terça-feira, 17 de junho de 2008

Movimento Estudantil no Piauí nos Anos 70/80 (Por Fonseca Neto)


Movimento Estudantil no Piauí nos Anos 70/80[1]
Fonseca Neto*

*Dados do Autor: Professor da UFPI


O presente escrito pretende se inserir num esforço de resgate histórico de participação política do estudante piauiense na luta contra o regime-ditatorial que se implantou no Brasi1 em 1964, com particular enfoque nos anos 70, início dos 80.
A despeito do sempre lembrado papel da juventude nos destinos dos povos é do país, não são abundantes os textos que tratam da participação política dos estudantes brasileiros. Quanto ao papel político dos estudantes piauienses, então, o seu estudo está por ser feito, salvo algumas iniciativas que se esboçam um tempos recentes.
Este estudo vai apresentado em duas partes não necessariamente distintas: na primeira, apresentamos um conjunto de observações acerca do movimento estudantil, suas organizações, seu pensamento e utopias; num segundo momento, examinamos a atuação dos estudantes piauienses dos meados dos anos 70 aos meados dos 80, o contexto local, as lutas concretas e enfim o (re?) nascimento da ação política estudantil no Piauí. No conjunto, buscamos entender o significado das lutas estudantis no plano local, numa perspectiva de ascenso do movimento popular enquanto elemento de ação política.
Movimento Estudantil (ME) é uma expressão que traduz em tempos mais recentes a organização e ação dos estudantes enquanto parcela do povo coletivamente atuante. É um movimento social com caráter de massa, com forte presença na cena brasileira desde meados do século fluente.
Não é, porém deste século o início da participação política dos estudantes. Ainda quando o Brasil era Colônia de Portugal, já a ação dos estudantes se fazia presente. Daí em diante só aumentou sua importância, indo de uma fase, do ponto de vista de sua atuação, marcadamente individual
[2], até atingir o nível de organização e a força de sua presença, desde as lutas pela abolição da escravatura e pela adoção do regime republicano até os episódios que resultaram no afastamento de Collor do poder.
Elemento comum das ações estudantis em todas as épocas tem sido o sentido libertário último das suas postulações políticas e sociais. Em artigo publicado em 1979, o sociólogo Bresser Pereira
[3], analisando os componentes e condições da retomada do movimento estudantil naquele fim de década, afirmou que a "revolução dos estudantes é sem dúvida uma revolução utópica. Não apenas porque quer transformar o mundo de forma generosa, mas também porque corre muitos riscos de desvios e de contra-revolução". Para além da contextualização do autor acima citado, é notório, assim, que a luta estudantil como expressão da ação política individual ou coletiva tem guardado sintonia com anseios medianos da população, em especial com suas parcelas sofridas e miserabilizadas (escravos ontem, proletários de toda ordem hoje).
No presente século, notadamente a partir dos' anos 30, o ME dará passos decisivos na sua organização. A criação da União Nacional dos Estudantes (UNE) em agosto de 1937, como entidade de âmbito federal, demonstra claramente o caráter marcadamente político que sua atuação terá desde então, como atesta sua presença e influência em todos os episódios marcantes da vida nacional nas últimas cinco ou seis décadas.
Nesse percurso, a UNE chega a 1964 como entidade das mais atuantes no cenário das mobilizações populares de então, sendo sua sede escolhida pela reação (incendiaram-na selvagemente) para caracterizar sua:vitória golpista em 1º de abril de 1964. Literalmente ressurgiria das cinzas. Nos três anos seguintes, o ME estaria no centro de importantes mobilizações populares, sobretudo em 1968, véspera da diáspora dos combatentes pelo terror que enseja a outorga do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro. A organização do ME fora duramente golpeada já desde fevereiro de 1967, com a outorga do Decreto-Lei 228, que impôs um novo formato para a organização dos estudantes, inclusive eleições indiretas para os Diretórios Centrais de Estudantes (DCE'S).
Secundando e fortalecendo o caráter do 228, a ditadura outorga com base no AI-5 o Decreto-Lei 477/69, pelo qual se capitula como crime passível das mais espantosas penas, qualquer atitude assim entendida como de natureza política praticada por professores, alunos e funcionários de estabelecimentos de ensino. Dessa época em diante, existirá apenas um arremedo de organização estudantil nos marcos desses controles. Mas o ME, mesmo que com sua liderança recente banida e outra parte clandestina no próprio país, não deixará de ter influência nos acontecimentos do período.
No Piauí, a organização estudantil, a seu modo, se enquadra nos marcos mais gerais da evolução conhecida a nível nacional. Até os anos 30, tem uma atuação tópica, grandemente influenciada pelas levas de jovens que estudavam noutras províncias/estados. Os grêmios ou similares tinham um caráter não estritamente político. Na década de 30, porém, dois fatos são marcantes na organização estudantil local: a criação do Centro Estudantil Piauiense (CEP) em 1935
[4] e do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito, também em meados dessa década. Nos primórdios dos anos 50 (um estudante natural 90 Piauí fez parte da direção da UNE: Petrônio Portella Nunes, então aluno da Faculdade Nacional de Direito do Rio de Janeiro. Cláudio Bastos[5], em recentíssima publicação, afirma ter sido Petrônio Portella "Líder da Reforma", o grupo avançado da esquerda" daquela faculdade. Há, porém, indicações de que participou da diretoria na chamada "fase negra", quando estudantes claramente direitistas empalmaram a UNE com apoio explícito do governo norte-americano.
Anos depois, primeira metade dos 60, cria-se a União Estadual dos Estudantes (UEE-PI), representação das Escolas Superiores do Piauí, na verdade das Faculdades de Direito e Filosofia. Essa entidade, no entanto, parece não ter vingado, tendo sucumbido logo na primeira tempestade golpista em 1964.
Quanto ao CEP, seria em 1969 unificado à União Piauiense dos Estudantes Secundaristas (UPES), dando vida ao Centro Colegial dos Estudantes Piauienses (CCEP), cuja infância como entidade dos estudantes secundaristas é marcada pelo signo da intervenção (um dos seus primeiros presidentes será um professor-interventor em nome do governo).
Registre-se que a existência e atuação dessas organizações precisam ser melhor estudadas, inclusive como forma de aquilatar sua participação e dos seus líderes na difícil conjuntura dos anos 60.
O Piauí chega aos anos 70 com escassa tradição de organização e de lutas estudantis politizadas. A instalação da Universidade Federal do Piauí (UFPI) no início dessa década constituirá elemento impulsionador do ME local a médio prazo.
A UFPI foi instalada em 1971 sob a modalidade de Fundação, segundo modelo indicado em acordos do regime militar com os seus preceptores norte-americanos. Pouco tempo depois são criados, oficialmente, os Diretórios Setoriais (DS's), representação estudantil por Centro de Ensino, como parte da estrutura burocrática da Universidade, tudo conforme as leis da ditadura, cujo sentido era esvaziar as representações por curso.
Os primeiros DS's foram os do Centro de Ciências Humanas e Letras (CCHL), batizados "Cromwell Carvalho", e o do Centro de Ciências da Saúde (CCS),chamado “7 de Abril". Essas novas entidades, nascidas da vontade político-legal do regime e não da massa estudantil, passam a funcionar como espaço consentido de atuação discente, porém completamente monitoradas pela administração universitária e pelos órgãos do regime com atuação local. O processo eleitoral era conduzido pela burocracia universitária e seus conselhos, sendo o voto obrigatório sob pena de multa e não matricula para os não votantes, sendo por isso mesmo feriado universitário dia das eleições.
Eram assim os DS's uma representação meramente formal, de pouca importância política para os "representados", muito mais preocupados que estavam na promoção de eventos sociais e esportivos que em algum tipo de mobilização e engajamento político e de luta. Aliás, tudo se fez para que essas novas entidades perdessem as referências das suas antecessoras da FAFI e da Faculdade de Direito, desmanteladas como vimos pela força dos anos de chumbo. Não conseguiram de todo. Como veremos.
Em 1974 é eleita uma Diretoria para o Setorial do CCHL, que conseguirá de alguma forma ampliar o sentido reivindicatório da entidade levantando campanhas pela consolidação do Restaurante Universitário (RU), mais vagas nas disciplinas ofertadas e melhoria nas condições do transporte coletivo para o campus, então uma questão das mais graves. Apesar desse componente mais explosivo, que inclusive projetou politicamente como figura de oposição o dirigente máximo de então, estudante de Direita Atualpa da Costa Amorim, a linha mestra da ação foi mesmo a promoção social, esporte e lazer, tendo essa gestão realizado um portentoso e despolitizante evento sócio-cultural em praça pública, onde estudantes e autoridades expuseram as realizações da UFPI e do governo do Estado (inclusive novos equipamentos da Polícia Militar do Piauí e dos Bombeiros, além de outras realizações do governo estadual da época).
Por seu turno, a parte secundarista do ME local também tinha sua organização violentada e sua atuação limitada, vez que sua entidade máxima, o CCEP, encontrava-se sob intervenção, situação que perduraria até meados da década.
Essa intervenção no CCEP, aliás, a segunda, vez que a primeira fora levantada em 1970, decorreu do fato de ter a direção daquela entidade assumido uma ação de caráter mais contestatório, mesmo sem ultrapassar os limites impostos aos movimentos de toda ordem. Ressalte-se que o pouco de vigor que a entidade máxima secundarista ainda possuía vinha de alguns grêmios que constituíam sua base e que, a despeito da repressão, tinham até o início da década sobrevivido ao Decreto-Lei 228 no seu formato original, elegendo diretorias com alguma representatividade, como era o caso dos grêmios mais tradicionais "Nilo Peçanha", da Escola Técnica Federal, o "Dom Avelar", do Diocesano, o da Escola Normal e de outros criados no início dos anos 70, como o do Lourival Parente, o "Juventude Progressista", do São Francisco de Assis, do Álvaro Ferreira, do Colégio Agrícola, além de alguns importantes grêmios de Parnaíba e Floriano.
O certo é que o movimento secundarista sobreviveu à primeira intervenção que lhe foi imposta, mas logo seria vitimado pela segunda, que se encarregaria de aniquilar o resto de organização e sentido de luta ainda presentes. Por essa época, 72/73, o Grêmio do Liceu (um dos mais reprimidos pelo regime) foi parcialmente reativado, mas, totalmente submetido à Direção, só podia escolher dirigentes pela via indireta. Em pouco tempo, porém, todos os grêmios foram transformados em Centros Cívicos, mudando totalmente o caráter das tradicionais agremiações estudantis.
Algum tempo depois, voltam os estudantes à Direção do CCEP, porém representantes escolhidos em congressos com representações forjadas no interior e segundo a lógica dessas esquisitas e fascistóides criaturas chamadas Centro Cívico.
Década afora essa estrutura organizacional vai perdurar. Aliás, no segmento universitário os DS's, organizados nos moldes do Decreto-Lei 228, nada mais eram que Centros Cívicos de estudantes universitários. Assim, sob absoluto controle, aberto ou dissimulado, das autoridades do ensino em todos os níveis, existia um arremedo de organização estudantil do Piauí, como de resto em todo o Brasil.
Diga-se que nessa primeira metade dos anos 70, dois elementos tiveram muita influência no esvaziamento da atuação estudantil no âmbito local: a quase completa destruição da organização escolar do Estado, a pretexto de uma falaciosa "reforma do ensino", que levou de roldão os grêmios, tidos pelos "reformadores" como figuras anacrônicas e, de outra parte, condicionando a cena política mais geral, estava em curso o movimento conhecido como "Guerrilha do Araguaia", sobre o qual desabou a ira fascista do regime, num processo que espalhou verdadeiro terror, sobretudo entre a juventude dos Estados mais geograficamente próximos do Sul do Pará, recrudescendo assim a vigilância sobre as incipientes organizações estudantis locais.
No plano político mais geral, o ano de 1974 é o da ascensão ao poder do grupo do General Ernesto Geisel, que assumiu em março, com um discurso que falava em distensão lenta e gradual) do regime de exceção. A euforia do "milagre econômico" da era Médici esvaía-se com certa rapidez e eram cada vez mais claros os sinais de que a ditadura militar começara a definhar. Nesse contexto, mesmo que sua organização e direção autênticas se encontrassem na clandestinidade ou no exílio, os estudantes, notadamente os universitários do eixo Rio, São Paulo, Minas, Bahia, retomam e constroem várias formas de luta, todas adstritas às escolas, mas com forte repercussão na sociedade. O ME é o primeiro que vai conseguir tornar-se um corpo atuante nas jornadas de lutas que se sucederão desde então até o fim da ditadura. Assim como a morte do secundarista Edson Luís marca o início da radicalização que resulta na derrota e esmagamento de 68, o assassinato de Alexandre Vannuchi Leme, da USP, em 73, vai demarcar o reinício das mobilizações do ME até a reconstrução da UNE em 1979.
No Piauí, em meados dos 70, toda essa agitação que se agiganta é timidamente percebida. Como já referido, o CCEP terá restaurado uma relativa autonomia com a volta dos estudantes à presidência, mas será ainda por vários anos uma entidade cuja ligação com a base estudantil será quase que tão-somente pela expedição das identidades estudantis e pela Casa do Estudante que mantinha sob sua administração.
Na UFPI, a partir de 76, os DS's vão ganhando uma maior dinâmica, mas nada que se possa ainda chamar de atuação politizada. Ressalte-se, Por curioso, que justo neste ano, quando em todo o Brasil eram reconstruídos os DCE's, CA's e UEE's livres, tornando letra morta as disposições do 228, no Piauí se criava, por ato da Reitoria, em março desse ano, o DCE da UFPI, consoante as normas na prática do extinto Decreto-Lei 228. Foi, pois, com base no artigo 9 dessa lei que foi indiretamente formada a primeira Diretoria do DCE-UFPI, que teve ato de homologação e designação pelo reitor.
Em 1977, o Setorial do CCHL, na prática a principal referência da organização estudantil universitária local, tem eleita uma diretoria com claras intenções de integrar o ME local aos acontecimentos nacionais. Essa diretoria conseguirá muito pouco além das outras. Haverá a tentativa de lançar um jornal estudantil, o "Travessia", mas seus originais serão confiscados por agentes da Assessoria de Segurança e Informações (ASI), braço universitário do SNI.
A gestão "Travessia" do DS do CCHL produziu, paralelamente, a primeira organização não-oficial feita por estudantes da UFPI: o GEG – Grupo de Estudos Gerais. Criado como referência de união e ação daqueles que se colocavam numa perspectiva de luta mais engajada, esse núcleo passará a ser um importante instrumento de ação política dos estudantes, num importante contraponto às entidades oficiais, nas quais, entretanto, os membros do GEG continuariam a disputar direções e hegemonia.
Foi assim o GEG, matriz e espaço donde alavancou-se o grupo e movimento largamente identificado por "Travessia" (palavra tomada, definitivamente na poesia! canção de Milton Nascimento), este, sim, com atuação direta na disputa pela direção das entidades a partir de 1978. Neste ano, já como fruto de alguma pressão sobre a reitoria, ocorreu a primeira eleição direta para o DCE.
Aliás, o contexto em que se conquistam as diretas para o DCE tem tinturas trágicas. Em princípios do mês de abril, falece por acidente automobilístico um dos principais bata1hador pelas diretas, Emanuel Pedro Barros Liarth, então presidente do D5-CCHL e candidato declarado a presidente do DCE que não passava, contudo, de uma ficção. Por ironia, o então reitor anunciou que liberaria a eleição direta em homenagem ao morto.
Havia uma condicionante: o pleito seria realizado nos moldes preconizados pela legislação, isto é, sob controle da máquina administrativa tal qual as eleições para os DS's. Foi, de algum modo, uma importante vitória pela mobilização que ensejaria.
Nessas primeiras eleições diretas para o DCE, o movimento "Travessia" foi derrotado por um voto no campus de Teresina e por cem votos no de Parnaíba. A chapa eleita, chamada "Visão" (houve uma terceira chamada "Abertura"), era constituída no seu conjunto por dirigentes de DS's e tinha, segundo o que corria, vinculações com a ARENA jovem (grupo de jovens simpatizantes ou militantes desse partido) e bastante identidade com os organismos de direção da Universidade. .
De sua parte, como oposição, o GEG/Travessia se sente desafiado a aproximar o sentido de sua luta. Partira para uma mais agressiva luta em tomo da organização alternativa dos estudantes e, tendo ganho pelo menos a direção de um Setorial, do CCE, tentará a partir dela redirecionar a atuação das entidades estudantis no seu conjunto. Fruto dessa ação meio de fora para dentro das entidades é que se conseguirá mudar, por exemplo, o caráter da "Jornada Universitária" de 78, dando-lhe uma programação mais voltada para o debate das questões ligadas à universidade e, mais que isso, ensejando uma discussão de conjuntura nacional (inclusive do ME nacional) que trouxe à UFPI o presidente do DCE da PUC-SP e ninguém menos do que o ex-ministro da Educação, Darcy Ribeiro, recém-chegado do exílio (sua palestra ocorreria somente em março de 1979).
As iniciativas isoladas de a1guns DS's e, sobretudo a intensa atividade do GEG na realização de seminários, cursos, pesquisas e outros eventos, desencadearam desde então uma frenética movimentação intelectual na universidade, que marcaria profundamente os anos de 79 a 82, principalmente.
Também muito importante é o fato de que a mobilização dos universitários transpôs as cercas do campus e ganhou a cidade. O próprio GEG não limitou sua ação apenas ao contexto intra-campus. Foi além. Participou, por exemplo, com muito empenho, nas mobilizações do Movimento Contra a Carestia (MMC) e nas mobilizações do 12 de maio daqueles anos.
No plano da agitação cultural surge em Teresina por essa época o empreendimento "Punaré" (Livraria é outros quetais) que inclusive, co-patrocinava alguns eventos idealizados pelo GEGI/Travessia. A histórica palestra do professor Darcy Ribeiro, proferida de maneira triunfal no Teatro 4 de Setembro no dia seguinte à da UFPI, foi um evento da “Punaré"/Diretório Setorial do CCE.
Mas por que se revestiam de tanta importância esses debates de conjuntura? Sua grande importância sem dúvida residia na sensação de quebra do silenciamento a que toda a nação, notadamente os estudantes e outros segmentos intelectualizados, estavam submetidos. A presença de um exilado político do quilate de Darcy Ribeiro, ex-ministro de João Goulart e fundação da Universidade de Brasília, a quem os conservadores devotam (avam) um ódio incomum, era para os estudantes daquela geração algo deslumbrante, emocionante até, algo impensável pelos universitários de hoje, apenas quinze anos depois. Foi de fato a primeira personalidade que proclamou, à guisa de libelo, a condenação pública do regime militar no seio da UFPI, no seu Auditório Central. O SNI e a PF quase enlouqueceram, para não falar nas autoridades universitárias que até as luzes do campus mandaram apagar na hora da palestra. Não adiantou. A possibilidade de ouvir o exilado à luz de velas, já que ele assim se dispôs a fazê-lo, aumentou a emoção e tornou mais significativo aquele ato.
Na esteira desses eventos, especialmente a partir da visita à UFPI logo no início de 79 de um dirigente do ME baiano, o Piauí conseguiria (r?) estabelecer laços com o ME nacional o que, somado à vitória da “Travessia” para a direção do DCE e de quase todos os DS's em maio, constituiria grande avanço na luta por uma organização autônoma e atuação mais livre e engajada das entidades estudantis. Mas o processo eleitoral ainda houvera se dado na modalidade imposta pelo espírito do Decreto-Lei 228. E foi exatamente por esse caráter de pleito organizado pela burocracia universitária, que essas eleições foram gravadas por um episódio marcante: em reunião do Conselho de Ensino e Pesquisa (CEPEX) poucas horas antes do início da votação, em sessão monitorada pelo então presidente AREN no Piauí (Freitas Neto), foi impugnada a candidatura presidencial da “Travessia” para o DCE, com base no artigo 6 do 228, pelo qual era vedada a candidatura de aluno “repetente” ou dependente". Suprema ironia: na exata hora em que se tomava essa decisão, o Parlamento Federal aprovava projeto de lei revogando os famigerados 228/67 e 477/69, com grande repercussão nacional.
A violência dessa desatinada decisão política do CEPEX, então um órgão meramente formalizador de decisões superiores, foi prontamente respondida com uma mobilização nunca vista no campus e uma repercussão muito intensa na comunidade. Além de terem os universitários realizado a primeira passeata de protesto do pós-68, o candidato. a vice-presidente da “Travessia" seria eleito com quase 80% dos votos dados no pleito de 1979. Todos esses fatos, que revelam um claro crescimento da organização e da luta estudantis, levaram à conquista do DCE-livre da UFPI. A partir, deste, à criação das representações estudantis por curso (CA's), exaurindo deliberadamente os "legais” DS’s. No contexto da “abertura" política então em curso no país, o ano de 1979 marcou fundamentalmente a história do Brasil pelo que ocorreu de mobilização popular. Grandes greves em São Paulo, a agitação em torno da reconstrução da UNE, a luta pela anistia e o fim do AI-5, a reunião da SBPC, em Fortaleza, a rebelião pela meia passagem em São Luis do Maranhão, tudo se dando sob o pano de fundo da vitória da Revolução Sandinista na Nicarágua, confirmam o clima reinante naqueles dias. A sensação que se tinha era de estar tomando a história nas próprias mãos e construindo das cinzas da ditadura um novo país. Não era pouca coisa sentir-se personagem desse histórico ano, que mais parecia a continuação de 1968, o ano que para os verdadeiros combatentes, como sugere Zuenir Ventura, ainda não tinha terminado.
Como afirmado está. 1979 foi um ano de batalhas vitoriosas. No primeiro semestre, além da palestra de Darcy Ribeiro e da vitória da “Travessia", o Piauí participa com uma delegação (34 universitários e 2 secundaristas. observadores) do histórico congresso de Reconstrução da UNE em Salvador-BA. Este congresso, o maior e mais importante da quase sexagenária história da UNE, incorporado na linha dos grandes fatos políticos do recente processo de redemocratização do Brasil, foi decisivo para (re?) inserir o ME piauiense nas grandes linhas da atuação do ME nacional, o que efetivamente ocorrerá desde então.
O DCE da UFPI, talvez até para relevar sua importância relativamente pequena no contexto mais geral, será um dos primeiros a pedir filiação à UNE reconstruída. Com o vigor haurido do furacão Salvador em fins de maio, revigorado com o agradável porre de discussão política da SBPC em julho, onde a inteligência brasileira comemorou em grande estilo a vitória sandinista, os festejos juninos levados para dentro do campus, a luta da juventude parnaibana em defesa da praça da Graça, além dá histórica vitória local na luta contra o "passe estudantil" no início de agosto, já constituíam prenúncio suficiente de que o segundo semestre seria marcado por importantes avanços.
De fato, esse foi o semestre em que se conquistou o congelamento da taxa do RU após histórico plebiscito; aconteceu a greve de três dias puxada pela UNE em defesa da escola pública e aqui encaminhada com 100% de adesão efetiva; foram realizadas as primeiras eleições diretas para a diretoria da UNE, o que ensejou a visita ao Piauí do presidente Ruy César, recebido em Teresina e na UFPI quase como um ídolo/herói pelo que simbolizara sua presença no cenário político brasileiro; surge vigorosa e sem censura uma imprensa universitária ao lado da intensificação da leitura de jornais alternativos tipo “Movimento”, “Pasquim" e outros como a "Tribuna da Luta Operária", aqui distribuída a partir do mês de novembro; por fim, nesse mesmo novembro, exatamente dia 7, uma assembléia geral refundava o DCE, a partir daí uma entidade livre, calcada em estatuto político amplamente discutido pelo conjunto dos estudantes. Estava assim encerrada a tutela dos organismos da universidade e da própria repressão sobre o ME e sua organização e consolidada uma perspectiva de atuação sustentada na verdadeira, porque livre, vontade da massa estudantil.
Como parte dessas mobilizações de 1979 no plano local, merece, especial registro aquela que pôs milhares de estudantes nas ruas, liderados pelo CCEP, mas com forte presença de universitários e que teve como alvo impedir que a Câmara Municipal instituísse o chamado "passe estudantil", instrumento do direito à meia passagem nos ônibus coletivos urbanos. Essas manifestações contra o "passe" reintroduziram os estudantes em luta nas ruas de Teresina, pondo em polvorosa e perplexidade o centro da cidade, notadamente pelo aparato policial mobilizado na ocasião, numa evocação dos idos de 68. Era impressionante o dispositivo da repressão posta um uso. Registre-se que a imprensa argutamente notou e anotou que o policiamento militar estava inaugurando novos equipamentos antichoque com escudos de acrílico, sofisticados cassetetes com descarga elétrica, máscaras anti-gás lacrimogêneo, etc, todos há algum tempo adquiridos e não inaugurados por falta de ocasião adequada. A luta foi vitoriosa e os estudantes mantiveram íntegro o direito à meia passagem, velha conquista do início da década de 60.
A partir de 1980 o ME local e nacional e o próprio país seriam outros. É o que veremos no próximo número.

PARTE 2

Em texto anterior publicado no “Cadernos de Teresina” nº 18, traçamos uma panorâmica da atividade política do etudantado piauiense nos anos 70. Este texto integra o mesmo estudo e pretende complementá-lo numa perspectiva mais conclusiva.
No presente segmento nos propomos examinar, ainda panoramicamente, o Movimento Estudantil (ME) até meados da década de 80. Fechando o presente escrito, na verdade quase uma memória, até pela condição de personagens do "escriba", tentaremos apresentar alguns elementos que vislumbramos importantes acerca do significado da presença estudantil, notadamente a universitária, enquanto componente da mobilização popular que desde então o Piauí experimenta com maior Intensidade.
A virada dos anos 70/80 acontece carregada de simbolismo para o povo daqui e d'alhures. No Brasil como em toda a América Latina, as ditaduras sentem o soprar de uma "brisa ligeira" de redemocratização, com sinais de que logo iria "virar viração".
Na Nicarágua, há pouco passara mesmo um furacão. E as ditaduras do Uruguai, Argentina, Guatemala, El Salvador e até a do Equador balançavam, soluçavam, ante a iminência' daqueles ventos oitentistas.
A Bolívia, do narcotraficante Meza, o Chile, do sanguinário Pinochet, e o Haiti, do tribo-tirano "Baby Doe", pareciam contudo negar esses tempos de ventos novos: suas ditaduras aparentavam um processo de cristalização assustador. E mais ainda com a eleição de notórios direitistas nos Estados Unidos (Reagan) e na Grã-Bretanha (Thatcher).
Cá pensávamos: “...são as contradições do processo histórico..." (afinal, acabáramos de incorporar essa expressão para bem percorrer nosso itinerário de vanguarda). E por isso mesmo dizíamos: "... logo os derrotaremos...!"
Assim pensando, assim discursando, entraríamos naquela que, após vivida, alguns cínicos chamariam de a "década perdida". No Brasil; macunaimicamente, a ditadura que era "sem nunca ter sido" se "abria" para uma redemocratização que apesar de rápida para alguns não ultrapassava a garbosa marcha dos jabutis.
Importava, contudo, o fato de avançarmos rápido. O combustível das nossas utopias era farto. Agora, com vitórias concretas diante de e feitas por nós, bastava tudo consolidar, "avançar sempre". Se 78/79, sobretudo este, foi de grandes ventos e eventos para nossa alma militante, 80 o seria também. Havia, por assim dizer, uma certa diferença, que só mais tarde compreenderíamos melhor: os ventos da virada da década tinham levado sorrateiramente algumas bandeiras arduamente hasteadas no edifício da consciência nacional: - "Baixo a ditadura", "fim do AI-5", "Abaixo o 228 e 477", "Por anistia ampla, geral e irrestrita", "Por um DCE livre", "Pela volta da UNE", etc.
Não havia caído a ditadura é verdade (ela apenas manhosamente se "abria"), mas o AI-5 e os Decretos 228 e 477 já tinham "entrado pra história"; já anistiados, até os que foram banidos já estavam de volta, além dos demônios Brizola e Prestes; o DCE oficial, que até presidente nomeado pelo reitor tivera, já havia se tornado uma página virada: tínhamos o DCE livre, filiado a uma UNE também livre. E não somente livre a UNE estava. Era de quebra dirigida pelo "único presidente na República diretamente eleito em todo o território nacional".
80, 81 e 82 tinham mesmo assim suas grandiosas tarefas. Consolidar o DCE não seria tarefa tão simples, E os Centros Acadêmicos (CA's) por curso? Tínhamos que (re?) inventá-los. Afinal, as vitórias do povo naquela conjuntura (e quem disse que estudante não é povo?) não foram garantia de se ter assegurada uma universidade, um ensino melhor. Até pensávamos que assim seria. Mas não era.
Atestando a constância e de algum modo a irreversibilidade das novas posturas vitoriosas, em maio de 1980 "TRAVESSIA" dá ao DCE sua primeira direção eleita à revelia das autoridades universitárias. Isto é, sem as peias do 228, em pleito livremente organizado segundo a dinâmica do ME e na forma dos estatutos de 7 de novembro de 1979.
Mais que isso: uma direção amplamente reconhecida pela massa discente e sem exagero, pelos mais variados segmentos da sociedade local. Compondo O quadro dessa grande vitória da posição "TRAVESSIA", registre-se que nessa mesma ocasião realizava-se a primeira eleição para um CA, o de Economia. Claro que todos os seus diretores eram "travesseiros" históricos. Aliás, ali estava um dos nossos gurus, Inventor-mor do Grupo de Estudos Gerais - GEG, Enéas do Rêgo Barros.
A mobilização eleitoral de 1980 na UFPI (que carinhosamente chamávamos de "efeito Miterrand", tal o nível das nossas aspirações) teve dentre outras duas características que merecem especial registro: a primeira delas é o fato de ter sido a primeira eleição onde não estavam disputando entre si forças completamente antagônicas. A chapa derrotada, de nome "RESISTÊNCIA", congregava alunos com algum grau de engajamento e, mais que isto, comprometidos na sua grande maioria com a construção de entidades estudantis livres e combativas. Em segundo lugar, observa-se pela primeira vez assumir a direção do ME um grupo totalmente engajado politicamente, inclusive tomando esta característica como definidora da participação na chapa, posto que deliberadamente não se levou em conta o "peso eleitoral" de cada um per se (e por Centro) nos habituais conchavos eleitorais até há pouco tão comuns.
Essa postura da "vanguarda" revela outros elementos importantes daquele contexto do ME: a) que a direção se enxergava mesmo como vanguarda na luta Intra e extra campus b) era presente a compreensão de que "TRAVESSIA" transmutava-se da sua condição de grupo para corrente, posição política ou algo próximo disso, daí resistir à participação em cargos de direção, salvo uma única exceção, de pessoas que apenas detivessem densidade eleitoral mas às vezes sem um conhecimento mais profundo e um compromisso mais explícito com, a luta; c) a encabeçar a chapa, "TRAVESSIA" tinha uma das suas lideranças históricas, justa.mente o candidato presidencial vitimado pelas impugnações espúrias e 'ditatoriais que abalaram o mundo universitário no ano anterior. E não havia dúvidas de que essa candidatura fosse capaz de assegurar a permanência da "TRAVESSIA" à frente do ME, agora protagonizando uma fase de crescente radicalização do processo de agitação estudantil, garantindo-se a necessária interação com outros movimentos que potenciavam naquela conjuntura a mobilização popular no âmbito local e nacional.
No plano das ações, e lutas concretas, essa nova diretoria elegerá como central a organização do ME por cursos; para isso intensifica o debate nesse nível com vistas à criação dos CA’s, a exemplo do pioneiro ligado aos estudantes de Economia. A luta por ampliação da ofertas de disciplinas e vagas, notadamente na Medicina, Odontologia, Direito, Agronomia e Veterinária, ao lado das reivindicações por democracia no processo de matrícula, foi uma luta significativa e vitoriosa. Disto é exemplar: aja atitude dos alunos de Veterinária que levaram a cabo a primeira paralisação por reivindicação local havida no interior da UFPI, aliás plenamente vitoriosa, posto que se arrancou a realização imediata de concurso para professores no Centro de Ciências Agrárias, e b) a luta de parcela dos alunos de Medicina, em estado de quase amotinamento, .que dobrou o "duro" Zé Wilson, então diretor do Centro de Ciências da Natureza, dele arrancando a construção e adequação de uma nova sala de aula para a disciplina Anatomia. Com efeito, essas conquistas hauridas num contexto de confrontação com a Administração Superior e Setorial iam mostrando à massa estudantil qual a diferença entre um DCE livre e a experiência' consentida anterior.
As calouradas, por seu turno, ganham densidade política, como também se politiza de vez a questão do Restaurante Universitário- RU.Até a poeira que naquele junho infestou matreiramente o Campus da lninga foi motivo para uma das mais exemplares e pedagógicas mobilizações que então se fez. Realizou-se, já consagrado, o II Festival Estudantil de Música Popular - II FEMP (das mais positivas ações da "TRAVESSIA" Cultural que o concebeu já em 1979).
No Campus de Parnaíba, após os desencontros da eleição diretorial de 1978, "TRAVESSIA" teria ali já desde o ano seguinte de 79 uma forte ascendência, atuando numa relação privilegiada com o movimento "Inovação", muito conhecido, sobretudo pela publicação de um periódico com o mesmo nome, tudo logicamente que sob a liderança local do Diretório Acadêmico 3 de Março, então dirigido pelo estudante-poeta Elmar Carvalho, unido este por laços de "cúpula" com o "Inovação". Com o Diretório 3 de Março, o DCE realizou seminários de formação político-cultural, dos quais nos vem à mente pelo menos dois: um em que participou o presidente da UNE, Aldo Rebelo, e outro, sobre teatro, política e cultura, que teve a participação destacada do teatrólogo Tim Urbinatti.
Um dos projetos mais perseguidos pela direção "TRAVESSIA" era a garantia da participação dos universitários piauienses nos eventos nacionais chancelados pela UNE: CONEB's, CONEG's, Seminários, Encontros Nacionais de Estudantes por Curso e/ou Área; de nada deixaram de participar. Do próprio Congresso de Piracicaba, em 1980, o Piauí teve participação muito importante, posto que dali foram poucos os que saíram sem o convencimento de que se tornara um militante comunista. Era o máximo. Mas desse tão contagiante contato de primeiríssimo grau com a cúpula da esquerda radical brasileira, já não tão clandestina (pelos bastidores atuavam mitológicas figuras como Rogério Lustosa e notórios articuladores do nascente PT) resultaria um "racha" (que bela palavra!) na posição "TRAVESSIA".
Já na eleição direta seguinte para a UNE, a direção local divide seu apoio e votos para as duas principais chapas que se apresentam, "VOZ ATIVA" e "VIRAÇÃO", elas próprias consolidando significativa cisão política na direção de unidade que dirigira o processo de reconstrução daquela Entidade Mater.
A verdade é que do conjunto da atuação dessa gestão "TRAVESSIA" (80/81) resulta um tipo de ME no Piauí de qualidade mais consistente no sentido do lutar, confrontar, discutir politicamente, não aceitar a acomodação alienada como natural e normal. Aliás, esse "discutir politicamente" era um imperativo para que a liderança se sentisse devidamente situada no campo da esquerda. O contato intenso com o ME nacional, a compreensão política de tantos e debatidos rachas, dos quais Piracicaba foi na verdade apenas um episódio, compeliu a liderança a tomar partido, do que resultou e revelou sinais de esgotamento do movimento "TRAVESSIA" enquanto "frentão progressista" (ligeiramente ingênuo) que localmente dera ao ME organização e sentido novos, porque segundo uma ordem de comprometimento político-ideológico de conteúdo nitidamente progressista.
É forçoso anotar, contudo, que essas novas leituras compromissos e práticas do ME produziram efeitos em sentido contrário. Ainda em 1980, começo de 81, na forma de atos terroristas, a reação se manifesta e se arma com mais nitidez para impedir ou desacelerar um processo de "abertura" já sobejamente lento e gradual. A retórica desses setores areno-milico-pedessistas, claramente refratários às mudanças em curso, passava pelas bombas terroristas que explodiam bancas de jornais e outras instituições país afora. Esse movimento da direita calava em nós num misto de apreensão e excitação, chamando-nos atenção para o fato de que "a abertura 'é' mais embaixo", como satirizou uma charge do Henfil num Pasquim daqueles dias.
Grande foi, assim, o alivio quando o Brasil tomou conhecimento de que uma ou mais dessas bombas terroristas, talvez pela mão da suprema providência, mas num claro "acidente de trabalho", explodiria justo no colo de um funcionário público militar, quando este, com outros, se preparava para jogá-la durante um show comemorativo do 1º de Maio, no Riocentro-RJ.
Mas como essa ordem de acontecimentos emergiria aqui na província? Não tivemos dúvidas de que localmente havia setores reacionários em franca mobilização, quando deflagrado o processo eleitoral seguinte (abril/81) para o DCE. Por isso, o grupão "TRAVESSIA", já ai retemperado com quadros valorosos que não paravam de emergir, resolve apresentar-se com a chapa "NOSSA VOZ", como expressão de um só pensamento, apesar das divergências de concepções que já ali, pela primeira vez, passaram a ser caracterizadas como "briga" entre "petistas" e "tribuneiros" (PC do B). Mas essas não eram, lógico, as divergências que preocupavam mais naquele contexto. Preocupante sim era a chapa contrária, "TRANSFORMAÇÃO" (havia uma terceira, confusa e de pouca expressão), encabeçada por um figurante deslumbrado com o viés arenista local e que soube articular-se até nacionalmente, em algum nível, com aqueles setores contrários à democracia.
Foi a quarta vitória da "TRAVESSIA" em cinco eleições. Foi também a última eleição em que "petistas" e '''tribuneiros'' estiveram unidos compondo chapa para o DCE. A gestão dela resultante produziu nos meses seguintes importantes ações mobilizadoras, que de algum modo desaguaram na paralisação geral local de 1981, fato mais sobressalente dessa gestão. Esta ação paredista confrontou, como nunca dantes visto, inclusive com a ocupação policial-militar do Campus, Reitoria e estudantes. Estes, dotados de uma direção política combativa, de certa forma ancorados numa "greve de fome" deflagrada por parte da direção do movimento, radicalizam nas reivindicações com justo motivo. De seu lado, a Reitoria, com um reitor fragilizado face as suas postulações eleitorais no interior do arenismo e ao nervosismo do momento político, vê-se na contingência de endurecer frente a um processo mobilizador claramente oposicionista.
Dessa etapa de lutas, com efeito, saiu vitoriosa a Universidade: o então reitor, derrotado no seu sonho de ser governador do Estado, dá lugar a administrações que serão forçadas a mitigar a política do clientelismo até então reinante na UFPI, inclusive com frenética proliferação de funcionários "fantasmas", devidamente execrados no calor desses últimos embates. Pelo menos para professores, dentro de pouco tempo, se adota o concurso público como única forma de ingresso. No que tange ao ME, a vitória política é indubitável, o mesmo - não se podendo dizer da situação particular da posição política hegemônica na direção, tendo em vista sua derrota eleitoral, com folga, já na eleição que imediatamente se seguiu.
Essa derrota da "Tribuna" nas eleições de 1983, para uma chapa, "ESPINHO", composta de "petistas" e outros setores não-direitistas que discordavam da orientação e prática políticas dos "tribuneiros"; a, por assim dizer, intuição desses outros setores acima mencionados de que se politizara demasiadamente o ME a ponto de se olvidar as demandas mais simples do dia-a-dia do Campus; tudo isso, num contexto de acelerado esvaimento do poder de representação e Interlocução da UNE e as perplexidades daí decorrentes, sinaliza claramente que a base estudantil aspirava constituir outros pressupostos e um perfil diferente para sua atuação organizada.
Registre-se que no interior da própria Universidade outros movimentos ganhavam corpo e voz, como a ADUFPI, e mais secundariamente a ASUFPI, a ponto de canalizarem para a ação política a seu modo parte significativa do potencial e bandeiras mobilizadores de energia na luta social. Já em 80/81 professores se mobilizam num crescendo na defesa da Universidade e educação públicas, por concurso e valorização profissional, etc.
Tendo presente a Imagem, construída com elementos da licença poética, de que "a História é um profeta de olhar voltado para trás”, somos estimulados a afirmar que o ME no Piauí, no contexto que nos permitimos examinar, constitui experiência profundamente enriquecedora, que se inscreve como exemplo do quanto é preciso e possível fazer para "apressar" o processo histórico pela via da rebeldia e do não-conformismo.
O olhar do hoje, hoje que nada é senão o tempo futuro objeto das aspirações contemporâneas da experiência aqui lembrada, há de ter a capacidade de perceber essa mesma experiência na sua inteireza e complexidade.
"Tribuneiros" e "petistas": essas duas palavras, expressões docemente mágicas, mas ao mesmo tempo satanizadas por muitos, que tinham uso corrente no mundo universitário até meados dos 80, foram perdendo sentido com o passar do tempo. Tempo que viria incorporar outras ' possibilidades e experiências. Por volta de 1984 decerto o DCE já vivera sua ascensão, apogeu (e "queda"!?) e está lutando, com uma mulher a presidir-lhe pela primeira vez, Marlúcia Valéria, para construir uma nova legitimidade.
Afirmamos na primeira parte destas reflexões que o Brasil dos anos 70 era, sob vários aspectos, outro se comparado ao ano de 1980. Que dizer então do 1985?? Um civil na Presidência (ah, que avanço!), mesmo que indireto e presidente do "partidão militar" (ah, que história "repetitiva"!) e apoiado por companheiros "tribuneiros" aliados de antes e combatentes de sempre (ah, que ironia!!). Mas nada é fatalidade, aprendemos também.
Estamos agora em 1995. São decorridos dezoito anos desde a primeira "TRAVESSIA", aquela para o Diretório Setorial do CCHL. Nos últimos anos, por atalhos ou não, o DCE-UFPI, de algum modo, parafraseando os poetas da "TRAVESSIA", Thiago e Milton, tem demonstrado onde quer chegar, tem escolhido muitas estradas por onde melhor soltar a voz e tem caminhado do jeito que a condição da estrada vai permitindo.
PT e PC do B e também PDT/PCB/PSB e até o PSTU são organismos da luta popular dos quais tomam ou tornaram parte Valéria, Marquinhos Lopes, Kleber Montezuma, Fonseca Neto, Airton Alves, Osmar Júnior, Sá Batista, Gilberto Ferreira, Paulo de Tarso Morais, Gaudêncio Leal, Helbert Maciel, Eugênia Medeiros, Luís Washington, Guiomar Passos, Merlong, Itajaí, Sirley, Marcília, Socorro Lira, Wellington Soares, João de Deus Sousa, Marcelino, Ana Emília, Luiz Paulista, Modesto Paulino, Flora Isabel, Santana, Achylles, Marcos Victor, Lujan, Renaud, Tetê, Lawrence Raulino, Fernanda, Urias e tantos, tantos outros, quem sabe até melhores que estes, que somente eu para incorrer no grave risco de ser injusto por não poder a todos nominar neste espaço.
Esses partidos e seus programas, esses e essas militantes e suas utopias, não creio haver dúvidas, constituem um ativo de luta que são na verdade a contribuição possível do Movimento Estudantil ao Piauí.

[1] Texto publicado inicialmente em duas nos Cadernos de Teresina. A primeira parte em dezembro de 1994, enquanto a segunda, em abril de 1995. Versão recuperada por Otávio Luiz Machado e autorizada pelo autor.
[2] Mendes Júnior, Antonio. História do Movimento Estudantil no Brasil. São Paulo: Brasiliense.
[3] Pereira, Luiz Carlos Bresser. História Imediata, nº 19, 1979.
[4] Bastos, Cláudio de Albuquerque. Dicionário Histórico e Geográfico do Estado do Piauí. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1994.
[5] Op. Cit.

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