma revolu-ção somente pelo voto, a questão a ser elucidada é: o quê naquele momen-to estava sendo politicamente derrotado pelo voto majoritário dos france-ses?
O stalinismo e a sua restauração totalitária já assegurada na Polônia e na Tchecoslováquia continuaram a projetar no ambiente da Guerra Fria ideológica e geopolítica planetária o império soviético como uma entidade antediluviana. O socialismo real passava, então, a integrar o processo ainda não interrompido de “desencantamento do mundo”, dessa feita atingindo em cheio a utopia do socialismo como a terra prometida da libertação contra a alienação. A cara feia do socialismo real ficou escanca-rada. Nasce a um tanto imprecisa idéia anti-capitalista e anti-totalitária do socialismo democrático.
Nas ruas de Paris, anarquistas, trotskystas, maoístas, libertários sem partido e os estudantes de uma maneira geral lutavam contra e denuncia-vam os autoritarismos e o poder, qualquer forma de poder: os chefes, as hierarquias e as assimetrias sociais, as relações entre pais e filhos, a subsunção social das mulheres aos homens, os partidos políticos e seus cânones e hierarquias e sistemas decisórios vinculatórios, a Igreja e suas interdições, o comunismo, o capitalismo, os imperialismos soviético e americano, a guerra do Vietnã, o stalinismo, e, nas universidades, a cátedra e o poder burocrático rotinizado da cátedra.
Não obstante, enquanto na Europa ocidental ironicamente a derrota política dos estudantes decorria da afirmação democrática da política, na Europa oriental ela era resultado da completa negação da vida cívica e da democracia e, portanto, da ausência de sociedade civil.
Entrementes, no Vietnã o imperialismo americano deparava-se naquele ano de 68 com a ofensiva do Tet (a ocupação simultânea pelos vietcon-gues de 34 capitais provinciais) enquanto em seu próprio solo os Estados Unidos experimentavam a extensão e a radicalização das lutas contra a guerra com a ocupação da Universidade de Colúmbia e uma manifestação de 60 mil estudantes no Central Park, prenunciando a multitudinária e nacional marcha sobre Washington. O assassinato de Martin Luther King, o mais brilhante líder das lutas sociais pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, desencadeou conflitos raciais em 125 cidades america-nas. A radicalização da luta pelos direitos civis em conflitos raciais violentos de guerrilha urbana (“Queima baby, queima!”) sob a liderança dos Panteras Negras e de Malcom X logo culminaria na vitória eleitoral de Nixon, em novembro de 1968, facilitada, decerto, pelo assassinato, em julho, de Robert Kennedy, o candidato à presidência surgido de uma convenção radicalizada à esquerda do Partido Democrata.
Nos Estados Unidos os importantes movimentos contra a guerra do Vietnã e pelos direitos civis dos negros eram autônomos, embora tenham encontrado forte ressonância no Partido Democrata. Eles jamais se propu-seram outro propósito político que não fosse, respectivamente, a paz e a ampliação da democracia e da eqüidade, essa última por meio da universalização dos direitos civis, conquistada na década seguinte. Naturalmente, o estamento militar, o complexo industrial-militar, o Parti-do Republicano e a mídia incorporaram ao movimento dos americanos jovens contra a guerra do Vietnã um forte caráter político.
Em Tlatelolco, México, na Praça das Três Culturas, em setembro, três meses após o confronto entre 300 mil universitários e a polícia na Universidad Autónoma, o governo do Partido Revolucionário Institucional - PRI matou entre 200 e 1000 estudantes.
No Brasil, sob a ditadura, a União Nacional dos Estudantes - UNE, as uniões estaduais de estudantes - UEE, os diretórios centrais - DCE e os diretórios acadêmicos - DA, reorganizados a partir de 1966, intensificavam e massificavam por meio de passeatas as lutas por mais verbas, mais vagas e pela reforma das universidades, e contra a ditadura, com foco político na derrubada do regime militar. Oriunda de Paris, a idéia da “universidade crítica” atravessara o Atlântico, e seu substrato antiautoritário de certa forma inspirou as bem sucedidas comissões paritárias de preparação da reforma universitária, muito bem protagonizadas pelas representações dos estudantes em quase todo o país. A morte pela polícia do estudante secundarista Edson Luís Souto, no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, em 28 de março, desencadeou nas capitais do país uma onda de manifestações de rua, em simultaneidade com a eclosão da greve metalúrgica de Contagem, em abril, organizada e politicamente liderada por operários militantes de esquerda, alguns deles vitoriosos na última eleição do Sindicato dos Metalúrgicos, em 1967. Essa greve eclode organi-zada como forma de luta contra o arrocho salarial (o salário real perdera 12% do seu poder de compra, desde 64), pela construção de Comissões Internas de Prevenção de Acidentes (Cipas), e contra o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), que viria extinguir a estabilidade para o trabalhador com mais de dez anos na empresa, comum naquele tempo. E a greve significava, ademais, uma manifestação vigorosa e massiva de luta contra a ditadura.
A primeira resposta da ditadura militar foi a instauração, em maio, de inquéritos policial-militares - IPM sob o controle do Exército contra líderes operários e estudantis de Belo Horizonte, combinada com a repressão e seguida da demissão de trabalhadores. A passeata dos cem mil ocorre em junho, na cidade do Rio de Janeiro, precedida por uma onda nacional ascendente e sucedida por outra, descendente, de manifestações de menor impacto. Luís Antonio Groppo (Teoria e Prática. Fundação Perseu Abramo. Edição especial, ano 21, maio de 2008; pág. 40) esclarece que “entre 28 de março e o início de abril (ocorreram) 26 grandes passeatas em quinze capitais estaduais”, e que o “segundo grande momento se deu na metade de junho, no qual houve dezessete grandes passeatas em oito capitais de estado”. Logo as passeatas foram proibidas em todo o país, e cessaram em outubro, quando, no dia 12, cerca de 1000 líderes estudantis foram cercados pela polícia e presos em Ibiúna, onde se realizava o 30º. Congresso da UNE. A repressão ao Congresso fora precedida, em julho, pelo combate, efetuado pelo Exército, à greve metalúrgica de Osasco, em São Paulo, iniciada no dia 16 e liderada pelas comissões de fábrica, a partir da ocupação da Cobrasma, com intensa e dominante participação de operários militantes de esquerda. A tudo isso seguiu-se extensa onda de IPMs sob o controle do Exército, a aprovação da lei de censura a obras de teatro e cinema, em novembro, culminando com a edição do AI-5, no dia 13 de dezembro. Entrementes, na Itália, um milhão de trabalhadores entravam em greve.
A América Latina vivenciaria a partir desse momento um ciclo de ditaduras militares, estendendo-se do Brasil ao Uruguai, e em seguida à Argentina, culminando, em 1973, com a ditadura de Pinochet no Chile. Entre nós as organizações revolucionárias, que também atuavam no movimento estudantil e que tinham nas universidades o seu campo preferencial e fértil de “recrutamento de quadros”, já a partir de 68 desencadearam a luta armada por meio de ações de guerrilha urbana para manutenção, armamento e obtenção de recursos para montagem logística, visando, quase que generalizadamente, a organização da luta armada guerrilheira no campo. A Ação Popular Marxista-Leninista (APML) nascera, em 1966-67, de uma divisão na importante e nacionalmente bem enraizada Ação Popular (AP), de forte inspiração cristã e com suporte na Juventude Universitária Católica - JUC, na Juventude Operária Católica - JOC e na Juventude Estudantil Católica - JEC; da Política Operária - POLOP, de inspiração leninista e bolchevique, surgiram, a partir de 1966, a organização guerrilheira chamada de Comandos de Libertação Nacional (COLINA), inspirada na revolução cubana, e, mais tarde, em 1967, o Partido Operário Comunista, POC, que perseverou na militância urbana junto ao mundo da fábrica; o Partido Comunista (Partidão), de forte lealdade à União Soviética, dera origem bem anterior ao PC do B, em 1962, e, a partir de 1966, dele surgiram a Dissidência da Guanabara, depois MR-8, a Dissidência de São Paulo, secundada pelo grupo dissidente de Minas Gerais (Corrente), depois ALN, e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR); o PC do B, provavelmente a formação melhor organizada, de orientação maoísta, preconizava a guerra popular revolu-cionária a partir do campo para o cerco às cidades, por meio da aliança operário-camponesa. Daí a sua concentração de esforços na guerrilha do Araguaia. Em meio às “desapropriações” de dinheiro efetuadas em bancos, tomadas de assalto a quartéis para a obtenção de armas e seqüestros de embaixadores, uma a uma essas organizações foram destruídas por meio da prisão e da eliminação física deliberada dos seus militantes, em muitos casos durante as torturas, da liquidação de sua fragilíssima logística (o “estouro dos aparelhos”) e da privação de meios até para a subsistência elementar em situação de clandestinidade, de isolamento social e de uma dura solidão existencial e afetiva. Dos escombros de algumas delas ainda surgiram, nos idos de 1969-70, primeiro a Vanguarda Popular Revolucionária – VPR, uma fusão dos remanes-centes da POLOP, que então deixa de existir, com os militares de São Paulo ligados a Lamarca, e a VAR-Palmares, uma fusão da COLINA com o grupo da Guanabara, secundado por grupos do Rio Grande do Sul, Bahia e Goiás, egressos da POLOP, a que se seguiu, pouco adiante, um “racha” e uma volta às origens com o ressurgimento da VPR e a permanência da VAR-Palmares, que logo sucumbiram à repressão. Com efeito, a repressão coordenara as suas ações, a partir de 1970, sob o comando - antes descentralizado de cada uma das forças armadas, quando cada qual mantinha o seu próprio serviço de informações - centralizado nos Centros de Operações de Defesa Interna (Codi), organismos colegiados integrados por representantes das três Armas e dos governos estaduais, tendo sempre à frente o comandante local do Exército. Os Destacamentos de Operações de Informações (DOI) constituíam o braço operacional dos Codi, comandados por oficiais do Exército e com quadros compostos por militares das Forças Armadas e membros das polícias militares estaduais. Além disso, controlavam completamente a Polícia Federal e os DOPS das polícias civis estaduais, além de passarem a exercer o comando geral das polícias militares, então uma nova atribuição conferida ao Exército. A guerrilha do Araguaia foi o último elo frágil da cadeia de derrotas. Terminavam os “anos de chumbo”, embora o assassinato por meio de torturas perdurasse até 1976, com as mortes do jornalista Wladmir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho.
Guevara morrera na Bolívia aos 8 de outubro de 1967, num intento de “criar um, dois, três ... muitos Vietnãs”, e, assim, generalizar a revolução cubana como uma revolução permanente na América Latina. O imagi-nário da juventude universitária e das esquerdas latinoamericanas adqui-rira um profeta épico, e jovem, em um contexto no qual a revolução cubana dava mostras de triunfalismo: derrotara o imperialismo na “Baía de Cochinos”, em 1961) e criara a OLAS – Organización Latinoamericana de Solidaridad. O sentimento de latinoamericanidade florescia nas lingua-gens da literatura, do cinema, da música e do discurso político revolucio-nário dos estudantes, enquanto reverberava na Igreja Católica latino-mericana adentro por meio da Teologia da Libertação. O padre Camilo Torres morrera na guerrilha, na Colômbia, em 1966. Logo o cancioneiro popular-revolucionário proclamou: “Dónde cayó Camilo, nació uma cruz / pero no de madera, sino de luz. / Lo mataron cuándo iba por su fuzil, / Camilo Torres muere para vivir...”. Os congressos das entidades estudan-tis brasileiras não raro aconteciam sob a proteção logística de ordens religiosas, em conventos, e padres participaram na linha de frente da passeata dos cem mil. Religiosos começavam a negar a validade da sua dedicação pastoral e das suas atividades de prática de educação formal junto às elites e às classes médias, optando pela “proletarização” ou pela vida junto aos pobres, nos bairros operários e nas favelas, assim como pela vinculação ao mundo da fábrica, seguindo os passos de incontáveis estudantes universitários militantes de esquerda que assim já viviam desde 1966-67.
Com efeito, éramos todos intensamente libertários e, ademais, internacio-nalistas. Não havia uma teoria. A linguagem, panfletária e intuitiva, de escritos como “La Revolución en la Revolución”, do francês Régis Debray, dentre outros, ou como o panfleto “Castrismo: a longa marcha”, reduziam a história da revolução cubana às virtudes heróico-guerreiras e míticas do foco guerrilheiro. Os diagnósticos fortemente ideologizados e impregnados de desejo induziam a crença segundo a qual a América Latina chegara a um dilema: socialismo ou barbárie. O alemão André Gunder Frank e os sociólogos brasileiros Ruy Mauro Marini e Teotônio dos Santos sustentavam que o subdesenvolvimento era o resultado estru-tural da expansão do capitalismo na periferia e que a única alternativa era o socialismo, tese à qual, nos anos 70, Marini retornaria com o argumento de que a superexploração do trabalho era a condição inexorável e inesca-pável de funcionamento do capitalismo periférico. O notável pensador e cientista social Celso Furtado e a então celebérrima Comissão Econômica para a América latina – CEPAL, vinculada à Organização das Nações Unidas - ONU, coincidiam na análise sobre as causas estruturais da estagnação econômica, que interditava o desenvolvimento econômico e social da América Latina. O tom era de ceticismo crítico. A teoria do desenvolvimento de alguma forma parecia dialogar com a inovadora “teoria da dependência”, apresentada no livro Dependência e desenvolvi-mento na América Latina, do chileno Enzo Faletto e do brasileiro Fernando Henrique Cardoso, de 1968, que sublinhava a autonomia da política e a possibilidade de escolhas nacionais de políticas que conduzissem à superação do subdesenvolvimento, emancipando a ação política e as escolhas dos agentes dos determinismos em voga. Para eles, a crise da industrialização latinoamericana, especialmente em países como o Brasil, a Argentina, o Chile e o México, era a crise de constituição do capitalismo nacional, fundado na substituição de importações sob a coordenação do Estado nacional. A sua solução residiria em atrair a poupança externa sob as formas de investimentos e de absorção de tecnologias provenientes do capitalismo central como alternativa para o crescimento, a geração de emprego e renda e para a redução das desigualdades, por meio de um processo de expansão impulsionado por regimes democráticos.
Mas essas últimas não eram leituras preferenciais ou validadas pelas esquerdas. Com efeito, as esquerdas supunham que as burguesias nacio-nais encontravam-se estruturalmente subordinadas ao capital externo e satelitizadas pelo imperialismo americano. As discussões centrais eram, então, sobre o caráter da revolução – diretamente socialista ou de libertação nacional, com uma etapa democrático-burguesa -, acerca da primazia política, militar ou político-militar do comando geral das lutas políticas e de guerrilhas, e a respeito da natureza de classe da vanguarda social das forças revolucionárias: a classe operária urbana, sendo a sociedade capitalista, ou o campesinato, no pressuposto de que o modo de produção dominante era semi-feudal, ou, até mesmo, o “quarto estrato” formado pelos presumidos setores considerados estruturalmente margina-lizados. (Essa última alternativa suscitou interessante polêmica entre Ladislaw Dowbor, o “Jamil”, da VPR, autor de “A revolução dos marginais”, e Wladmir Palmeira, do MR-8, que, com ironia, refutou a idéia no texto “A Revolução dos marginais ou os marginais da revolução?”) Com efeito, praticamente todas as lideranças estudantis militavam nas organizações que preparavam e que, ainda em 1968, deram os primeiros passos em direção à luta armada.
Na esfera da cultura organizada o Brasil vivia uma era de explosão criativa, que, mais ou menos uma década antes, fora inaugurada com o surgimento da bossa nova, no âmbito da música, do Cinema Novo, com o seu precursor Nelson Pereira dos Santos (Rio 40 graus, de 1955, Manda-caru Vermelho, de 1961 e Vidas Secas, de 1963), com a formação, sob a liderança da UNE, dos Centros Populares de Cultura (CPC, a partir de 1961, com a participação do jovem dramaturgo Oduvaldo Viana Filho), no teatro, com o teatro de arena, e na área editorial, tendo na dianteira a Editora Civilização Brasileira e sua revista Política Externa Independente.
Isaías Almada descreve o percurso da inovação no teatro, nos anos 60: “O teatro lírico, declamativo e aportuguesado do final do século 19 e início do século 20, a estética convencional burguesa exibida nos palcos de formato italiano nos anos 1940 e 1950 e as grandes companhias de estrelas foram substituídos pelo incipiente trabalho de criação coletiva no final dos anos 1950 e início dos 1960”, sobrevindo uma estética fincada na realidade do país, sendo prova dessa reorientação e de sua prática, “as encenações de Os Pequenos Burgueses (1963), Roda Viva (1967, cuja encenação em São Paulo em 18/07/1968 foi invadida e atacada pelo Comando de Caça aos Comunistas – CCC -, e, em Porto Alegre, onde ocorreu o seqüestro de atores, pelo mesmo grupo) e o Rei da Vela (1967), pelo Teatro Oficina, e Tartufo (1964), Mandrágora (1962) e Arena Conta Zumbi (1965), pelo teatro de Arena; Morte e Vida Severina (1965), pelo Tuca, ou os Fuzis da Sra. Carrar (1968), pelo Tusp, ou ainda Opinião (1964) e Liberdade, Liberdade (1965), pelo Grupo Opinião, ou ainda, Terror e Misérias do III Reich (1966), pelo Grupo Decisão, entre outras. As prisões de Antonio Callado, Flávio Rangel, Paulo Francis e outros intelectuais, no Hotel Glória, em 1965, quando cara a cara com o marechal-ditador Castello Branco protestaram contra a ditadura, não conteve a onda criativa, antes a encorajou.
O cinema viu surgir uma jovem geração de diretores – Leon Hirzman (A Falecida, de 1965), Joaquim Pedro de Andrade (Cinco Vezes Favela, de 1961, dele e de outros; Macunaíma, de 1969), Cacá Diegues (Ganga Zumba, Rei de Palmares, de 1963), Ruy Guerra (Os Fuzis, de 1963) e o gênio de Glauber Rocha (Deus e o Diabo na Terra do Sol, de 1963; Terra em Transe, de 1967; O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de 1969), além de Paulo César Saraceni (O Desafio, de 1965), Arnaldo Jabor (Opinião Pública, de 1967), Rogério Sganzerla (O Bandido da Luz Vermelha, de 1968), Walter Lima Jr. (Brasil, Ano 2000, de 1968), Gustavo Dahl (O Bravo Guerreiro, de 1968), Sérgio Bernardes Filho (Dezesperato, de 1968), Neville de Almeida (Jardim de Guerra, de 1968), Silvio Back (Lance Maior, de 1968) e Júlio Bressane (Cara a Cara, de 1968), conforme resenha organizada pelo cineasta Toni Venturi (Teoria e Debate, já citada, págs. 58-9), período no qual florescem no país os primeiros cursos universitários (como o da Universidade Católica, em Belo Horizonte) e os festivais nacionais anuais de cinema, como o realizado em Belo Hori-zonte, em 68, em meio à onda das passeatas, no Cine Paladium, e que se transformou em um ato de protesto político contra a ditadura. Porquanto não assistidas pelo povo, as obras do Cinema Novo empolgavam os jovens em todo o país e fomentavam uma comunicação-debate a dois, a três e a muitos interessantíssimo, país afora. Em algumas escolas públicas secundárias aprendia-se e discutia-se sobre cinema por meio de atividades extra-curriculares da iniciativa dos próprios alunos, à semelhança, por exemplo, do que se observava no feminino Instituto de Educação e no Colégio Estadual central, em Belo Horizonte. E quase tudo isso ocorreu em plena ditadura.
Em maio, na França os cineastas, com Trufffaut à frente, criaram os Estados Gerais do Cinema Francês, como informa Sérgio Augusto (O Estado de São Paulo, Cultura, D8, 11/05/2008), e Jean Luc Godard agarrava-se à quimera de “produzir filmes de criação coletiva, exclusiva-mente sobre e para a classe operária”. O “espírito rebelde, diz Sérgio Augusto, fez escala em outros quadrantes (...) Quem só pensou nos alemães Rainer Werner Fassbinder, Wim Wenders e Werner Herzog, e no italiano Bernardo Bertolucci, não percebeu os efeitos que a luta por um cinema mais autoral provocou na maior das Bastilhas, Hollywood” (Robert Altman, Francis Ford Coppola, George Lucas e Steven Spielberg, na virada dos 70). E tudo isso aconteceu sob as asas protetoras da demo-cracia, em todos esses países.
O rock and roll brasileiro, o Iê, Iê, Iê (de yeah, yeah, yeah, presente nas músicas dos Beatles), surgiu com a TV Record, a partir de 1965, com Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Renato e seus Blue Caps, os Golden Boys, Os Incríveis, a musa Wanderléa, Martinha, Ronnie Von e Jerry Adriani, mesclando música, comportamento e moda, sob a denominação de Jovem Guarda. Antes disso, no final dos anos 50 e início dos 60, surgira o gênero bossa nova, com origens estilísticas no samba e no jazz, no Rio de Janeiro, com Tom Jobim, Vinicius de Moraes, João Gilberto, Billy Blanco, Carlos Lyra, dentre outros, os conjuntos instrumentais Zimbo Trio e Tamba Trio, e a interpretação à base do canto falado, baixinho, de Nara Leão e Sylvia Telles. Já nos anos 60, sob certa influência dos CPC da UNE, a segunda geração da bossa nova, com Edu Lobo, Marcos Valle, Dori Caymmi, Francis Hime, e mais Carlos Lyra e Nara leão, lidera a proposta de reapro-ximação com os compositores do morro, como Zé Ketti, Cartola, Nelson Cavaquinho, e com o baião e o xote nordestinos, através de João do Valle (Carcará). Tinham início as releituras da bossa nova, protagonizadas também por Vinicius, que em 1965 compusera “Arrastão”, com Edu Lobo, e, em 1966, os afro-sambas em parceria com Baden Powell. O contexto já era, então, o dos festivais de música popular, dando início ao gênero daí diante difusamente designado como “música popular brasileira – MPB”, abarcando diversas tendências. Vandré (“Disparada”, de 1966) e Chico Buarque (“A Banda”, de 1966), que despontaram nos festivais, assim como Edu Lobo (“Ponteio”, de 1968), abrem essa estrada, e os esplêndi-dos Clube da Esquina, Milton Nascimento e Elis Regina, ela também projetada nos festivais citados, nos anos 70 emolduram de beleza essa senda. Outra vertente é o tropicalismo, influenciado pela pop art, com Caetano Veloso (“Alegria, Alegria”), Gilberto Gil (“Domingo no Parque”), Tom Zé (“São Paulo”), os maestros Gilberto Duprat e Júlio Medaglia, as cantoras Gal Costa e Maria Betânia, os Mutantes, com Rita Lee, também projetados nos festivais da MPB. Com a pretensão de ser “o avesso da bossa nova”, então apontada por Caetano como elitista, a ambição do tropicalismo era a de se constituir como um movimento cultural com alcance internacional para universalizar a música brasileira.
No âmbito da socialização da política, a ruptura entre o período pré-64, de alargamento da democracia e de fundação de uma promissora, embora incipiente, vida cívica e republicana, e 1968 significou uma ruptura entre gerações e o encerramento do primeiro período genuinamente democrá-tico e republicano experimentado pela sociedade brasileira, de 1945 a 1964. Esse corte brutal, se não foi impeditivo da transmissão cultural, se impôs como uma barragem ao processo de socialização da política. Como vimos, a aurora criativa da cultura brasileira esteve associada, no pós-64, ao auge da rebeldia estudantil. Com a repressão e a desmobilização do movimento estudantil, a cultura e os seus organizadores-autores isolaram-se politica-mente, a partir dos anos 70. Em 64, a dura repressão contra a geração das lideranças democráticas, proeminentes na vida partidária, parlamentar e governativa, na criação cultural, nos sindicatos e na imprensa, e contra a geração de líderes estudantis emergentes (UNE e CPC), resultou em uma diáspora no exílio e até mesmo em amargas e ao mesmo tempo épicas vivências do exílio dentro do exílio, tão dura, corajosa e exemplarmente experimentados por bravos como os mineiros José Maria Rabelo, Teresa e seus filhos, dentre outros. Essa ruptura na transmissão de uma cultura cívica democrática decerto induziu no Brasil aquela espécie de pensa-mento único entre as esquerdas segundo o qual a luta armada é a continu-ação da política por outros meios.
A maior parcela dos líderes estudantis brasileiros que fizeram 68 foi exilada; outra, eliminada fisicamente ou submetida à tortura pela ditadura, ou encarcerada; e em menor proporção, outros, sob o império do medo da morte violenta e sem a possibilidade objetiva e sem a perspectiva de ação política (afinal, com quem e como, no início dos anos 70?) mergulharam e por vezes sucumbiram em uma situação de solidão existencial e de deses-pero. Assim findamos os anos 60. Ainda sob os anos de chumbo e do terror do período Médici ingressamos nos anos 70, que viriam a ser pela vontade intencional de tantos e de muitos novos atores sociais, os anos de fundação da redemocratização brasileira.
Vista de uma perspectiva histórica, os anos 70 encerrariam o seu ciclo expandido com a promulgação da Constituição Cidadã de 1988. Com efeito, não é possível compreender a redemocratização sem a emergência de novos atores sociais como as associações de bairro, os clubes de mães, os comitês de luta contra a carestia, as comunidades eclesiais de base, as oposições sindicais, os jornais da imprensa alternativa, o comitê de luta pela anistia e sua regionalização, o movimento pelos direitos humanos e sua regionalização, e mais as atuações nacionais da Associação Brasileira de Imprensa – ABI, da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC durante os seus congressos anuais, assim como da atuação do Centro Brasileiro de Pesquisas – CEBRAP como difusor de arguta reflexão sobre o autoritarismo, o regime burocrático-militar no Brasil e sobre a questão da democracia, nisso secundado, pouco mais tarde, por uma constelação de cursos de pós-graduação em Ciência Política de excelência, além, é claro, da notável e destacada atuação nacional do MDB, vitorioso nas eleições legislativas nacionais de 1974 e de 1976, e, mais tarde, da ação do PT e do PDT, surgidos em 1980, e precedidos pelo florescimento do sindicalismo do ABC, sob a liderança de Lula.
Que significados tem 68?
68: Uma crítica em ato à sociedade e à política em um mundo desencan-tado
Há os que preferem subsumir 68 à luta de classes. É como se eternamente dissessem: estudantes, vosso movimento não passou de epifenômeno das lutas operárias que, afinal, são as que contam, pois lembrai-vos da greve geral dos 10 milhões de trabalhadores, na França, e, no Brasil, das greves operárias de Contagem (MG) e de Osasco (SP). Dessa ótica reducionista, 68 seria uma revolta da pequena burguesia ou das classes médias, de alguma forma causal presumivelmente explicável pelo fim próximo dos anos dourados do capitalismo mundial, experimentado no período do pós-guerra até o final dos 60.
Há, de outra forma, os que elegeram as revoltas estudantis de 1968 como origem do niilismo pós-moderno ou que as desqualificaram como um assalto à razão e uma ruptura com a tradição moderna oriunda do Iluminismo. Visto dessa ótica, 68 é niilista (estrada que conduz à inversão de todos os valores: todo propósito e sentido é mera ilusão) e pequeno-burguês; foi um assalto à razão, uma ruptura com a herança do Iluminismo (otimismo no poder da razão e na possibilidade de reorganizar a fundo a sociedade à base de princípios racionais; um otimismo baseado única e exclusivamente no advento da consciência que a humanidade pode ter de si mesma e de seus próprios acertos e debilidades: essa a sua idéia capital. Por isso a razão não era para o Iluminismo um princípio, senão uma força para transformar o real: a razão, algo humano, não era expressão de idéias inatas, senão de uma faculdade que se desenvolve com a experiência).
Nesse mesmo sentido o filósofo Raymond Aron escreveu La Révolution Introuvable (A Revolução Inencontrável), ainda em agosto de 68, e sustentou que “deslocar o bloco social da universidade sem saber que bloco construir ou a fim de deslocar a sociedade inteira é niilismo de estetas, ou melhor, irrupção de bárbaros, inconscientes de sua barbárie”. Para ele a universidade, o lugar do discurso, do logos, estaria sendo substituída por um projeto político inexistente.
Enquanto outros autores, como Gilles Lapouge, propõem que 68 conti-nua a resistir a qualquer teoria ou interpretação, e que ninguém ainda sabe realmente o que foi exatamente - Seria um “espírito de época”?; Por que continua a produzir fascinação nos espíritos? -, por outro lado são abundantes os axiomas condenatórios, provenientes da intuição, tais como:
68 preparou o caminho para o individualismo contemporâneo!
Ainda que em essência anticapitalista e de esquerda, 68 preparou o terreno para o capitalismo global e consumista de hoje!
O que querem hoje os jovens? Emprego, escola funcionando bem, organi-zação, renda, propriedade, consumo, segurança econômica, diversão: a circunspecção e a angústia (medo da profissão que não vai encontrar, da sociedade que os aguarda) ocupou o lugar da alegria. Herança indesejada de 68?
Semelhante a um epitáfio, também se proclama que os jovens insurgiram-se contra a vida cotidiana em nome da História, o cotidiano os derrotou, demoliu as inconciliáveis utopias do futuro longínquo e gerou um novo e atualizado conformismo social.
Eis uma seqüência de sentenças habituais.
Cohn-Bendit, citado por Andrei Netto (ESP, D5, 11/05/2008), afirma que “o movimento estudantil não era um movimento revolucionário, mas de revolta. Ganhamos em termos culturais e sociais, enquanto perdemos em termos políticos”, conclui. Henri Weber, outro líder do movimento estudantil e hoje deputado europeu do Partido Socialista, nos diz: “O autoritarismo que encontrávamos em todas as células sociais, na empresa, no casal, na família, escola, universidade, era o nosso adversário”.
São numerosos os comentaristas e ensaístas que assim descrevem e analisam o movimento de 68, visto da Europa: os estudantes não queriam o poder, mas desacatá-lo, e, com ele, desacatar e combater todas as formas de autoritarismos. As lutas de 68 foram sempre antiautoritárias. Tudo podia e devia ser contestado. Contestado em nome de quê? Liberdade. Em Paris, desejava-se o fim de um governo de velhos; em Varsóvia e Praga o alvo era o stalinismo. Contestou-se: ditaduras, império comunista, imperialismo americano, democracias acomodadas. E prosseguem: O quê 68 evoca e simboliza? Seria um símbolo da luta contra os autoritarismos? A ordem era duvidar de tudo e o argumento de autoridade perdeu a razão de ser. Por tudo isso, mas também por propor uma sociedade menos hierarquizada em todos os níveis seria má referência para conservadores.
Com efeito, em vários aspectos da vida social nada mais seria como sempre fora: da repartição de tarefas entre mulheres e homens à sexualidade; das relações entre estudantes e professores às relações entre pais e filhos; nos costumes e na vida política, com a ampliação da democracia pela incorporação dos Verdes e de sua agenda de desenvolvi-mento sustentável ao protagonismo emergente dos movimentos sociais autônomos, como os feministas, os ambientalistas e os dos direitos dos gays, que logo se imporiam como fortes formadores de opinião e propulsores de agendas e de decisões políticas mais inclusivas, igualitárias e comprometidas com a transmissão de direitos para as gerações futuras - no caso dos Estados Unidos, na generalização acelerada dos direitos civis, estendidos aos negros e às “minorias”. Arte e vida passaram a ser tratadas como se fossem uma só: viver artisticamente – uma das utopias. Criar na rua, enquanto se vive. Abolir limites entre agir e pensar. Se isso não era possível na prática, parecia bem tangível no desejo. Nessa entrega generosa, todas as possibilidades estavam abertas, pensava-se. Por isso viveu-se um voluntarismo. Tanta coisa aconteceu ao mesmo tempo. As derrotas políticas foram marcantes, na Europa e nas Américas.
Mas visto da ótica de um ciclo longo, o “espírito” de 68, como que uma “pedagogia antecipatória”, não teria contribuído para a semeadura de uma nova Renascença? Se a globalização da economia e do america-nismo, como estilo de vida, na era do neoliberalismo subsumiu o espírito de 68 e até mesmo intencionalmente banalizou pela mercantilização certa simbologia a ele associada, o que dizer, nos dias de hoje, da aurora de uma mentalidade e de uma constelação de movimentos societários que têm como norte o desenvolvimento sustentável e o substrato democrático e igualitário que esse ideário contém?
Por que voltamos ao tema 68 a cada 10 anos? Parece que em 1968 a histó-ria pisou fundo e acelerou. O que de fundamental Maio de 68 desenca-deou entre os jovens foi uma adesão a valores e causas estranhos aos seus pais e avós, marcados pelas circunstâncias de duas guerras mundiais que abriram e fecharam a maior crise capitalista. Na Europa os anos vividos entre as duas guerras mundiais do século XX foram tempos sombrios e de contenção, e as três décadas vividas após a Segunda Grande Guerra, ainda que alavancados pelo Plano Marshall e pelas políticas públicas sintetiza-das na forma do estado do bem-estar social, continuaram sendo de uma contenção emoldurada pela angústia da Guerra Fria e pelo medo da morte violenta resultante da destruição nuclear, e isso em uma situação de vizinhança territorial face a face com o “inimigo”. Esse mesmo clima algo sinistro de medo da morte violenta em face dos riscos que a Guerra Fria implicava também terá marcado intensamente a psicologia e o psiquismo coletivo da juventude americana e de seus pais.
Se as duas grandes guerras e a guerra fria eram o apocalipse e o armagedon redivivos e atualizados em pleno século XX, o mundo desen-cantado vivenciado pela juventude poderia ser descrito como a privação imposta à juventude do direito à experiência existencial de viver a juventude. Assim, as primeiras e abrangentes respostas comportamentais e culturais das juventudes se exprimiram tão vigorosa e arrebatadora-mente por meio da música, primeiro, com o rock, nos anos 50, com Bo Diddley, o precursor, Chuck Berry, Little Richard, Bill Haley e, depois destes, Elvis Presley, entre outros, rapidamente se espalhando desde o Sul dos Estados Unidos, seu berço, para o mundo, seguindo-se, nos anos 60, a chamada “Invasão Britânica”, de 1964 a 66, com os Beatles e os Rolling Stones, quando, nos Estados Unidos, despontam Jimi Hendrix e Janis Joplin, com o “acid rock”, culminando com o Festival de Woodstock, e o rock progressivo, uma associação com o folk - já então celebrizado, desde 60, com a interpretação e as composições de Joan Baez -, o jazz, a música erudita e o blues, tendo Pink Floyd à frente. Com origens também no blues e na música folk, além da gospel, a música country já fazia sucesso, desde os 60, com Bob Dylan, enquanto no cinema, desde os anos 50, James Dean e Marlon Brando expressavam angústia e rebeldia.
A juventude começava a inventar a juventude como um ator portador de desejos e de voz, porquanto que ainda não de direitos, inclusive do direito de inventar novos valores e de combater velhos valores, assim como do direito de ter vontade própria. Começavam a renunciar à condição de “homens futuros”, para tomar de empréstimo a expressão de Bertold Brecht, imposta pela tradição proveniente das gerações precedentes à maneira de uma servidão voluntária à vontade e deliberações dos mais velhos e portadores de experiência.
Em 68 a agitação se comunicava por si só: de amigo para amigo, formando uma rede informal em que todo mundo falava com todo mundo. As barreiras sociais, cívicas, educacionais, geracionais, os códigos de comportamento, tudo desmoronou... As trocas culturais, sociais e afetivas entre as classes sociais e categorias sociais foi impressionante.
68: teria sido não mais que niilismo de estetas, como denunciou Raymond Aron, e um assalto à razão e contra o discurso e as conquistas provenien-tes do Iluminismo?
68 irrompe e redunda na queda do paradigma de que estamos progre-dindo, a crença da geração do pós-guerra. Com efeito, no pós-guerra o capitalismo vivia os seus anos dourados de crescimento ininterrupto em escala global, a descolonização na Ásia e na África era um fato, a ONU fora instituída e a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclama-da, e quase toda a Europa ocidental fortalecera-se na democracia. Mas de outra parte, o império soviético consolidara-se; Portugal, Espanha e Grécia eram ditaduras; a guerra da Coréia ameaçara uma vez mais a paz mundial e radicalizara a Guerra Fria, e esta já se estendia demarcando “campos” ideológicos e novas territorialidades nas áreas em processo de descolonização; no Vietnã, prenunciando o que ocorreria anos depois na Argélia, o imperialismo francês derrotado passara o bastão ao imperialis-mo americano, e o sudeste asiático estava se transformando em campo de disputa capitalismo versus comunismo, implicando nos riscos de uma terceira onda sucessiva de militarização compulsória da juventude ameri-cana; a intolerância dava mostras de vitalidade no caso do “mackartismo”, numa demonstração de que a vaga democrática ainda convivia com o “ovo da serpente”; a bomba atômica logo viria a ser definitivamente compartilhada em escala apocalíptica e, assim, os feitos notáveis do primeiro astronauta (o russo Gagárin) e dos americanos com a primeira viagem à Lua inscreveram-se como episódios excepcionais da Guerra Fria; e, enquanto isso, na América Latina os Estados Unidos patrocinavam as ditaduras ..., inclusive no Brasil, em 1964.
Não seria mais razoável e crível propor que, ressoando a Shakespeare, em situações de tão intensa efervescência e potência criativa todos os perso-nagens podem ter razão, inclusive – e por que não, também ela? - a juventude? Niilismo! O que, em nome da razão, fundamenta e legitima a pretensão de validade exclusiva da agenda de valores das gerações até então reinantes e que, naquelas circunstâncias, ainda clamavam por contenção e sacrifícios, o mesmo clamor que ouvira de seus pais e, por sua vez, estes dos seus pais? 68 irrompe como contestação rebelde e como experimentação algo artística, semelhante nesse sentido a uma “destrui-ção”. Mas não teria sido uma destruição... criativa? A resposta de Aron é peremptória: não! Sua condenação a 68 encontra ressonâncias no Fausto, mas em total e aflitiva oposição e denúncia contra Mefistófeles, o demônio sedutor e persuasivo, com o que por decreto seu objeta e tenta suprimir a tensão verdadeiramente humana que a alma experimenta entre destruição e criação, e assim intenta conter o desejo, não apenas por meio da reiteração da cultura acumulada e dos seus cânones validados, mas pela condenação da experiência, da ação coletiva de jovens protagonistas iracundos, que podem desencadear forças infernais incontroláveis de mudança sem a autoria e proposição de um logos alternativo. Aron afirmou que a destruição do discurso ou do logos estabelecido sem a sua superação e a proposição de um outro que tenha sentido e significado não é outra coisa senão vitalismo, sensualismo, improvisação, irrupção de bárbaros. Mefistófeles, que aconselhava Fausto a afastar qualquer dúvida moral, lançando nos outros a culpa e eliminando a pergunta inibidora da liberdade de ação: “deveria fazê-lo?”, seria o demônio sedutor por trás da revolta estudantil de 68.
1968, propõe Timothy Garton Ash, professor de Estudos Europeus de Oxford, “não produziu uma transformação comparável das estruturas políticas e econômicas (como ocorreria em 1989), mas foi o catalisador de uma profunda mudança cultural e social, tanto na Europa oriental quanto na ocidental”. Ele prossegue: “Em 1968 tantos mostraram-se tão duros com o fato de alguns da geração de seus pais (os nascidos em 1939) terem simpatizado com os terrores do fascismo e do stalinismo ... que talvez desejem fazer uma reavaliação de sua própria tendência pouco responsável a simpatizar com o terror em países distantes a respeito dos quais pouco sabiam (numa referência à “revolução cultural”, na China sob Mão Tsé-tung). Mas muitos souberam tirar lições e se engajaram em uma política mais séria de um “novo evolucionismo” liberal ou verde, que incluiu o fim de uma série de regimes autoritários europeus, de Portugal à Polônia, e a promoção de direitos humanos e da democracia em países distantes a respeito dos quais aprenderam a conhecer mais” (O Estado de São Paulo, D , edição de 11/5/2008).
Proponho que 68 pode ser muito melhor compreendido visto da ótica de Isaiah Berlin, que reconhece a coexistência de valores que podem não ser intercambiáveis mas são igualmente validados. Daí a sua defesa de uma pluralidade objetiva de valores, os quais podem não ser compatíveis nem guardar entre si um elo lógico que permita hierarquizá-los. Como conci-liar, por exemplo, a pílula anti-concepcional, a liberdade sexual e as uniões afetivas e estáveis entre casais homossexuais com a prescrição eclesial segundo o qual a sexualidade pertence ao casamento entre homem e mulher, esse sim natural, para a constituição de uma família nuclear?
68 foi quando a juventude inventou a juventude. E isso tem preço alto, pois - já nos disse Guimarães Rosa - viver é muito perigoso e o diabo anda solto no meio do redemoinho, para concluir que “o diabo não há, o que há é o homem humano”.
A filósofa Olgária Matos publicou no jornal O Estado de São Paulo (Cultura, D 10, edição de 11/5/2008 e disponível no portal estadao.com.br) um ensaio-ode a 68. Nesse maio de 2008, nós, os hoje sessentões que aqui nos reunimos para receber as homenagens da Câmara Municipal de Belo Horizonte àqueles que participaram das lutas de 64 e de 68 no Brasil, desejamos que Olgária Matos fale um pouco por nós:
“Em 68, a poesia substituiu a prosa (o cotidiano prosaico do consumo burguês é sem elaboração literária). Por isso, 1968 foi, ao mesmo tempo, épico, lírico e garantiu os direitos da subjetividade. Não foi uma luta pelo poder, mas contra ele. Foi contra a estatização do indivíduo, afirmando os direitos da subjetividade e da espontaneidade criadora e consciente. Contrapôs-se à ideologia que condenava o indivíduo e a subjetividade, reduzindo-os à condição de “individualismo” e “sentimentalismo peque-no-burguês”. Com a crítica à ética da abnegação e do sacrifício, a crítica ao mundo desencantado e burocratizado colocou como lema a verdade triunfante do desejo. Contra o mundo sem sonho e sem poesia, fez-se o mês de maio, convertendo a prosa em poesia, a sociedade em comunidade política – aquela que quer a felicidade e encontra novas razões da vida em comum.”
As antiutopias de 89 por si só varreram o autoritarismo do Leste europeu, selaram o fim da guerra fria, produziram a emergência de um capitalismo globalizado politicamente mais social-democrático na Europa e na maior parte do mundo, ou esses resultados podem ter sido um efeito composto também das utopias de 68?
Eric Hobsbawn propõe que 68 não foi um começo nem um fim, apenas um sinal: “As pessoas daquela época acreditavam que estavam derru-bando uma velha sociedade ou pelo menos fazendo o possível para isso. Em retrospectiva, o movimento de 68 é sinal de uma importante revolução cultural, com diversas raízes”. Experimente, então, caro leitor, substituir a expressão “revolução cultural” por “uma nova Renascença”... Em resumo: 68, De te fabula narratur.
68 terminou em 1989?
Nos anos 70 do século passado Portugal, Espanha e Grécia deixaram para trás as suas ditaduras e ingressaram na comunidade européia como nações democráticas, caminho também percorrido pela Polônia, Hungria e outros países do Leste europeu a partir do final da década seguinte. Haveria nesses processos de generalização da democracia na Europa algum efeito, ainda que impremeditado, de maio de 68? Timothy Garton Ash registra que os “estudantes de 68 ocupam os lugares mais proemi-nentes na produção cultural dos países europeus”, e que estudantes de 68 são hoje, alguns deles, personalidades de destaque na vida pública de seus países. A emergência e a proeminência dos Verdes na Alemanha teria sido possível, em pouco tempo, sem os eventos de maio de 68 na Europa e, em particular, na própria Alemanha? “Os próprios “heróis da retirada” sovié-ticos, ao redor de Gorbachev, diz ele, foram marcados pelas memórias de 1968”.
Politicamente falando, 89 mudou muito mais. Em todos os países do Oci-dente, o capitalismo sobreviveu, reformou-se e prosperou. 1968, no entanto, era anti-capitalista. Mas prosperou também a liberdade e, com ela, a democracia foi-se generalizando. 1968 denunciava o conformismo social e as democracias burocratizadas, e era radicalmente libertário.
Garton Ash sugere que “Em termos culturais e sociais, 1989 tem mais o caráter de uma restauração, ou pelo menos da reprodução ou imitação das sociedades de consumo ocidentais atuais. No cômputo geral, 1968 consti-tuiu um passo adiante rumo à emancipação humana. Na maior parte das sociedades, e na maior parte do tempo, as chances de vida das mulheres, dos homossexuais e das lésbicas, das pessoas pertencentes a várias das minorias e a classes sociais às quais hierarquias ultrapassadas impedem de avançar, são muito maiores hoje do que antes de 1968”.
68 significa a inauguração de uma era de tolerância jamais vista, caracte-rizada sobretudo pelo intercâmbio e pela formação de redes proximais entre culturas, em patente contraste com o diagnóstico do “choque de culturas” salientado pelos cruzados da direita intelectual e política americana, com o cientista político Samuel Huntington à frente. Quando a terceira geração de jovens franceses descendentes de árabes argelinos promoveu, em 2007, a revolta na banlieue (periferia) da grande Paris contra a exclusão econômica, não estariam, de alguma maneira impreme-ditada, ressoando 68, ainda que um tanto desesperançadamente e por razões bem mais prosaicas? Quando observamos a ascensão da liderança do candidato negro Barak Obama, alicerçada em medida ponderável na mobilização e na participação organizada e espontânea dos jovens, até então cultores do absenteísmo eleitoral nos Estados Unidos, não é muito significativo constatar que os 42 milhões de jovens eleitores de agora são os filhos da geração de 68, e que dentre aqueles, um em cada quatro são filhos de um americano com um estrangeiro (latinoamericano, asiático...)? Recordemos as lutas pelos direitos civis dos negros e pensemos acerca do seu notável parentesco, da ótica do alargamento dos direitos civis, com a luta atual pela legalização cidadã dos 12 milhões de imigrantes ilegais residentes nos Estados Unidos; observemos o mal estar que vai se generalizando entre a juventude americana com a Guerra do Iraque e as nada improváveis ressonâncias do clamor dos anos 60 por “Paz e amor” nesse processo. E o que dizer da recusa de soldados e de oficiais do Exér-cito e de pilotos militares de Israel a atirar ou bombardear palestinos? Ressonâncias de 68?
Brasil: 68 revisitado quarenta anos depois
A partir da edição do AI-5 o autoritarismo burocrático-militar gerou gêmeos (para usar a metáfora de Hobbes): a bolsa de valores e o medo. No início dos anos 1970 as juventudes brasileiras provavelmente seguiram seis percursos:
a) a minoria ignorada que perseverou na luta armada, em condições de clandestinidade e até o seu aniquilamento, de que faziam parte aqueles que não tiveram alternativa senão o exílio;
b) mais expressiva quantitativamente, outra minoria enveredou pela senda da contra-cultura, da negação de qualquer forma de sociabilidade constituída e da opção desesperada pela auto-destruição manifesta no consumismo das drogas (ausentes em 68, à exceção da herança proveni-ente da geração beatnik, como fato isolado nos Estados Unidos);
c) uma parcela expressiva e muito ponderável de jovens, universitários e não universitários, provenientes das classes médias e das classes popula-res, dedicou-se corajosamente às ações moleculares e de quase nenhuma visibilidade política de organização daquilo que mais tarde também seria reconhecido e valorizado como “sociedade civil”, no sentido da constru-ção de uma cultura cívica para a formação da cidadania e de uma esfera pública e política de atuação, visando a melhoria das condições de vida, a redemocratização e uma vida republicana;
d) mais uma parcela expressiva de jovens, adolescentes e não, de origem operária e popular, no início da modernização e da automação industrial no país, buscou a formação profissional e, adiante, veio a formar uma nova classe operária, com aspirações de ascensão social e educacional, tendo como símbolo do seu êxito econômico e profissional a propriedade de um carro e o acesso à casa própria, e no seu imaginário a expectativa de que os seus filhos chegariam à universidade, como que expressando uma nova classe operária que “chegou ao paraíso”;
e) parcela quantitativamente expressiva de adolescentes e de jovens ficou “à margem da vida”, literalmente marginalizada, numa época, como a dos anos 70 e 80, em que o acesso ao ensino médio era privilégio dos que podiam pagar pelo ensino privado. Essa radical exclusão dos mais pobres decerto é uma das raízes formadoras da narcoeconomia, que tem como protagonistas visíveis crianças e adolescentes barbarizados pela crimina-lidade;
f) outra parcela igualmente expressiva e muito ponderável de jovens foi, com êxito profissional, ao encontro das emergentes oportunidades de emprego qualificado e de renda proporcionadas pelos anos do milagre econômico e pela expansão e modernização acelerados da economia industrial, de serviços e de operações financeiras organizadas ao redor do fenômeno da atratividade, então avassaladora, das bolsas de ações, de oportunidades e de fetichização do dinheiro. É relevante, também, o registro de que a partir da década dos anos 80, com o boom econômico rural proporcionado pela revolução verde e pelo estímulo às exportações, emergiu uma juventude rural abastada – os “agroboys”- que inaugurou no país o estilo country, à maneira americana (vestimenta diferenciada e, depois, o chic rural, linguagem, música ao estilo country, camionetes importadas, e as séries de leilões e rodeios e feiras e shows cada vez mais glamurizados). A versão urbana cosmopolita desse fenômeno de amplia-ção e de circulação de novas e jovens elites econômicas de profissionais, compreendendo a formação de um segmento de jovens executivos finan-ceiros e empresariais, psiquicamente tensionados pela competição corpo-rativa e pela ostentação consumista de status, ficou conhecida como a geração yuppie (yuppie).. Outro registro: as drogas caras, contra-ponto presumido do stress extremo, penetraram avidamente nesse mercado emergente, e isso provavelmente terá viabilizado a formação e a consolidação de uma narco-economia, que antes já alcançara segmentos estudantis universitá-rios por meio dos que foram aspirados para o redemoinho da contra-cultura. (Perifericamente a esse mercado não teria sido formado o outro, o de drogas para os mais pobres, protagonizado, como os filmes “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite” efusivamente descrevem, por crianças e adoles-centes das favelas e das periferias urbanas?).
São essas as juventudes que compuseram a paisagem social brasileira dos anos 70, sob a ditadura e os anos do “milagre econômico”, enquanto acelerava-se a migração campo cidade e a urbanização, com a formação rápida das regiões metropolitanas e de uma crescente constelação de sub-metrópoles regionais nos interiores do Brasil, especialmente nas regiões de expansão da fronteira agrícola e do agro-negócio.
Os exilados regressaram ao país resgatados pela anistia, em 1979. Até então, no Brasil estava se formando, sob o império do medo, pelo menos até 1975-76, e, daí em diante, em tempos de distensão lenta, gradual e nem tanto segura – pois a ditadura era um fato -, uma sociedade civil com uma multiplicidade de organizações voluntárias, constituída por uma geração de bravos e jovens lutadores sociais, com datação a partir de 1973-74: os milhares de militantes das pastorais, das oposições sindicais (que juntamente com a igreja católica passaram a comemorar o 1º. de Maio, celebrando-o durante missas, campais ou não), o movimento estudantil, as milhares de animadoras do movimento contra a carestia (1994-95), dos grupos de mães e dos movimentos comunitários pró-creche, os escritores e jornalistas da imprensa alternativa, os militantes que se dedicaram a atividades editoriais e de formação para a cidadania em localidades de moradia operária. Mas foram raros os casos em que militantes de esquer-da de 1968 exerceram real e ponderável influência nesses processos de construção molecular da sociedade civil, em condições de ditadura.
O senso comum que se foi formando sobre o mundo dos jovens dos anos 70 em diante, seus sonhos, suas expectativas, suas ambições, seu compor-tamento cotidiano descreve o jovem como alienado, conformista, consu-mista, hedonista e egocêntrico, dentre outras generalizações banaliza-doras, com o que estariam eles inaugurando a era da pós-utopia, na linha de viver intensamente o dia-a-dia. O primeiro contraponto pertinente a isso é o contexto, ainda que sob o risco dessa abordagem aparentar certo relativismo ou a narrativa de uma situação objetiva de drama, por falta de opções. O fato que fica é que a década cronológica dos anos 70 teve o seu início histórico com a edição do AI-5, em dezembro de 1968, sob o signo da ditadura dentro da ditadura, o que redundou em uma segunda ruptura e em descontinuidades na transmissão cultural e na socialização da política entre gerações, e com os agravantes de que, dessa vez, primeiro, as juventudes dos anos 70 e os organizadores da cultura caminharam por caminhos paralelos, sem comunicação, a não ser pela via da oferta e da demanda no circuito comercial do entretenimento, com escassas ressonâncias de 68, e, em segundo lugar, o medo habitava o psiquismo coletivo enquanto o triunfalismo do “milagre econômico”, simbolizado pela bolsa, exercia impressionante poder de atração (o medo ainda é algo muito pouco estudado entre nós. Recordo-me que, em 1974, em Belo Horizonte, no prédio da antiga Fafich, da UFMG, a antropóloga Ruth Cardoso e o cientista social argentino Guillermo O’Donell organizaram um pioneiro seminário sobre a ditadura e o medo. Recordo-me, também, que, após 18 meses de prisão e, em seguida, 2 anos e meio de exílio, ao retornar ao Brasil, já no início de 1973, e à Fafich, onde rematriculei-me no curso de Ciências Sociais, algumas pessoas percebiam-me como risco e tinham medo de comigo relacionar-se, ainda que o desejassem sincera-mente).
Como quer que seja, sob as asas protetoras e de animação da igreja católica emerge no Brasil a juventude cidadã das classes populares, e, para citar um exemplo edificante e com repercussões futuras profundas, o movimento comunitário pró-creche, que, então, parecia um pregador no deserto, mas que fundava no país uma trajetória que, décadas depois, redundaria na ampliação da eqüidade e na reivindicação acolhida de ensino pré-escolar para todas as crianças, como seu direito subjetivo, e creche para as crianças pobres até 3 anos de idade. Essas conquistas civilizatórias vieram de lá das periferias urbanas pobres. Permitam-me: “Meninos, eu vi”... nascer! Por seu turno, já nas companhias da ousadia dos recém-surgidos CEBRAP (1972), jornal Opinião (1974), jornal Movi-mento (1975), jornal Em Tempo (1977), e, como eles, em escala regional e municipal, tantos outros (em Belo Horizonte, o excelente jornal De Fato, de 1974, criado por um grupo de jornalistas jovens), e da vitória eleitoral do MDB em 1974, o movimento estudantil começava a se reerguer, vindo a realizar abertamente o Encontro Nacional de Estudantes – ENEN, organizado pela UNE, em Belo Horizonte, que terminou com a prisão por um dia de todos os participantes. Mas a ditadura já não era a mesma: tivera início a distensão. Após nova e espetacular vitória eleitoral do MDB (1976), logo adiante emergiu o movimento sindical do ABC, formador de uma nova elite sindical de luta e negociação, intensamente comprometida com a redemocratização. A anistia e a volta dos exilados, o robusteci-mento do novo sindicalismo, a formação do PT e do PDT, com signifi-cativa participação da geração de 68 que retornava do exílio, a reconquista das eleições estaduais para governadores (1982), tudo isso em tão pouco tempo, decerto retirou a juventude universitária e o movimento estudantil do proscênio da luta política contra a ditadura e pela redemocratização do país.
Mas esse fato é auspicioso, porque revelador de um processo de formação e elevação da nação, com uma multiplicidade de atores sociais e políticos relevantes falando por si mesmos, enquanto se afirmava a força dos partidos políticos emergentes, além do MDB. Doravante, a militância política dos jovens viria a ocorrer mediada pelos partidos políticos e suas organizações de juventudes.
No entanto, não foi esse o fator gerador de uma crise crescente de legitimidade do movimento estudantil enquanto tal. Antes, essa causa é endógena, produzida intencionalmente pela apropriação das entidades estudantis pelos partidos e, daí em diante, por uma impressionante oligarquização e domínio das entidades e por uma exibição de falta de decência e escrúpulos dos dirigentes estudantis por contraste com o que deveria ser a internalização e a prática exemplares de valores e de uma cultura cívica democrática. O golpismo, o oportunismo e sabe-se lá mais o quê passaram a reinar nesse âmbito.
A campanha das Diretas Já e, logo, as eleições de 1986 e a Constituinte assinalam o fim histórico tardio dos anos 70, em 1988, no Brasil, final emoldurado pela crise e débâcle do socialismo real, simbolizada na derrubada do muro de Berlim, em 1989. No plano global as esquerdas foram submergidas em um processo de adensamento e convergência de crises: uma crise teórica, uma crise ideológica, uma crise política, em face da onda conservadora do neoliberalismo e sua utopia do “Fim da História”, depois revista.
Uma questão que não deve ser calada é: Por que, nos anos 80, durante a campanha das diretas e até a Constituinte, tantos adolescentes e jovens entusiasmavam-se em especial com o PT e ostentavam as estrelinhas vermelhas e brancas nas camisas, nas blusas e nas boinas coloridas ao estilo reggae, num surto impressionantemente amplo de simpatia e de esperança no novo, logo e tão intensamente sucedido por um desencan-tamento radical com a política? Lembremos que os universitários dos anos 80 eram os filhos da geração politizada dos anos 60. A voz de Milton Nascimento e a canção “Coração de Estudante” embalaram toda essa nacional campanha cívica e tão apropriadamente também estudantil. No pop rock brasileiro dos anos 80, com suas idéias tão vívidas, Cazuza, Renato Russo, Lobão, Lulu Santos, Raúl Seixas e os celebrados conjuntos Legião Urbana, Titãs, Paralamas do Sucesso, RPM, Capital Inicial e Barão Vermelho já empolgavam as juventudes. Adiante, a campanha pelo impeachment do presidente Collor mobilizou uma juventude entusiástica, mas já sem o entusiasmo anterior com os partidos emergentes. Uma resposta possível a isso seria o deslocamento da vontade cidadã dos jovens para as ONGs e, em especial, em direção aos movimentos ambientais? Outra, provávelmente mais visceral, teria a ver com a rápida e avassa-ladora formação de expectativas de inserção profissional e econômica, já tão dominante nos anos 90, provenientes do mercado e reverberadas nas famílias, nas mídias, nas escolas, por todo lado - lembremos que os universitários dos 90 eram os filhos da geração dos anos 70. Talvez sejam essas algumas dentre respostas possíveis.
Mas o que o movimento estudantil dos anos 80 e 90 fez contra ele mesmo e contra a democracia – uma reedição miserável do homem cordial – e, sobretudo, o que algumas e muito proeminentes lideranças políticas com trajetória inaugurada em 68 fizeram pelo desencantamento do mundo e pelo desencantamento da juventude com a política, já nos anos mais recentes, com suas desventuras intencionais tramadas em nome de um cínico realismo da política, ainda está por ser melhor compreendido, em toda sua extensão, gravidade e impunidade, pois eles sequer demonstram ter culpa na consciência, aliás, tomando de empréstimo ao excelente Roberto da Matta, eles sequer têm vergonha...
Com tudo isso, imagino que teimosamente la nave và por obra e graça da intencionalidade humana. Mais que o precedente, será este um século vivido em um mundo de tantas incertezas e, para o bem ou para o mal, suas ondas relativistas – afinal, a democracia não seria, precisamente, a organização da incerteza?, segundo Adam Zervoski. Seja como for, não é, então, o caso de, cognitivamente, incorporarmos a incerteza ao nosso conhecimento de opções e às nossas escolhas intencionais? A incerteza não advém precisamente do fato auspicioso de que, sendo os sujeitos em princípio capazes de fazer escolhas intencionais com autonomia moral e intelectual, isso não torna os cursos das ações e os acontecimentos menos previsíveis? Por sua vez, o processo civilizatório de construção, institucio-nalização e consolidação da democracia, porquanto propicia a tolerância e a razoabilidade, também não educa para que cada indivíduo, ao agir, aprenda a se fazer a pergunta fundamental: “Deverei fazer?” e não apenas a outra “Como fazer?, e assim aprenda a estimar as conseqüências e a assumir as responsabilidades por seus atos? Posta dessa perspectiva, a idéia e a organização de uma cultura segundo a qual o interesse econô-mico precisa ser submetido à contenção do desenvolvimento sustentável seria uma quimera de utopistas, recendendo a 68? Ou, por outras palavras, neste século XXI não é a utopia que poderá impor ao capitalismo, já planetário, mais que a contenção de sua paixão desmedida e desregrada por Mefistófeles – a destruição “destrutiva” da natureza e a banalização da vida humana -, pelo menos uma reorientação política, cultural e ética civilizatória? Sobre utopias, verificamos que, no cômputo geral, 1968 constituiu um passo adiante rumo à emancipação humana. Nesse momento já não estaríamos inventando uma nova Renascença? O paradigma do desenvolvimento sustentável já não inicia a sua entrada triunfal no século XXI como uma agenda política planetária, com massiva adesão cidadã e especialmente entre os jovens, e com fortes impactos em cada país, sendo esse um elemento central constitutivo da cultura e dos valores do que seria essa nova Renascença? A provável derrota da direita política e intelectual norte-americana e de seu propósito ideológico sincero de impor até pela guerra a democracia liberal no mundo, não prenunciaria a chance do diálogo entre as culturas, aliás preconizado por Barak Obama, ao invés do “choque de culturas”, dando origem a uma segunda onda mais ou menos planetária de tolerância e paz internacional?
No âmbito sul-americano e mesmo latinoamericano, e, nele, em deter-minados países, entre eles o Brasil e seus vizinhos andinos, a questão indígena não tende a ser intensamente enfrentada como assunto proe-minente em uma agenda de fortalecimento e de consolidação consti-tucional e institucional da democracia? A incipiente União das Nações Sul-Americanas, desejavelmente algo mais além de uma união para organizar mercados e relações econômicas, não poderá formar uma agenda de assuntos como a questão indígena, a questão energética – com repercussões previsíveis no domínio e uso de tecnologia nuclear no subcontinente -, ou a questão da Amazônia, assim como a da segurança compartilhada e do enfrentamento da narco-guerrilha, e, assim, em um ambiente em que são protagonistas nações e governos democráticos, reeditar o sentimento e a aspiração de latinoamericanidade, tão decan-tados em prosa, verso, canções e passeatas nos idos de 68?
Como vêem, as utopias de 68 já ressoam em 2008 como utopias possíveis.
Aos 19 de maio de 2008,
Quase aos 60 anos de idade,
João Batista dos Mares Guia (sociólogo)
2 comentários:
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