Fonte: Retirado do Site da Fundação Perseu Abramo, em janeiro de 2004
Wolfgang Leo Maar
Estudou engenharia, física e filosofia na USP, residiu no CRUSP de 1965 a 1968. Professor da Universidade de São Carlos, fundador e vice-presidente da Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior, participou da mobilização popular representando sua categoria no período que vai do Movimento pela Anistia até a campanha das Diretas Já.
Quando o AI-5 foi decretado encontrava-me no Rio de Janeiro, onde estava para organizar uma excursão do Teatro Universitário do Conjunto Residencial da USP e para fazer contatos com vistas a uma iniciativa do Grêmio da Faculdade de Filosofia da USP, que pretendia lançar uma coleção de livros didáticos-políticos de grande circulação, nos moldes da coleção "O que é" que fora lançada pela editora Civilização Brasileira. Os estudantes na época planejavam uma grande campanha nacional de alfabetização, percorrendo o país educando a população, bem antes dos governistas Projeto Rondon ou Comunidade Solidária!
No dia seguinte, voltei ao Conjunto Residencial da USP, na Cidade Universitária em São Paulo, onde havia grande mobilização de estudantes. Na época havia organizações de direita, como o famigerado CCC que promovia violência e agressões por ocasião de qualquer iniciativa de mobilização popular, estudantil ou cultural. Agora, diziam que iriam invadir o CRUSP. Além disso, as forças armadas procuravam também infiltrar agentes difarçados entre os estudantes, como haviam feito na Maria Antônia. Os cruspianos tinham, portanto, razões para se preocupar, que se concretizaram quando um dos prédios residenciais foi alvo de tiros que perfuraram suas paredes de alumínio e fórmica. Os estudantes se organizaram em turnos de vigilância para evitar surpresas, bem como para mostrar que estavam atentos quanto a possíveis atos de violência como os do CCC na invasão da apresentação da peça Roda Viva de Chico Buarque.
O CRUSP despertava a ira do regime não só por sua posição central na organização estudantil (foi ali a grande assembléia em que se discutiu as prisões de Ibiúna) mas porque significava um espaço crítico em relação à manipulação ideológica moralizante promovida pelo governo de então. A despolitização do movimento estudantil que se promovia oficialmente tinha ali seu grande contraponto: cultura e ciência eram vistas no CRUSP como necessariamente engajadas. A política era considerada intrínseca à vida estudantil.
O AI-5 foi uma reação da repressão aos eventos de 1968. Também aqui os estudantes desempenhavam a crítica totalizante, sistêmica, à sociedade capitalista que marcara em todo o mundo o ano de 1968. Isso sinalizaria à ditadura brasileira o grau de dificuldades a ser enfrentada por ela para seu intento de estabelecer uma hegemonia de seu modelo de sociedade. Acredito que a ditadura explicitada no AI-5 foi a única resposta que o governo encontrou para enfrentar suas dificuldades no plano de aceitação popular do seu modelo de sociedade, aparentemente modernizante, mas que na prática significava supressão de direitos civis, sindicalismo atrelado, partidos políticos descaracterizados, corte nas políticas sociais, supressão do caráter público do ensino e da saúde, exclusividade do consumismo e do american way of life. Isto era sentido muito mais pelo setor civil do governo, que sabidamente foi o mais interessado na ditadura explícita.
É importante destacar que o CRUSP constituía na época um espaço de autogestão que contava com o apoio da universidade. Havia uma intensa atividade de discussão política mas também cultural. Além da evidente presença do movimento estudantil organizado, o CRUSP constituía uma experiência social interessantíssima, centrada sobretudo na crítica ampla, abrangente, ao modo de vida institucional, seja no âmbito dos costumes seja nas concepções culturais e científicas, bem como numa visão comunitária da auto-organização estudantil.
Paulo Duarte, Chico Buarque, Glauber Rocha, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Décio de Almeida Prado, Jean Claude Bernadet, Caio Prado, Flávio de Carvalho, Rui Guerra e inúmeros outros estiveram ali para discutir conosco. Havia sessões de cinemateca, com os clássicos do cinema político que estavam sob censura; nós nos dividíamos entre os defensores de "A Banda" e os que gostavam de Geraldo Vandré. No plano da universidade, havia dois grupos: a universidade crítica e a universidade popular, disputando suas concepções; nos organizávamos em grupos de atividades administrativas, culturais; estudávamos textos clássicos da política nos moldes dos cursos livres da Faculdade de Filosofia na época da Comissão Paritária, mas havia inúmeros outros assuntos estudados e discutidos em grupo. A autogestão significou também uma nova mentalidade, acabando com a proibição de visitas de estudantes do sexo oposto nas moradias. Nós tanto nos reuníamos para ir a passeatas, como para assistir a um filme de Buñuel e ver um show na TV Record. A nossa socialização não era só em função do desempenho, da eficiência no mercado.
No dia 16 de dezembro à noite já havia fortes indícios de que o CRUSP seria invadido, o que ocorreria na madrugada do dia 17 com tropas do exército e tanques. Todos os residentes foram presos, permanecendo assim por tempo variável. Eu fiquei preso em várias unidades do Exército por mais de dois meses. Na época, ainda não havia tortura com choques, mas nos interrogatórios se batia com cassetetes e palmatórias. Foi constituído um Inquérito Policial Militar sobre o CRUSP, que foi fechado. Para justificar a repressão, procurou-se apresentá-lo como um foco de subversão armada que nunca foi – com armas como estilingues, pedaços de madeira e livros subversivos (lembro-me de dois livros meus considerados subversivos: Pensamentos, de Pascal, em francês e com capa vermelha – pensaram em Mao Tse Tung? – e Guerra e Paz, de Tolstoi, com um canhão do início do século XIX na capa).
Na verdade, o CRUSP de então foi principalmente para muitos de nós estudantes uma experiência de socialização importantíssima, uma mini experiência concreta de organização social e comunitária – crítica em relação à sociedade da mercantilização total. Nos identificávamos por nossos interesses, e não com base em nosso desempenho em relação à sociedade constituída.
O AI-5 foi a violência como solução de continuidade que interromperia esta experiência de socialização, cuja força vinha da crítica de um modelo de sociedade que escondia e negava a barbárie que ela mesma produzia cotidianamente, seja no Vietnã, seja no terror e na perseguição que se promovia em relação a qualquer crítica aos status quo. O AI-5 provou que o regime não tinha argumentos para convencer. E que, no fundo, não se convence com argumentos, mas com a força. Foi o que aprendemos então, passando a nos dedicar a construir uma contraforça num processo que passaria pela Anistia, pelas Diretas, pela Constituinte, que são por essa via associados aos eventos de 1968. Oxalá consigamos antes que o professor Cardoso extermine as possibilidades do futuro. Penso que este, aposentado pelo AI-5, criticou nele apenas os sintomas, e não divergiu do falso modelo social de que o AI-5 apenas foi um instrumento. Tanto assim que teima em disfarçar toda a violência e destruição de direitos efetivamente existentes pela sedução modernizante neoliberal da inevitabilidade de mercantilização total desenfreada. Esta, a sociedade que se procura implantar hoje, é apenas o outro lado da moeda do AI-5, a sua face de manipulação dos interesses e construção de uma hegemonia ideológica organizativa.
domingo, 6 de abril de 2008
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