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Teoria e Debate nº 15 (jul/ago/set 1991)
ENTREVISTA
Paulo de Tarso Venceslau
O ex-guerrilheiro da Ação Libertadora Nacional e atual vice-presidente da CMTC fala das ilusões perdidas de 68 e revela que a ALN só se dissolveu na década de 80.
por EUGÊNIO BUCCI e RICARDO AZEVEDO*
Fazendo as contas, agora, são pelo menos cinco seqüestras na vala de Paulo de Tarso Venceslau, o PT do PT, atual vice-presidente da CMTC na prefeitura de São Paulo. O primeiro aconteceu em Taubaté, ou mais exatamente, nas proximidades pouco exatas de Taubaté. Nosso entrevistado era presidente (de direita) do Grêmio Estudantil do Colégio Monteiro Lobato, em 1961. Sua chapa, "Alvorada", derrotara a concorrente "Diretrizes e Bases". "Alvorada" vitoriosa, organizou uma excursão para a cidade de Lorena e, na volta; com a estudantada embriagado, o vagão juvenil teve suas luzes apagadas no trem para Taubaté. Beijos no escuro. Um certo professor achou aquilo barbaridade e PT foi expulso do Colégio. Foi terminar seu curso em São José dos Campos, acusado de, no mínimo, desviar os secundaristas. Um seqüestro, digamos, rascunhado.
Depois ele se aprimorou. Seqüestrou no duro um artista plástico na Maria Antônia e aprisionou igualmente duas militantes da Ação Popular, no episódio mais tarde famoso como "o seqüestro da Drozila". Sua quarta ação neste sentido vitimou um cidadão americano, Charles Elbrick no Rio de Janeiro, em 1969. Esses três ele conta na entrevista abaixo mas o último ele omite. No quinto seqüestro de sua vida, o PT levou a pior. Foi no ano passado quando o presidente da República lhe arrancou as economias do banco. O mundo dá voltas e, de um jeito ou de outro, temos um seqüestrador na presidência da República.
Nascido há 48 anos em Santa Bárbara do Oeste, filho de um médico integralista que escreveu a cartilha O Integralismo ao Alcance de Todos (traduzida para o alemão e para o italiano), PT só foi acordar para a esquerda quando cursava faculdade, na década de 60. Do "seqüestro" da estudantada bêbada até sua prisão em 69, foram anos de intensa atividade. Foi vice-presidente do Centro Acadêmico da Economia da USP (mas só terminaria o curso depois de cumprir cinco anos atrás das grades) e o responsável pelo esquema de segurança do lendário Congresso da UNE em Ibiúna, descoberto pela polícia. PT diz aqui que não teve culpa em Ibiúna e abre um monte de outras histórias sobre as quais pesa uma espécie de pacto de silêncio. É hora de trazê-las a público, tarefa que cabe à seção Memória de Teoria & Debate. Paulo de Tarso, criador e membro do Conselho de Redação desta revista, se dispõe a contar o que sabe e o que viveu, numa contribuição humilde para que o esquecimento não seja a laje fria a selar o sepultamento dos detalhes mais humanos de um sonho que virou pesadelo. 68 não pode fugir da memória próxima, para que não se torne mito inútil na memória distante. (EB)
ENTREVISTADOR: Você se sente ridículo dando esta entrevista?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Ridículo, não. Talvez um pouco constrangido por ser também membro do Conselho de Redação de Teoria & Debate. Entretanto, acho que as histórias sobre 68 e sobre o período da luta armada no Brasil têm muitas vezes um cunho "oficialista". Essas versões acabam deixando de lado o fator humano, que é contraditório: cheio de dúvidas e vacilações de um lado, mas também repleto de certezas de outro. É preciso começar a falar sobre essas coisas. É preciso tirar 68 do Olimpo.
ENTREVISTADOR: Por que te atraia o movimento estudantil?
Eu me sentia muito bem fazendo aquilo, achava que ia resolver os problemas do mundo em alguns minutos, num processo milagroso. Aí caí na política estudantil e tinha que parar para enfrentar os debates. A linguagem dos grupos de esquerda era grego puro para mim; eu não entendia porque era muito codificada.
ENTREVISTADOR: Então você começou a estudar?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Eu fui obrigado a ler, cair no velho esqueminha, andar com O Estado e a Revolução, de Lenin, debaixo do braço, lendo nos ônibus. Mas nessa época não aprendi muito. Minha formação marxista se deu na cadeia, quando estive preso.
ENTREVISTADOR: Você chegou a entrar no Partidão?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Não, eu fui área de influência da Dissidência aqui em São Paulo, que foi dar na Ação Libertadora Nacional, isso mais por causa das relações de amizade. Depois teve a famosa briga da rua Maria Antônia em 67, nas eleições da UEE (União Estadual dos Estudantes), quando o CCC (Comando de Caça aos Comunistas) invadiu a Faculdade de Filosofia da USP e nós tivemos enfrentamento de rua, porrada mesmo. Uma vez o físico Mario Schemberg foi falar na Economia, que era ali na rua Dr. Vila Nova perto da Maria Antônia e o CCC invadiu a faculdade, saiu pau. Eu estava ideologicamente ganho pela esquerda e, nesse processo de radicalização, fui me aproximando da Dissidência, principalmente através do Aloísio Nunes.
ENTREVISTADOR: Atual vice-governador de São Paulo?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Sim, ele era da Faculdade de Direito do largo São Francisco. Em 1968 foi presidente do Centro Acadêmico "XI de Agosto". Em 68 eu já estava muito próximo desse pessoal, da Dissidência, e com uma visão que na época era muito simplista, de que a revolução estava iminente. O descontentamento popular estava presente, a classe medito ouriçada, quem desse o primeiro tiro levava as massas atrás de si. Eu já tinha essa visão fatalista por causa de Cuba, do Vietnã, dos enfrentamentos, tinha uma situação que já criava o clima e, para completar já estava lendo Que fazer?, de Lenin, e outros textos que começavam a circular clandestinamente, textos de organizações. Então fui me posicionando: reformismo jamais, pacifismo, nunca; e contra a Ação Popular (AP), porque fui convencido de que ela era porra-louca, que tinha só discurso. Na eleição da UEE em 67, em que o Zé Dirceu foi eleito, contra a Catarina Mellone que era da AP, eu fiz campanha para ele, que além do mais era meu amigo. Naquela altura do campeonato, com essa campanha, acirraram-se os ânimos contra a AP, que tentou um golpe na época para fajutar as eleições. A gente flagrou-os com a boca na botija. Eu participei dessa armação.
ENTREVISTADOR: Como armação?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: A AP fraudou as eleições. Já estávamos seguindo os carros com gente dela que estava encarregada de buscar resultados das umas no interior do estado. Aí, descobrimos que estavam falsificando o resultado eleitoral num apartamento da rua Caio Prado. Demos um flagrante. Eu fazia parte da Comissão Eleitoral e tinha duas meninas, a Irene, que era da Faculdade de Enfermagem, e a Drozila, que era da PUC, ambas da AP. Eu cheguei na reunião da Comissão Eleitoral e elas disseram que não ia haver reunião nenhuma. O que fizemos? Pegamos as duas meninas botamos no carro e seqüestramos. Levamos para um apartamento onde apareceriam depois o Rui Falcão e o Fernando Ruivo, que eram os chefões. Foi engraçadíssimo. A nossa intenção era dar uma dura. Elas tinham feito sacanagem com as listas, nós tínhamos provas. Nós falávamos: "vocês vão confessar!".
ENTREVISTADOR: Vocês ameaçavam a mulherada com violência sexual?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Ameaçávamos: "olha a cama está ali". E no final elas confessaram, assinaram um documento inclusive. Lá pelas tantas soltamos as duas. De manhã, quando nos fomos para a Maria Antônia, estava o maior burburinho: denúncia de seqüestro, tinham sumido com as duas; e nós dizíamos: "vocês são loucos, não aconteceu nada disso". Elas só foram aparecer na hora do almoço.
ENTREVISTADOR: Quer dizer que já nessa época o seqüestro era sua vocação... mas e aí? Como é que se deu essa vinculação com a luta armada?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Se deu a partir da primeira ocupação de escola, feita na Economia. Na faculdade na tomada de 68, acho que em março, já tínhamos necessidade de preparação quase que militar.
ENTREVISTADOR: Mas por que vocês tinham que ter preparação militar?
O enfrentamento começava a se aguçar e víamos que não estava dando. Então, começam a aparecer os "comissários", pessoal que vinha discutir dizendo: "olha, cuidado, é melhor se preparar, vai ter um momento que vai ter um enfrentamento de fato". Esses caras tinham possibilidades de fornecer armas, treinamento, em começo de 68. Isso antecedeu inclusive na ocupação da Filosofia na Maria Antonia.
ENTREVISTADOR: Você acreditava que a revolução ia mudar tudo?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Claro. E seria a curtíssimo prazo. Quase todos os países da América Latina tinham focos de guerrilheiros.
ENTREVISTADOR: E já tinha sido divulgada a teoria do "foco"?
Tinha saído o livro do Debray, Revolução na revolução, tinha saído Guerra de guerrilha, do Che Guevara: esse era a nossa cartilha. A ALN - que não se chamava ALN ainda ainda nessa época - já vinha com esse discurso que não tinha que fazer muita teoria, não. A revolução tinha que se fazer na ação. Depois o Marighella afirmou que para fazer uma ação revolucionária não precisava pedir autorização para ninguém.
ENTREVISTADOR: Autonomia tática?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Autonomia tática. Naquele momento eles já davam essa opção, de você ter o seu grupo e criar a sua infra-estrutura, a sua base. Para mim aquilo era um prato cheio. Nessa época, para você ter uma idéia, no meio desse pessoal, eu era o único que tinha renda fixa, estável, eu tinha emprego. Eu trabalhava no Metrô como monitor, dava aula particular e ganhava um dinheiro extra resolvendo provas do Mackenzie. Eu tinha alunos particulares que estudavam lá. Então, em dia de prova eu ia para o pátio, o pessoal trazia as provas, eu resolvia e cada um que usava pagava! Bem, mas eu estava reforçando meus laços com a ALN. Foi aí que, um dia, o Agostinho chegou para mim e disse o seguinte: "olha, tem aí o velho, o Marighella, que andou criando uma organização". Ele vendeu um prato maravilhoso, "temos estrutura, gente, vamos pegarem armas". Ele disse que um dia eu iria ser procurado por alguém para acertar os detalhes. Aquilo caiu como uma luva para mim. Eu já me sentia um cara não mais independente.
ENTREVISTADOR: Mas nesse período teve o congresso da UNE em Ibiúna. É verdade que você foi um dos coordenadores?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Fui eu que escolhi Ibiúna. Tinha uma decisão política a ser tomada que era se o Congresso seria aberto ou fechado. A AP defendia que tinha que ser clandestino e nós que tinha que ser no Crusp, aberto, na Cidade Universitária. Ganhou a posição de ser fechado. São Paulo foi o estado encarregado de organizá-lo, o que sobrou para a turma do Zé Dirceu, da qual eu fazia parte. E eu fui praticamente o coordenador desse esquema.
ENTREVISTADOR: Mas que demência! Congresso clandestino para oitocentas pessoas?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Quase mil.
ENTREVISTADOR: Por que você escolheu Ibiúna?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Apareceram várias opções. Através do frei Oswaldo Resende, dos dominicanos, eu tive contato com o general Euriale Zerbini. Ele era um contato que nos dava muitas informações do outro lado, do tipo como se comportava a tropa de choque no combate a manifestação pública etc.
ENTREVISTADOR: Por que ele dava essas instruções?
Porque ele foi comandante da Força Pública de São Paulo e foi cassado em 64. Então, nós tivemos várias reuniões, nas quais ele passava as técnicas da repressão: como agia a cavalaria, como era o efeito do gás lacrimogêneo etc. Em função disso a gente preparava a nossa ação no movimento estudantil. Através do Zerbini apareceu um sítio em Ibiúna, cujo dono - Domingos Simões - tinha sido militar e em conhecido dele. Daí conheci o Simões na casa do Zerbini, aqui nas Perdizes, perto do Convento dos Dominicanos e fui a Ibiúna, passei uma tarde lá, conheci e analisei.
ENTREVISTADOR: Mas de onde é que você foi tirar a idéia de que mil estudantes reunidos neste sítio poderiam passar despercebidos?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Nós estávamos numa fase em que o espírito guerrilheiro tinha tomado conta da gente. Então fizemos uma grande confusão, achávamos que o movimento estudantil estava imbuído do espírito da clandestinidade, da disciplina de acatar as regras que fossem estabelecidas.
ENTREVISTADOR: Quem mais foi ao sítio?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Eu e minha turma: o Tenente, o Márcio Becker, o Lauri, o pessoal mais chegado. Todos mortos, do meu grupo só tem eu vivo. Era o pessoal que depois se transformou no Grupo de Ação.
ENTREVISTADOR: Quantas pessoas eram?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Era um grupo muito pequeno. Depois veio o pessoal que foi montar a infra-estrutura, gente de Minas, do Rio, de uma porrada de estados. Era um local precário: o que tinha era uma casa velha, uma pocilga e tinha um morro. Nós colocamos o pessoal para trabalhar, fizeram degraus no morro. Ali fizemos a nossa plenária; cobrimos com lona para o caso de chuva.
ENTREVISTADOR: Isso quanto tempo antes do Congresso?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Isso foi em setembro, o Congresso estava previsto para a segunda semana de outubro. Pedimos aos nossos aliados que mandassem reforço para trabalhar na enxada, pegar no duro. Tinha estudante de Medicina, de Engenharia, de tudo. Eles ficavam confinados lá. Era um acampamento guerrilheiro na verdade. Enquanto isso, nós mandamos gente para o Brasil inteiro organizar a vinda dos delegados.
ENTREVISTADOR: Como é o esquema?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: As senhas eram uma diferente da outra. Metade dela ficava aqui e a outra metade ia para a escola. Então, cada delegado recebia metade da senha. O delegado chegava em alguma cidade perto de São Paulo: no ABC, em Jundiaí, em Campinas etc.
ENTREVISTADOR: Tudo isso organizado clandestinamente? Não vazou nada?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Nunca vazou. Tanto que agentes da polícia que vieram infiltrados ficaram confinados no Congresso, não conseguiram sair de lá.
ENTREVISTADOR: Como era isso?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Em São Paulo nós montamos uma central telefônica que era na casa da Eliana Ferreira de Assis, aqui no Sumaré, e montamos uma frota de carros espalhada em volta da casa dela. Tinha o pessoal que ia buscar o delegado, por exemplo em Campinas, o trazia para São Paulo e ligava para a central telefônica. Daí saía um carro que pegava o delegado e o deixava em algum lugar da Rodovia Raposo Tavares. O carro daqui não sabia qual era o local do Congresso. Sabia que era perto de Ibiúna. Na estrada chegava um jipão ou uma caminhonete e apanhava esse pessoal. Aí tinha mais 25 Km de estrada de terra. No meio do caminho tinha uma casa, onde era feita a checagem final. Quem não fosse delegado efetivo ficava preso na casa. Todos os dirigentes de organizações que não eram delegados ficaram detidos lá. Não era fácil chegar! Só que o pessoal nosso que estava na casa, tomando conta, já estava muito cansado quando apareceu lá um bêbado. Era um pedreiro que foi cobrar uma conta do Simões, que era dono dessa casa também, e ele não estava, evidentemente. O bêbado reclamou, começou a encher o saco e aí o pessoal meteu um revólver na cabeça dele, eles mandaram ele embora. Esse cara foi para Ibiúna e contou para o delegado: "Fui ameaçado, está acontecendo algo... tem um bando de jovens lá!"
ENTREVISTADOR: Mas não tinha infiltração policial na organização?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Não tinha.
ENTREVISTADOR: Quem apontou o revólver para a cabeça do bêbado?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Acho que foi o Fayal, do Rio de Janeiro, que hoje é deputado pelo PDT.
ENTREVISTADOR: E quando "caiu", como é que foi?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Foi na sexta-feira, dia 11 de outubro. O Congresso não tinha começado ainda. Só ia começar no sábado, que era o dia previsto para terminar. Estava tudo atrasado.
ENTREVISTADOR: Por quê?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Para filtrar mil pessoas, uma a uma, demorava. Três dias era pouco. Credenciamento clandestino é uma loucura! Enfim, com esse atraso o Congresso não começou. Quando chegou na sexta-feira à noite, nós estávamos reunidos no apartamento de uma amiga deste grupo que estava coordenando a infraestrutura. Aí ligou o Sidnei Basile, que era estudante de Direito e jornalista hoje ele é diretor da Gazeta Mercantil -, e nos contou que estava havendo uma reunião no Dops e a polícia já tinha localizado a região do Congresso. Tínhamos que ir lá para avisar. Agora, quem ia lá? Eu ou o Lauri, que eram os dois que conheciam bem a estrada. O Lauri saiu, mais ou menos umas dez da noite. Fazia frio e chovia. No caminho, ele encontrou um carro que devia estar meio atolado. Eram policiais. Quando ele desceu para ver quem era que estava no carro atolado, o cara pensou que ele fosse um oficial (o Lauri estava usando uma japona azul-marinho) e falou: "já localizamos, é nessa direção". Ele respondeu: "Pode deixar que eu vou mais para frente". Então ele chegou no local sabendo que a repressão estava para chegar.
ENTREVISTADOR: O carro que estava atolado era mesmo polícia?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Polícia. Ele até perguntou onde estava a tropa e o Lauri disse que vinha vindo logo atrás. Ele chegou no sítio mais ou menos à meia-noite, procurou o pessoal e disse: "temos que limpar a área". Para reunir as pessoas que podiam tomar aquela decisão, num local onde não tinha luz elétrica, com chuva e frio, era difícil. Só se conseguiu reunir um grupo às três horas da manhã. O pessoal da AP achou que era um golpe. O Travassos até disse: "vocês sabem que vão perder e estão dando um golpe. Vamos levar a decisão para a plenária amanhã de manhã". Sete e pouco da manhã quando ia começar o Congresso chegou a tropa.
ENTREVISTADOR: Devia ter um esquema armado e devia ser grande, quantas pessoas?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: De trinta a quarenta. A gente só entrava por um caminho. O caminho de saída que só o esquema de segurança conhecia. A gente podia ter tirado dali umas 150 lideranças. Tinha bomba armada em ponte. Depois do Congresso, já em 69, nós voltamos lá e recuperamos armas e bombas que foram enterradas quando a polícia chegou.
ENTREVISTADOR: Então a sua interpretação de furo na segurança do congresso foi o bêbado mesmo?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Foi o bêbado. Conversamos muito depois e a conclusão foi essa.
ENTREVISTADOR: Vamos voltar um pouco. Na época da ocupação da Faculdade de Filosofia na Maria Antônia, da Economia e depois da Faculdade de Direito, existia um esquema armado para vigilância. Principalmente por causa das ameaças do CCC. Você também estava nesse esquema?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Estava. Aliás, pegamos vários policiais infiltrados.
ENTREVISTADOR: Como vocês pegaram?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Se havia um cara suspeito, nós o abordávamos, pegávamos armas, documentação e depois o soltávamos. Nessa época nós tivemos mais um seqüestro ...
ENTREVISTADOR: Da Maçã Dourada.
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Da Maçã Dourada e do Parisi, o artista plástico. O da Maçã Dourada é a história que todo mundo conhece. Maça Dourada era uma guria na época.
ENTREVISTADOR: Que transou com o Zé Dirceu?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Não chegou a transar. A história é outra. O Zé Dirceu usava um 32, que eu dei para ele, velho, caindo aos pedaços. Ele andava com aquele revólver prateado. Um belo dia o Zé Dirceu levantou suspeita sobre a Maçã Dourada.
ENTREVISTADOR: Foi ele que levantou a suspeita?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Foi, o Zé Dirceu se envolveu com a moça e foi transar na sala da Cadeira de Grego. Quando eles estavam lá, ele colocou a arma em cima de algum lugar. A Maçã Dourada pegou a arma, desmontou, fez um monte de coisas. O Zé ficou meio surpreso: "Pó, a menina lá entende de arma".
ENTREVISTADOR: Era bonita essa Maçã Dourada?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Era, era bonita. Depois um outro grupo pegou a bolsa dela, roubou a chave do apartamento, que ficava na praça Roosevelt, se não me engano. No apartamento, havia uma série de documentos, carteiras de endereço, com telefones de delegados do Dops. Isso provou que a Maçã Dourada era uma agente infiltrada. Então seqüestraram a moça e a levaram para uma sala no porão da Faculdade de Filosofia.
ENTREVISTADOR: E daí? Deixaram presa?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Deixamos presa para pensar. A imprensa superexplorou o episódio com a Maçã Dourada. Uns três dias depois, soltamos.
ENTREVISTADOR: Por que ela se chamava Maçã Dourada?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Maçã Dourada era o codinome que ela usava como agente do Dops.
ENTREVISTADOR: E o Parisi, como foi o seqüestro dele?
O Parisi, todo mundo dizia que era do CCC. Ele passou pela Maria Antônia e nós o seqüestramos na rua, o colocamos num carro e levamos para a Cidade Universitária.
ENTREVISTADOR: E ele não era do CCC?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Sei lá se era. Ele tinha fama de ser de direita e ficou lá uns dois dias amarrado, coitado! Depois soltamos.
ENTREVISTADOR: Mas a troco de quê vocês seqüestraram o cara?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Porque tinha fama de ser do CCC. E o que estava fazendo na Maria Antônia, de dia, às três horas da tarde? Para nós era provocação! O clima já era muito tenso, de parte a parte. Nesta altura, a polícia prendeu um cara do Mackenzie, o Casemiro, que indicou o nome de alguém que morava no Crusp. Então foi lá o carro da polícia para prender essa pessoa e saiu pau. Os estudantes tomaram de assalto o carro, na Cidade Universitária, botaram fogo nele e prenderam dois policiais no Crusp. Era demais, né? Imediatamente a polícia invadiu a Cidade Universitária e resgatou os policiais. Tinha um pano de fundo nisso, porque nós também vínhamos nos preparando para a luta armada. Tudo fazia parte do cenário em que nós, estudantes, iríamos ter um papel decisivo na revolução. Nesse período entre Ibiúna e o AI-5, a gente se consolidava enquanto grupo de ação. Eu, o Benetazzo, o Tenente, o Marcio Becker, o Carlos Eduardo Fleury e o Robertinho, que se suicidou. Foi nesse período que eu comecei a mudar meu rumo. Teve um lance interessante, no final de 68. Já estávamos decididos a ir para o enfrentamento. Não tinha mais retorno, a luta armada era inevitável, o AI-5 tinha confirmado todas as nossas análises, nosso grupo tinha que tomar alguma iniciativa. Estávamos fazendo curso de explosivos, de armamentos.
ENTREVISTADOR: Curso aonde?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Em apartamentos, no apartamento do Bene, no Edifício Copan. Perto do reveillon, de 68 para 69, teve uma festa na casa do Benetazzo, estavam todos os amigos, toda a turma. No meio da festa saiu um grupo, do qual eu sou o único sobrevivente, nos trocamos, vestimos black tie - porque festa de estudante era todo mundo de jeans - e fomos para a casa de um colecionador de armas.
ENTREVISTADOR: E por que de black-tie?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Porque era uma casa chique no Pacaembu e despertaria suspeita descer do carro um bando de jovens vestindo jeans.
ENTREVISTADOR: A casa estava vazia?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Estava. Nós tínhamos segurança de que os donos não estariam na casa. Descemos do carro, fizemos a ação, guardamos as armas, tiramos o black-tie e voltamos para a festa. Nem perceberam que tínhamos sumido! Esse foi praticamente o nosso batismo, enquanto grupo.
ENTREVISTADOR: Esse grupo de ação era da ALN?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Quando chegou 69, a dúvida era continuar no movimento estudantil ou ir para a ação. Em fevereiro, caiu o famoso sítio de Itapecerica do pessoal da VPR, onde estavam preparando uma ação com um caminhão militar. Como conseqüência disso morreu o Marquito (Marco Antonio Braz de Carvalho), que era um dos comandantes nossos na época, o que gerou uma desestruturação do pessoal que era do Grupo Tático Armado (GTA), autor de várias ações de enorme sucesso.
ENTREVISTADOR: O GTA da ALN?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: O GTA de São Paulo da ALN, do qual o Marquito era comandante. Aí tem uma reformulação do Grupo.
ENTREVISTADOR: Quem fazia parte do grupo?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Várias pessoas, o João Leonardo, o Arno Preiss, o Marquíto, o Jonas, todos mortos. Mas eu não conhecia todos não, eu conhecia uma parte. Então, o pessoal começou a cooptar quadros do movimento estudantil. E eu por ter experiência na parte da infraestrutura, apoio, fui chamado para coordenação regional da ALN.
ENTREVISTADOR: Não tinha nada a ver com o GTA?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Não tinha nada a ver com o GTA, ainda. Era na verdade uma infraestrutura para o Grupo.
ENTREVISTADOR: O que fazia esse comando?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Quando eu fui para a coordenação regional, mudou o comando do GTA, com a morte do Marquito, foi o Jonas, Virgilio Gomes da Silva, quem assumiu o comando.
ENTREVISTADOR: Você passou a fazer parte do CC?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Não tinha CC, era outra estrutura, era coordenação, não tinha direção. Tinha uma coordenação nacional que era o Marighella, e uns nomes que eu nem sei mais.
ENTREVISTADOR: O GTA era subordinado ao Jonas, que era subordinado a quem?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: O Grupo era subordinado à coordenação nacional, na verdade. Tinha participação na coordenação regional. No fundo quem comandava o GTA era o Marighella. Nesse período de fevereiro até 12 de maio, estávamos nessa transição. O Grupo estava sendo remontado, o Carlos Eduardo Fleury, o Celso Horta, o Manoel Cirilo e o Takao Amano foram chamados para formar esse novo GTA. Em 12 de maio o meu grupinho fez uma ação, tinha autonomia tática. Então, "nós não vamos fazer nada?" Claro que faríamos. Fomos para a porta de um sindicato patronal, de madrugada, e botamos uma das bombas do Congresso de Ibiúna, que a gente tinha ido tirar. Chegamos lá, instalamos as bombas e fomos embora, passou um minuto, e nada. "Bom, falhou, vamos lá buscar". O carro parou na frente, nós descemos, começamos a caminhar na direção da bomba e bum... estourou. Mais três passos a gente tinha parado não sei onde. Me lembro como se fosse hoje, deu aquele clarão, começou a quebrar vidro de tudo quanto é lugar, do prédio em frente, foi uma puta explosão. Entramos no carro e desaparecemos. No outro dia, no jornal, saiu a notícia de duas ações, e a nossa era uma delas; "50% das ações do 12 de maio" era uma puta satisfação, o 12 de maio não passou em branco. Evidentemente era um caminho sem volta. Essa ação por exemplo nunca ninguém soube quem fez. Eu sou o único sobrevivente.
ENTREVISTADOR: Quem cooptava vocês?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Era o Jonas e o Fleury.
ENTREVISTADOR: O GTA era grande?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: 20 pessoas.
ENTREVISTADOR: Mas não se reunia?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Às vezes se reunia.
ENTREVISTADOR: Todos juntos?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Fazia reunião no Butantã, fazendo de conta que era piquenique, nos lugares mais diversos. Não com 20 pessoas, no máximo com 10. Daí surgiu a idéia de criar o GTB que era o segundo GTA, mas que era um outro grupo que não tinha nada a ver com o antigo. Esse grupo tinha 20 pessoas. Quando tinha ação juntava 5, 10, 15, dependia. Quando chegou junho de 69 aconteceram uma série de incidentes, que começaram a marcar divergências entre nós. Um deles foi uma ação feita em frente ao Batalhão de Guarda da Polícia Militar ao lado da Casa de Detenção. Eles deram um tiro no guarda, levaram a metralhadora dele e o cara morreu. Evidente que isso foi objeto de críticas. E aquilo era contado como uma puta vantagem.
ENTREVISTADOR: Você questionava?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Eu questionei várias vezes, isso foi fruto de discussão pesada. A segunda ação grave foi na avenida Penha de França. Naquele tempo começaram a colocar guarda com metralhadora na frente dos bancos. Tinha uma lojinha de guarda-chuva ao lado do banco e o guarda, todo bonachão, chegava nessa lojinha, punha a metralhadora em cima do balcão e ficava conversando com o dono da loja. Nós fizemos um levantamento: "quando ele entrar na lojinha e colocar a metralhadora em cima do balcão nós entramos e tomamos conta, rendemos o guarda". Era como tomar pirulito de criança. No dia da ação aconteceu que o guarda era outro, não era o gordão bonachão, era outro mais magrinho. Aí eles mudaram tudo, o Jonas e o irmão dele, o Chiquinho, que era boxeador. Os dois foram para cima do guarda, deram porrada, tomaram na marra a metralhadora. O guarda em arisco, se jogou no chão, sacou da outra arma e encheu de bala o Chiquinho, que levou quatro tiros. O guarda morreu.
ENTREVISTADOR: O Chiquinho morreu?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Não. Pegaram ele e levaram para casa de um publicitário, o Carlos Knapp. O médico que estava no apoio era o Boanerges, que chamou um pronto socorro de sangue para fazer uma transfusão no Chiquinho, saiu dali e ocupou um hospital em Itapecerica da Serra.
ENTREVISTADOR: Ocupou?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Ocupou militarmente, e fez os médicos operarem na marra. E me entregaram o Chiquinho para eu cuidar. Eu levei o Chiquinho aos lugares mais malucos, colégios, seminários e, finalmente, o levei para São Sebastião onde fui preso depois. Nessa altura o Carlos Knapp ficou queimado e o Boanerges também. A ALN tinha uma rede de apoio muito grande, foi um estrago danado. E a minha crítica era elementar: "que absurdo, como é que estavam fazendo tantas burrices como aquelas?". Porque o GTA tinha feito uma série de ações sem dar um tiro e, de repente... não era possível, matavam esse soldado aqui, matavam outro soldado ali, um confronto que não tinha muita lógica. Mas não se podia recuar porque qualquer sintoma de recuo era criticado e todos nós afirmávamos que a direção revolucionária tinha que se formar na luta, na ação. Nessa altura, eu assumi a tarefa de tirar o Carlos Knapp e a mulher dele do Brasil. Eles estavam sendo procuradíssimos pela polícia e eu os levei de carro para a Argentina. Foi uma loucura, porque ele, além de careca, tinha uma perna 15 centímetros mais curta do que a outra! Quando eu voltei, em agosto, surgiu a idéia de fazer uma grande ação em 7 de setembro. Nós tínhamos planejado uma ação de sabotagem na rede elétrica de São Paulo. Foi quando surgiu o pessoal do Rio e fez a proposta do seqüestro do embaixador.
ENTREVISTADOR: Era a dissidência do PCB?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Era a dissidência do Rio. Então eu fui convocado pelo Toledo (Joaquim Câmara Ferreira) a participar.
ENTREVISTADOR: Pelo que o Gabeira contou no livro O que é isso companheiro?, a idéia surgiu porque quase por acaso o pessoal lá do Rio tinha descoberto o roteiro que o embaixador fazia todo dia. A partir disso eles pensaram em seqüestra-lo mas não tinham recursos para fazer isso sozinhos. Então entraram em contato com a ALN, via Toledo, e propuseram fazer essa ação conjunta. Foi mesmo assim?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Veio o Cid Benjamin discutir com a gente.
ENTREVISTADOR: De São Paulo quem participou?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: De São Paulo fui eu, o Toledo, o Jonas e o Mané Cirilo. O Toledo não participou da ação, ficou na casa, esperando a chegada do refém. Então foi eu, o Jonas, o Mané Cirilo e o Cláudio Torres que entramos na limosine. Tinha o pessoal do Rio em volta, que estava dando cobertura. Nesse episódio do Elbrick, do sequestro, nós participamos porque fomos convidados, mas o Jonas assumiu o comando da ação, e comando é comando, não tem outra voz e isso ele exigia.
ENTREVISTADOR: E durante o seqüestro, o que você fez?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Eu fiquei entre o Rio e São Paulo, fazendo a ponte. Levei os nomes a serem libertados de São Paulo.
ENTREVISTADOR: Terminado o seqüestro, você voltou imediatamente para São Paulo?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Não, eu deixei o embaixador e depois eles me deixaram em uma rua. Eu tinha ficado no apartamento de uma moça que eu não sabia quem era. Voltei até o apartamento, peguei a moça, que me acompanhou até o aeroporto e viu meu embarque.
ENTREVISTADOR: Como você se sentia?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Foi muito engraçado, porque quando eu estava na rua, no Rio, o clima de euforia era muito maior que o de São Paulo. Era euforia mesmo.
ENTREVISTADOR: Com o seqüestro?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Era, nos botecos, nas ruas, nos ônibus, em todo lugar. Rapaz, eu nunca vi isso, era um troço que estimulava a gente, que ia ao encontro do que dizíamos, que ação era importante.
ENTREVISTADOR: Como é que a polícia descobriu?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: O grande furo foi o Cláudio Torres esqueceu o palito. Era uma palito feito sob medida e quando retiramos o embaixador e cada um foi para o seu canto, o Cláudio não sei por que ficou sem ter para onde ir e foi para a casa de um tio, onde ele tinha morado. E esse era exatamente o endereço que estava no alfaiate que tinha feito o palito. Quando a polícia descobriu o alfaiate, localizou o endereço do tio dele. Quando o Cláudio Torres chegou na casa do tio, a polícia estava lá. E, por outro lado, Baiano, que era o caseiro, estava procurando um lugar para morar. Ele tinha recortado classificados de quartos de pensão e deixou o jornal recortado na casa. Através dessa pista eles o localizaram. Então foram presos de um lado o Cláudio Torres e de outro o Baiano. A história apareceu aí. Depois do seqüestro, o Marighella apareceu em São Paulo e deu uma bronca homérica na gente. Ele não sabia de nada, estava no Rio de Janeiro e correu risco de ser preso nas batidas policias de rua. Aí começou uma discussão sobre o que fazer. O Marighella defendeu mandar todo esse pessoal que estava na ação há tempo para Cuba fazer treinamento. Eu era um que estava nessa lista. No fim do ano deveria ter partido.
ENTREVISTADOR: O Marighella defendia o recuo?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Ele não falava explicitamente em recuo, mas no momento em que você manda os quadros para o exterior, deixando apenas alguns, não deixa de ser uma forma de recuo. Não podemos esquecer que nessa altura a euforia com o seqüestro ainda era muito grande: quinze companheiros tinham sido libertados. Mas com as prisões do Claudio Torres e do Baiano apareceram os nomes das pessoas do Rio que tinham participado da ação: o Gabeira, o Daniel Aarão, a Vera Silvia Magalhães, o Franklin Martins etc. E eles se referiam a três pessoas de São Paulo, só que com o "nome de guerra". Em São Paulo, a gente já estava começando a entrar num círculo vicioso: fazia ações arriscadas - assalto a banco, por exemplo - para garantir a própria sobrevivência da militância clandestina. Quando se montavam uma dessas ações, eram expropriados alguns carros, e aí se cometia um erro. Pegamos um fusca vermelho e tiramos a chapa dele. Logo depois um outro grupo se apropriou de outro carro que também era um fusca vermelho. Aí puseram a chapa de um fusca vermelho em outro fusca vermelho. Essa chapa já estava registrada pela polícia. Alguém deixou o carro na alameda Campinas. Foi com isso que começou o processo de queda que chegou até o Marighella praticamente.
ENTREVISTADOR: Quem caiu na alameda Campinas?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: A polícia, pela chapa, localizou os carros estacionados e montou uma emboscada. Chegou um grupo para retirar os carros. Nesse grupo estavam o Takao Amano, o Carlinhos Liechtenstein, o Mané Cirilo e o Sergio. Na hora em que eles entraram no carro, a polícia atirou. O Carlinhos levou um tiro que quebrou as duas pernas dele. O Takao também foi ferido nas pernas, o Mané Cirilo e o Sergio saíram correndo. O Sergio levou um tiro. Eles correram pela alameda Campinas em direção à alameda Santos. O Sergio não agüentou: caiu e morreu ali. O Mané Cirilo entrou pela contramão e escapou. Os outros dois foram presos e um morreu. Tudo começou ali, dia 24 ou 25 de setembro, portanto, vinte dias depois do seqüestro e dezessete dias após a libertação do embaixador. A partir dali se iniciou uma série de prisões, as pessoas começaram a desaparecer. No dia 29, o Boanerges foi com o Jonas ao apartamento onde morava o Aton Fon. Ele ficou fora e percebeu quando o esquema policial entrou e prendeu o Jonas. Ele fugiu e contou para todos.
ENTREVISTADOR: Até aí, o que vocês sabiam é que os caras estavam desaparecendo?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Estavam desaparecendo e a imprensa não noticiava nada. Aí naquela expectativa não se sabia se era desencontro: talvez a pessoa não tivesse ido ao "ponto" por medo. Mas gente que ia ao "ponto" era presa, desaparecia. Como é que a polícia tinha descoberto o apartamento onde o Jonas foi preso? Mistério! Nesses dias, exatamente, a família do Jonas, a mulher e dois filhos, estavam em São Sebastião junto com o Mané Cirilo, que tinha escapado do cerco. Estavam todos na mesma casa em que foi tratado o Chiquinho quando foi baleado. Então, chegou um momento em que alguém tinha que ir buscá-los. E eu fui porque a casa era de uma colega minha de faculdade, a Sandra Brisola, que hoje é professora da Unicamp. Eu fui para São Sebastião no dia 1º de outubro cedinho. Quando cheguei na casa, não vi sinal de vida, pensei que o pessoal estivesse dormindo. Quando abri o portão da garagem, apareceu metralhadora de todos os lugares, e aquela famosa frase: "esteje preso"! Eu não acreditava. Era uma sensação de que o mundo caiu. A primeira reação foi achar que era brincadeira. Mas o que aconteceu? Um cara que foi preso em Bofete - interior de São Paulo - "abriu" o Chiquinho, que falou da casa onde foi tratado. Na noite anterior, a polícia tinha invadido a casa e prendido todo mundo. Então, eu cheguei e fui preso. Aí, me trouxeram para a Operação Bandeirantes, na rua Tutóia, em São Paulo.
ENTREVISTADOR: Foi aí que começaram as famosas sessões de tortura?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Sim. Na sala de torturas da Oban, eu dei logo de cara com uma parede manchada, com sangue coagulado. Eles diziam que era do Jonas. Tinham matado o Jonas ali dentro na véspera. Ele foi um dos primeiros a morrer sob tortura. Estouraram o crânio dele, segundo os policiais me contaram depois. Eles deviam ter ficado meio assustados pois não sabiam ainda qual seria a reação. Era o início da repressão mais violenta. Eu tenho a impressão de que fui salvo porque o Jonas morreu antes. Porque eu cheguei com o seqüestro do embaixador nas costas.
ENTREVISTADOR: Eles já sabiam?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Já. E foi isso que me salvou também.
Por que já não tinham muito o que altrancar de você?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Sim. Eu segui as instruções que tínhamos, de não confessar, e eles queriam que eu confessasse o seqüestro. Eles foram batendo até eu confirmar que tinha participado. E nisso eu ganhei um tempo preciosíssimo.
ENTREVISTADOR: Por quê?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Porque passou o tempo. Os "pontos" que eu poderia abrir já tinham passado.
ENTREVISTADOR: Aquilo que falam na veja, que arrancaram unhas, é fato mesmo?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: É, eu estava meio mal. Tenho uma cicatriz até hoje. A língua toda cortada de tanto choque. Fui parar no hospital. Quando eu voltei, nessa fase final, eles me colocaram numa cela com dois jornalistas, o Fernando Pessoa e o Talvani, para que eles tomassem conta de mim, dessem comida na boca etc. Então, na Operação Bandeirantes, de pau mesmo, tortura, foram uns três dias. Depois amenizou. Nessa época, eu morava num quarto na rua Sergipe. E tinha lá um saco da Brinks cheio de armas e um outro cheio de dinheiro.
ENTREVISTADOR: Uma fortuna?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Para a época era razoável. Era a minha vida que estava ali: a vitrola, os discos, as armas, um saco de dinheiro e um pequeno guarda-roupa. Aquilo ia cair mesmo, porque tinha documentos legais meus lá. Quando eles descobrissem que tinha armas e dinheiro, eles voltariam a me interrogar, dizendo que eu não tinha confessado tudo. Um dia eu tive que falar com o major Coelho, que era o comandante da Oban. Falei para ele que para mostrar que eu estava realmente arrependido, eu ia dar o endereço da minha casa. Então, me levaram carregado - eu não estava andando ainda. Quando chegaram lá eles ficaram loucos: nem o dinheiro, nem as armas nunca apareceram no meu processo. Tinha metralhadora ali, que tinha morte nas costas! Os caras se apropriaram de tudo.
ENTREVISTADOR: O que você acha de "entregar" sob tortura? Você condenaria alguém que falasse nessas condições?
Essa talvez tenha sido a parte mais espinhosa da prisão, porque todo mundo tinha alguma coisa "dependurada". A resistência era maior para uns, menor para outros. Mas tinha um certo limite. Para mim isso ficou muito patente.
ENTREVISTADOR: Por onde passa a resistência à tortura? É uma questão física?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: O que deu para observar é que quando as pessoas tinham vínculos de amizade, a resistência era maior. Meu medo era principalmente pelos meus amigos. Isso me dava capacidade de resistência, tanto que nesse período com certeza ninguém foi preso por minha causa diretamente. A resistência nesses casos era muito forte. Quando era um relacionamento frio, de militante apenas, ali não funcionava.
ENTREVISTADOR: Aí se "abria"?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Pelo menos o resultado foi esse. A preocupação de preservar o amigo era muito maior. A outra explicação dada era que aquelas pessoas que estavam presas, em geral, eram de grupos de apoio. Tinham importância secundária para a organização, não eram militantes. Eram uma categoria vulgar, vamos dizer assim. Se você entregasse um cara do GTA, por exemplo, você estaria arrebentando com a organização. O pessoal de apoio não, era secundário, não tinha a importância de um quadro político-militar. Isso inclusive foi motivo de muita discussão na cadeia.
ENTREVISTADOR: Se você parasse para pensar faria tudo de novo?
Eu só fui parar para pensar quando eu fui preso. No meu caso especificamente, eu tive que travar uma luta interna e externa. A interna era a questão da sobrevivência física, mental, moral. A externa porque eu fui acusado de ter sido o responsável pela morte do Marighella.
ENTREVISTADOR: Aonde você foi acusado?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Dentro da cadeia.
ENTREVISTADOR: Por que você foi acusado?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Porque tinha que ter um bode expiatório.
ENTREVISTADOR: Mas o que o relacionava com a morte do Marighella?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: No quarto em que eu morava, "caiu" o telefone do Convento dos Dominicanos entre papéis e documentos meus. Aí a polícia montou uma campana e um mês depois se sabe o que aconteceu. A morte do Marighella envolveu basicamente os padres dominicanos. Em nome de uma visão política de que era importante conservar a aliança com a Igreja, não se podia crucificar os padres. Na luta interna o pessoal, particularmente o Carlos Eduardo Fleury, mandou um relatório me responsabilizando. Eu estava um mês e tanto em cana, quando o Marighella foi morto. Então, esse foi um processo muito cruel, foi em 69. Em 72 é que o pessoal reconheceu o erro. Mas, nessa altura, o Carlos Eduardo Fleury já tinha morrido, inclusive. Ao invés de isso me quebrar, me deu muita energia para lutar.
ENTREVISTADOR: Você ficou isolado, mesmo?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Nunca fiquei isolado porque não tinha ninguém na cadeia que "caiu" por minha causa.
ENTREVISTADOR: Mas na cadeia o pessoal era solidário com você?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: O grupo de fogo não, mas eu tinha respaldo das pessoas do grupo de apoio, que era maioria por sinal.
ENTREVISTADOR: E essa luta interna sua, como foi?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: A luta interna foi essa questão de sobrevivência, da minha disciplina. Diante daquele quadro, eu achava que eu não poderia nunca falhar. Eu tinha que dar exemplos. Então, eu era um preso politicamente, do nosso ponto de vista, exemplar. A gente tinha disciplina interna e eu a seguia rigorosamente, nunca fazendo um debate fora da organização.
ENTREVISTADOR: Você não desabafou com ninguém, nada?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Não, nunca. O que teve foram, em alguns momentos, manifestações de solidariedade, mas por eu ser disciplinado me enquadrava, não queria perder contato com a organização.
ENTREVISTADOR: Mas que visão você tinha, nesse momento já existia um questionamento à linha política?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: O nível de discussão dentro da organização não permitia qualquer veleidade de falar em recuo, em reavaliação, porque isso era sinônimo de desbunde. Desbunde era um palavrão, na época. Desbundado era a pior coisa de que se podia dizer de alguém. Então, era aquela rigidez mesmo. E portanto, uma avaliação mais crítica, que até me passava pela cabeça, muitas vezes era bloqueada, ainda mais na situação que eu me encontrava. Jamais poderia partir de mim uma avaliação que pudesse ser interpretada como recuo, desbunde.
ENTREVISTADOR: Como é que você explicava isso? Por que as quedas se sucediam?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Eram sempre falhas técnicas.
ENTREVISTADOR: Você considera que o nível de discussão política não era elevado, naquele tempo?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: No nosso grupo era muito pobre. Porque as discussões eram doutrinárias ou operacionais: Como é que nós vamos sair? O seqüestro vai ser feito? Como é que se retirariam os presos da cadeia? Depois, a organização não podia ser questionada. E não era questionada por nós. As outras organizações todas tinham críticas à ALN e a gente respondia a isso dizendo que nós éramos os fudidos, os revolucionários, os combativos e os caras é que eram desbundados. Eram soluções simplistas.
ENTREVISTADOR: Você foi solto, quando?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: No fim de dezembro de 74. Eu passei todos os cinco primeiros anos da década de 70 em cana.
ENTREVISTADOR: Em 74, como é que vocês se rearticularam? Aí não estava mais no raio de cogitação uma ação armada?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Para nós ainda estava. Não de imediato. Eu saí da cadeia no dia 20 de dezembro, com algumas tarefas, inclusive, de recontatar a organização.
ENTREVISTADOR: Mas existia estrutura organizada funcionando fora da cadeia?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Funcionou durante algum tempo, mas era uma coisa muito precária.
ENTREVISTADOR: Não tinha uma estrutura bolchevique, nesse período?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Não, de partido não. A ALN nunca teve uma estrutura de partido. Tanto que foi na cadeia que começamos a discutir a necessidade de um partido. Para nós partido era uma espécie de palavrão: um negócio burocrático, que não permitia desenvolver ações revolucionárias.
ENTREVISTADOR: Ata quando existiu a ALN?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: A ALN mesmo, enquanto organização, na prática não existia. Mas o espírito da ALN, que estava em alguns militantes que formavam um coletivo, vai até 83, talvez começo de 84.
ENTREVISTADOR: Quantas pessoas vocês conseguiram organizar?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Muito poucas, eu acho que somando tudo não dava 20 pessoas, no Brasil inteiro.
ENTREVISTADOR: Esses documentos políticos que você tem aqui em sua casa são dessa época?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: São dessa época.
ENTREVISTADOR: Até depois da fundação do PT, portanto?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Sim, depois da fundação do PT.
ENTREVISTADOR: O que a ALN pretendia nesta época?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: A discussão que se travava era exatamente essa: nós não tínhamos potencial mais de retomar uma organização nos moldes anteriores. A conjuntura era outra. Para nós, entretanto, a iminência de um golpe estava sempre presente. E isso justificava aquela clandestinidade. Os militantes ainda estavam aí, na anistia ninguém confiava. Nós achávamos precária a democracia que se estava oferecendo naquele momento. Discutia-se, particularmente, como é que poderia se dar a nossa intervenção. O que predominava é que se tinha que investir muito no trabalho político. E esse trabalho se traduzia na formação de lideranças, na inserção no movimento popular. Aí tem algumas pessoas oriundas da ALN que foram assumir um trabalho de comunidade de base, tentando criar uma massa crítica que permitisse um salto de qualidade, no plano de consciência e formação.
ENTREVISTADOR: Salto de qualidade seria o quê?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Seria a necessidade de uma organização.
ENTREVISTADOR: Armada?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Não sei, mas poderia ser.
ENTREVISTADOR: Era um trabalho mais de formação?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Era, mais de formação mesmo. Nós investimos muito nisso mas sem uma diretriz orgânica. Não era para ganhar gente para a organização. Era para formar lideranças.
ENTREVISTADOR: Nunca teve organização, comitê central, essas coisas?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Sempre tinha uma coordenação que tinha função de direção.
ENTREVISTADOR: Mas é engraçado porque vocês mantinham uma unidade orgânica mesmo?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Precária, porém mantínhamos. Aliás, a ALN acabou se dissolvendo em função da nossa incapacidade de garantir essa unidade.
ENTREVISTADOR: Mesmo depois de dissolvida vocês continuavam unidos?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Não, aí acabou, até com divergências internas.
ENTREVISTADOR: De que tipo?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Por exemplo, quando eu participei do Diretório Zonal de Santana, fui criticado porque eu não deveria me expor. Porque eu fui preso, estava com aquele trabalho de formação, estava envolvido com outras atividades e não deveria desenvolver uma atividade de frente, pública. Os outros achavam que eu deveria ficar na assessoria, mais afastado. Essa divergência estava presente. No entanto, tinha outros companheiros que não tinham histórias de prisão, que estavam na linha de frente, assumindo a construção do partido. O que houve foi um engajamento dessa militância na construção do PT.
ENTREVISTADOR: Mas não era contraditório?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Durante um período foi contraditório. Mais contraditório do que isso, exemplo, era chegar a participar, no fim dos anos 70 e começo dos 80, da Sindical Metalúrgica e através dela se constituir o Ativo, que era um conjunto de militantes oriundos da Oposição Metalúrgica e de outras organizações, com a perspectiva da construção de um partido, na verdade, de uma organização proletária. Isso tudo coincidiu. Eu estava entre esses remanescentes da ALN e também fazia parte desse Ativo.
ENTREVISTADOR: Isso foi antes do PT?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Tem uma parte que foi antes e outra que foi simultânea. Tanto que tinham pessoas nesse agrupamento, o Ativo Sindical, que achavam que o PT ia fazer sombra para eles.
ENTREVISTADOR: Quem, por exemplo, achava isso?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Esse pessoal do Ativo Sindical, hoje uma boa parte foi para o Momsp (Movimento de Oposição Metalúrgica de São Paulo), outra para a Cut Pela Base, que é uma tendência interna da CUT.
ENTREVISTADOR: Dizem que, em 68, você tinha vergonha de dizer que gostava de jazz. É verdade?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Eu sempre gostei muito de jazz.
ENTREVISTADOR: E você tinha vergonha disso?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Tinha.
ENTREVISTADOR: Não podia gostar de jazz?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Não é que não podia gostar. Na verdade não dava "ibope". E veja só, o Benetazzo, que era o nosso guru nessa época, que conhecia tudo de moderno, que era um dos mais abertos, fez um trabalho mostrando que o Caetano Veloso nada mais fez do que copiar o Jimmy Hendrix.
ENTREVISTADOR: Que trabalho foi esse?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Ele redigiu e apresentou na faculdade e saiu numa revista. Para mostrar que o Tropicalismo era cópia do rock: Jimmy Hendrix, Janis Joplin etc. E na FAU, que era a faculdade mais modernosa, tinha uma luta interna nessa questão de arte. Aí os tropicalistas foram cantar na FAU - o Caetano e companhia. O pessoal jogou ovo e tomate neles. Dentro da esquerda tinha o pessoal que gostava do Caetano, mas como linha predominante era a MPB: Vanzollini, Vandré etc.
ENTREVISTADOR: O Benetazzo, que era um cara "moderno", criticava o tropicalismo como cópia do rock?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: É, para provar a influência do imperialismo na Música Popular Brasileira. O problema dele não era com o Jimmy Hendrix era com os brasileiros que não criavam nada. Daí a necessidade de você lutar contra o colonialismo cultural. Vale a pena lembrar que o nosso programa era antiimperialista. Você tinha que mostrar, portanto, que até nas artes aquilo se refletia. Até naquela música que estava galvanizando a juventude, tinha que se fazer um trabalho político para mostrar a fragilidade do país e criar alternativas.
ENTREVISTADOR: Fazendo um balanço hoje, você acha que existe alguma coisa ainda pela qual vale a pena lutar?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: É uma descoberta recente, dos últimos anos: pela democracia.
ENTREVISTADOR: Você acha que vale a pena morrer por essa causa?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Morrer não, vale a pena viver por ela. Esse negócio de morrer acabou. Eu quero viver. Tem uma frase que ficou famosa na cadeia que exprime muito bem isso: "Ser herói é acidente de trabalho! "
ENTREVISTADOR: Nos últimos anos você foi secretário de finanças da prefeitura de Campinas e assessor da prefeitura de São Bernardo. Atualmente, você é vice-presidente da CMTC. Da guerrilha ao executivo, o que mudou?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Ser executivo em uma empresa pública é diferente de ser diretor de uma empresa particular. Eu fui forjado num processo que, nas palavras de Mao, era para "servir o povo". Só que hoje as coisas são diferentes, fomos derrotados em todos os sentidos. A esquerda foi derrotada não só no Brasil. Temos que renascer, que refazer. O desafio de uma atividade pública é justamente o de concretizar coisas novas. Viver a democracia mais de perto, ser um agente ativo na sua construção. Minha opção de trabalhar na área pública é por essa oportunidade de fazer algo a partir de condições concretas. Não adianta fazer um projeto em cima da fantasia. E o PT, se não conseguir ter um resultado razoavelmente satisfatório em São Paulo, ficará provavelmente no limbo durante muitos anos. Mas, apesar de todas as dificuldades, eu acho que a gente vai conseguir.
ENTREVISTADOR: Você se sentia melhor como guerrilheiro ou como executivo da CMTC?
PAULO DE TARSO VENCESLAU: Olha, eu me sentia muito melhor vivendo toda aquela fantasia dos anos 60, sem dúvida nenhuma. Aquele clima de ser dono da verdade, de que a revolução estava ali na esquina, só dependendo da gente, aquela utopia era muito viva. Se eu pudesse hoje voltar no tempo, provavelmente faria tudo de novo, talvez evitando as mortes dos companheiros queridos. Isso para mim foi muito duro: de repente fui o único sobrevivente do meu grupo. Isso às vezes me incomoda. Até brinco com meus amigos, que estou fazendo hora-extra. E quando você tem a sensação de estar fazendo hora-extra, a vida fica mais interessante.
* Eugênio Bucci é membro do Conselho de Redação de T&D.Ricardo Azevedo é diretor de T&D.
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