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Entrevistas/1968 - MARCELO MÁRIO DE MELO: Agitador em tempo integral
Marcelo Abreu
Entrevista/68 - MARCELO MÁRIO DE MELO: Agitador em tempo integralMarcelo Mário de Melo, em 1968, tinha 24 anos e era militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) no Recife. Foi preso político nos anos 70. É autor de “Manifesto da Esquerda Vicejante”. Hoje jornalista, escreve poemas, textos de humor e histórias infantis. É uma das cabeças mais lúcidas e criativas da esquerda pernambucana. No Recife, falou ao repórter Marcelo Abreu sobre sua atuação na política no final dos anos 60.O que você fazia durante o ano de 1968?Marcelo Mário de Melo - A partir de 1966, trabalhei num escritório de elaboração de projetos econômicos para a Sudene, de propriedade de pessoas de esquerda demitidas da Sudene pela ditadura. Nesse período fazia a revisão do jornal do Comitê Estadual, o “Combater”. Em julho de 1968 tive de abandonar o emprego, por questão de segurança. A essa altura já estava no Comitê Regional do PCBR, fundado oficialmente no mês de abril, e atuando 24 horas por dia. Era o secretário de imprensa do partido e cuidava de todas as suas publicações, como os jornais mimeografados “Luta de Classe” e “O Trabalhador, este distribuído em portas de fábrica e em bairros operários, com tiragem de 15 mil exemplares.Qual foi sua formação política anterior, que resultou na intensificação da militância no final dos anos 60?MMM- Já antes de 1964 fui articulador da luta interna no PCB, ao qual me filiei em 1961, na base do Colégio Estadual de Pernambuco, com 17 anos. Participei da Campanha da Legalidade, pela posse do vice-presidente João Goulart, quando da renúncia de Jânio Quadros. Aquilo foi uma amostra grátis de golpe de Estado. A partir dali intuí que era preciso que a esquerda estivesse preparada para enfrentar um golpe. O sexto congresso do PCB foi convocado em 1964 e essa questão foi largamente colocada nos debates que rolaram, interrompidos pelo golpe militar. A partir daí a discussão central foi se o golpe surgiu porque não nos preparamos para enfrentá-lo ou porque radicalizamos e facilitamos a articulação da direita. Em 1967, o VI Congresso foi novamente convocado. E uma ala do partido colocava a necessidade de se preparar, agora, para enfrentar a ditadura pelas armas – as ilusões legalistas, a necessidade de reorganizar os movimentos de massas a partir das bases. O partido se dividiu ao meio. Aqui em Pernambuco, a grande maioria ficou com o PCBR, do qual participei desde o primeiro momento, no Comitê Estadual de Pernambuco e, depois, no Comitê Regional Nordeste. O PCBR propunha a necessidade de organizar um partido de perfil marxista-leninista, com atuação nas frentes de massas, mas também com o desenvolvimento de ações armadas. Participei, como orador, do comício relâmpago armado feito em frente à fábrica da Macaxeira, em 1968, às 4h45 da manhã, no aniversário de morte de Che Guevara. Distribuímos panfletos, pichamos o muro e penduramos na fiação um mural com a imagem de Che. Todos estávamos ostensivamente armados de 38. Um grupo ficou em frente ao comissariado de polícia, com espingarda 12, para impedir a saída de policiais, que não ocorreu. Peguei três anos de cadeia por isso. Me envolvi numa ação armada em Natal, para a retirada de uns equipamentos de imprensa de um colégio americano, situado na periferia da cidade, perto de uma BR. Fomos surpreendidos pelos vigias e foi tiro pra todo lado, no escuro total, e ninguém acertou ninguém. Foi uma participação eventual, porque eu não fazia parte do núcleo militar, por opção pessoal. Faltava uma pessoa para a ação, eu estava por lá e me propus.Você já estava na clandestinidade? MMM - De 1964 até meados de 1968 combinei a atuação clandestina com a vida legal, trabalhando e morando com a minha família, que tinha uma pensão no Recife, na rua Visconde de Goiana, na Boa Vista. Em meados de 1968 deixei o emprego e virei revolucionário 24 horas, dedicado à imprensa do PCBR, a discussões, produção de textos e viagens. Aquele ano representou coisas diferentes em partes diferentes do mundo. O que foi 68 na sua vida pessoal?MMM - Foi um ano de dedicação militante, como se o processo histórico estivesse sobre as nossas costas. O importante era fazer a revolução. A participação nas passeatas estudantis que aconteceram no Recife, a influência das lutas na França, as guerrilhas na América Latina, a guerra no Vietnã, a polêmica teórica entre os partidos comunistas da URSS e da China, a Primavera de Praga e a invasão da Checoslováquia, que o PCBR condenou publicamente, foram questões marcantes. Culturalmente, havia a “Revista da Civilização Brasileira”, as colunas de Stanislaw Ponte Preta e de Millôr Fernandes, os festivais de música, o tropicalismo, os filmes de Glauber Rocha. O livro “A Revolução Brasileira”, de Caio Prado Júnior, trabalhos de Florestan Fernandes, Andrew Gunder Frank, Paulo Mercadante, Octavio Ianni, José Honório Rodrigues, eram devorados por nós para subsidiar as definições político-programáticas. Também passei a desenvolver mais intensamente minha atividade literária, escrevendo poemas. A leitura de Maiakovski foi marcante. Também tive uma paixão bem-sucedida, um namoro que durou até a minha prisão, em 1971. Você acha que já havia, naquele ano, a percepção de que muitas coisas estavam acontecendo – mais do que em anos anteriores?MMM - Acontecimentos importantes, no Brasil e no mundo, teciam a sensação de que se vivia num momento especial. Rolavam polêmicas dentro do marxismo, publicando-se livros e artigos a respeito. Ocorriam rachas nos antigos PCs. Havia a luta estudantil e anti-racista nos Estados Unidos, conjugada ao repúdio à Guerra do Vietnã. O Maio francês, além da estudantada, colocou em cena os trabalhadores, que em larga medida questionaram a direção do PCF. Embora com limitações, começava-se a questionar o modelo do socialismo real, e a invasão da Checolosváquia foi um divisor de águas, neste sentido. É claro que, entre nós, predominava uma visão meio otimista e ascensional de tudo aquilo. Internamente, o AI-5 veio a ser a patada de realismo azedo, mostrando a outra face da moeda. E aqui, mais uma vez na história do Brasil, o humor marcando a sua presença. Depois do AI-5, Millôr Fernandes escreveu na sua coluna na “Veja”: "Se é gostoso, faça logo. Amanhã pode ser ilegal". No Recife, que acontecimentos mais marraram no campo político e cultural? MMM - Em 1968, transbordou no Recife todo o trabalho de rearticulação do movimento estudantil, que vinha sendo feito desde 1964 e estava mais ou menos consolidado em 1967. As passeatas estudantis eram engrossadas pela população. Depois da morte de Edson Luís, houve um contágio nacional e um recuo da ditadura, que permitiu as passeatas. No Recife, saindo da Católica, numa tarde, foram mais de 20 mil pessoas. E houve uma coisa curiosa: uma passeata de camelôs saiu do mercado de São José e, no meio da ponte Duarte Coelho, se encontrou com a que vinha pela avenida Conde da Boa Vista. Augusto Lucena era o prefeito, perseguia os camelôs, e os tornamos nossos aliados, solidarizando-nos com eles nos comícios relâmpago. Senti que havia clima favorável e propus que, independentemente do comando da passeata, puxássemos os camelôs. Deu certo. O fato está registrado numa foto de um dos jornais locais. Lembranças eróticas daquele tempo são bandeiras americanas pegando fogo, cavalos e cavaleiros derrubados no chão por paisanas, bolinhas de gude, carros de polícia virados e coquetéis molotov distribuindo chamas. Que tipo de informação vocês recebiam por aqui, naquele ano?MMM - Colocam-se no ano de 1968 coisas que já vinham se insinuando alguns anos antes. O feminismo já se apresentava. Pessoalmente, foi em 1968 que li “A mística feminina”, de Betty Friedan. Mas a leitura de “O segundo sexo”, de Simone de Beauvoir, já rolava antes. Nos círculos de militância da minha proximidade se colocava a questão da fidelidade também para os homens, a divisão dos trabalhos domésticos nos aparelhos clandestinos e a participação das mulheres nos órgãos de direção. No terreno da sexualidade, as questões que sobressaíam eram a quebra do tabu da virgindade, a transa entre os namorados e o uso da pílula. A recorrência à prostituição ia perdendo terreno para a vida sexual amorosa. No PCBR houve uma preocupação em não separar casais. E foi aprovada no comitê regional, por proposta minha, o direito de se levar namorado ou namorada para transar nos aparelhos clandestinos, desde que cumprida a regra de segurança de se conduzir o parceiro de olhos fechados, para que não pudesse ser identificado o local. A questão do homossexualismo não se colocava. E, embora não fosse uma regra escrita, barrava-se a condição de militante aos homossexuais, retidos no círculo dos simpatizantes. Em 1968 me lembro de ter assistido a “Romeu e Julieta”, de Franco Zeffirelli, além dos diversos filmes dos sábados pela manhã, na sessão de arte que rolava no cinema São Luiz e era um momento de encontro da intelectualidade e da esquerda. O Teatro de Arena, o Teatro Popular do Nordeste, no Recife, e a Galeria do Mercado da Ribeira, em Olinda, também faziam parte do roteiro cultural da época.O Recife teria dado alguma contribuição específica aos debates travados em 68?MMM - Não é significativa a participação do Recife nos debates teóricos acerca da revolução brasileira, embora tenha sido importante a sua presença quanto a pronunciamentos políticos e ação militante de personalidades e movimentos organizados das mais diversas correntes políticas de oposição. Vendo do ponto de vista atual, você reavaliaria a importância de alguns desses valores hoje ou manteria apoio total às bandeiras da época?MMM - As bandeiras colocadas ou afloradas em 1968 permanecem, desdobradas ou figurando ao lado de outras que vierem depois. São bandeiras universais, que tremularam na Revolução Francesa e ainda não são triunfantes no mundo em termos globais, embora se verifiquem avanços específicos ou parciais. A humanidade ainda não se libertou dos flagelos da fome, da jornada de trabalho excessiva, das guerras imperialistas, do trabalho infantil, do trabalho semi-escravo. E a revolução tecnológica refletida no desenvolvimento capitalista, paralelamente ao desmoronamento do "socialismo real", colocou uma série de novos problemas, como a redução do uso da mão-de-obra, o desemprego crônico, a violência urbana, a ditadura da mídia, a elevação da longevidade, a superação das formas republicanas tradicionais e a necessidade de ultrapassá-las. No campo da militância há o grande desafio teórico e organizativo de entender o mundo de hoje e estabelecer programas estratégicos com linhas de conexão internacional e alimentando formas de mobilização e organização popular que ultrapassem o pântano do eleitoralismo e do imediatismo, dominantes na esquerda dos nossos dias. Hoje a pauta democrática é mais ampla e diversificada, permitindo um maior desdobramento de linhas de mobilização e ação militante. Neste sentido, as bandeiras de 1968 permanecem, e renascem em novas folhas.O que você acha de ter de falar sobre 68 para as novas gerações, com o eventual risco de saudosismo e idealização do passado que isso pode provocar?MMM - Sou contrário à arrogância de gerações e à mitificação da Geração 68, posta como modelo irretocável, muitas vezes em comparações depreciativas à juventude atual, apresentada como individualista e cabeça-oca. Vi leituras semelhantes feitas pela Geração 64 à Geração 68. É preciso entender que a Geração 68 atuou em condições mais favoráveis do que as gerações que vierem depois. Sobre elas pesaram o AI-5, o Decreto 477, a implementação do sistema de créditos nas universidades – gerando uma rotatividade que dificultava o processo de organização –, a sofisticação da repressão política quanto à rede de informantes e repressão direta, o maior controle da mídia, a crise de desemprego e o refluxo dos movimentos sociais e políticos, além da queda do socialismo real e de uma grande influência político-ideológica negativista. Muitos dos heróis de 1968 não foram capazes de interpretar a sua experiência e continuar a trilhar uma ação política atrativa para a juventude. É bom lembrar da participação dos jovens na luta pela anistia, nas jornadas da Constituição de 88, no Fora-Collor. Falta sintonia com os problemas e os sentimentos da juventude atual. O PT surgiu com uma enorme atratividade, mas o abandono das suas idéias fundadoras levou a uma quebra de encanto. O desafio, portanto, permanece, e não diz respeito à juventude, como um problema seu. Ele é uma das questões estratégicas centrais a ser equacionada em termos teóricos e organizativos por uma esquerda conseqüente.A entrevista com Marcelo Mário de Melo foi feita originalmente para a revista "Continente Multicultural" - www.continentemulticultural.com.br - e publicada, de forma resumida, na edição de maio de 2008, na matéria de capa sobre os 40 anos de 1968.
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