LIMA, L. C. O contexto da Universidade do Recife do início dos anos 1960 até o golpe de 1964. In: MACHADO, O. L.; ZAIDAN, M. (orgs). Movimento Estudantil Brasileiro e a Educação Superior. Recife: Editora UFPE, 2007, p. 41-46.
"O interesse do projeto está em saber como vejo os acontecimentos de 41 anos atrás: o Recife quando do golpe militar. Eu trabalhava no Serviço de Extensão Cultural (SEC) da então Universidade do Recife (atual UFPE), fundado sob a gestão do Reitor João Alfredo Gonçalves da Costa Lima – apesar no nome, não era meu parente - e dirigido por meu grande amigo, Paulo Freire. Sua parte principal dizia respeito ao sistema de alfabetização concebido por Paulo. Alem dele, o SEC era constituído pela Rádio Universitária, dirigida por José Laurêncio de Melo, e a revista Estudos Universitários, de que eu era o secretário. Pela difusão que o sistema de alfabetização de Paulo Freire alcançara por todo o país, Paulo se tornara das pessoas mais visadas pela direita pernambucana.(Diga-se de passagem que muito menos os comunistas o viam com simpatia). Ele e o então Reitor João Alfredo. Dado o golpe de 1964, todos nós que participávamos do projeto podíamos prever que não teríamos vida fácil. Embora nunca tenha consultado o inquérito da Universidade do Recife, posso lhe dizer que, se aí se acusava o SEC de visar exclusivamente os setores mais populares, cometiam um grande erro. A atividade principal do SEC era por certo a orientação dos que seriam monitores do sistema de Paulo Freire, e o trabalho destes por certo se dirigia aos setores ainda sequer alfabetizados. Mas a Rádio e a revista visavam a outros setores da população, aos quais se procurava apresentar uma visão diversa da produção intelectual e artística. Seria política a intenção de Paulo e o propósito destes dois outros setores? Por certo que sim. Mas não de política partidária.
Como o mundo estava dividido em dois pólos, o capitalista e o comunista, se éramos contra o sistema dominante, só poderíamos ser comunistas. E isso mais ainda em uma sociedade como a nordestina, onde o poder dos usineiros e donos de terra convivia com a miséria de milhões. Mas a prova imediata de que, por influência de Paulo, não pensávamos nessa bipolaridade é que o próprio Partido Comunista não tinha grandes simpatias pelo que ali se procurava fazer. O medo dos conservadores de perderem seus privilégios não lhes permitia ver o ensaio que se estabelecia a partir do sistema de alfabetização. Não era contraditório que a Rádio e a revista tivessem uma meta imediata distinta: nos três casos, tentava-se romper com as cadeias de uma sociedade em que só há poucos é reservado o direito de viver com dignidade. Embora fôssemos jovens, não pensávamos que o que fazíamos fosse mais do que um ensaio. Como dizia Montaigne, o maior medo da morte advém do aparato fúnebre que a cerca. Ou seja, da imaginação que se aterroriza ante o aparato que a cerca. A imaginação de nossos conservadores, o terror de perderem seus privilégios não os deixava perceber que a procura de alfabetizar as massas ou de oferecer aos já alfabetizados obras e indagações não costumeiras não significava que quiséssemos criar eleitores para o P.C.![1] Mas seu terror foi mais forte que sua possível inteligência.
Assim, com o golpe, podíamos saber o que nos esperava. Qual a participação efetiva de nossos furiosos inimigos quando perceberam que o seu golpe vencera? Recordo um episódio em si pouco significativo. Eu estava como professor visitante da Johns Hopkins University quando recebi um telefonema de um jornalista, Mário César Carvalho, interessado em um depoimento meu sobre 1964, no Recife. Lembrei-me então, mais com humor do que com amargura, que, estando eu preso, durante os interrogatórios, me preocupava em acompanhar a transcrição de minhas respostas. Depois de fazer mais uma correção, o major que me interrogava irritou-se e me passou um pito. Suas palavras seriam mais ou menos estas: "Não tem nada de ficar corrigindo o que está sendo escrito porque o seu caso já está resolvido: você foi denunciado como marxista por Gilberto Freyre e será aposentado". Na matéria publicada (Folha de São Paulo, 20 de março, 2000), o jornalista ouviu do major citado a contestação que tudo isso era invenção. Não posso comprovar que o que lembro de fato se deu. Não sei, portanto, se o ilustre sociólogo me denunciou. Apenas sei que a afirmação é verossímil e que os interrogatórios que os membros do SEC sofreram foram as peças legalmente decisivas para as cassações que logo se concretizaram. Tão logo o golpe se efetivou, o SEC foi fechado. Não mais voltei lá. Algum tempo depois estava preso e, ao sair da prisão, estando certo de que não poderia continuar como professor no Recife, aproveitei um convite e vim para o Rio. Como era praticamente certo o desfecho de tudo aquilo, aqui fiquei e foi aqui que ouvi a notícia de minha aposentadoria. Na verdade, tive então de começar uma nova vida, em uma cidade que era para mim desconhecida. Registro aqui meu agradecimento aos frades franciscanos da Editora Vozes, pois foram eles que me propiciaram o meio de sobrevivência. Durante mais de um ano, fui revisor da Vozes. Nesse entretempo, tive ocasião de testemunhar a mudança de rumo da Editora. Ela havia até então publicado obras devocionárias. Tornou-se então um dos órgãos principais da parte da Igreja que discordava da ditadura. Lembro especialmente seu diretor, o frei Ludovico, que soube desculpar as ingenuidades e as falhas de seu imprevisto subordinado".
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