FONTE: Jornal do Brasil, 13 de abril de 2008.
Geração 68: os sonhos não envelhecem
Chico Alencar
Aqueles finais dos anos 60 foram um encontro de águas revoltas: a crise do capitalismo, com sua face espoliativa de egoísmo industrializado, e a crise do socialismo real, com sua carranca autoritária, burocrática, de estranha justiça imposta a ferro e fogo, injustamente. Parte de nossa geração – se fosse toda ela, conseguiríamos, de fato, a revolução, “enforcando o último capitalista com as tripas do último stalinista” – viveu os seus dez anos que abalaram o mundo. E cada um chegou às barricadas com seu singular caminho.
O meu foi curioso: católico fervoroso, educado na rigidez dos Irmãos Maristas, fui da nave às sacristias, e dali aos salões paroquiais, onde janelas afinal abertas deixavam entrar os ventos do Concílio Ecumênico Vaticano II, sob as bençãos do humaníssimo João XXIII. Ali descobri, apoiado por dominicanos e franciscanos, que Deus não era um enérgico Supremo Juiz, tomador de conta, a registrar num livro-caixa nossos débitos e haveres... Aprendi, para a vida inteira, que quem ama conhece a Deus, nessa ordem mesmo: é por amor ao próximo que Deus se nos revela. Dali para a leitura da realidade com o instrumental marxista, a ser sempre atualizado, e a Teologia de Libertação, o caminho não foi longo. Ao contrário: além de rápido, foi prazeroso, prenhe de sentido de vida.
A conjuntura nacional – de opressão militar, censura, perseguição, prisão, tortura, exílio e morte – nos forjou como resistentes. Dolorosamente. “Amigos presos, sumidos assim pra nunca mais”. Tudo o que lemos – de Emmanuel Mounier a Gustavo Gutierrez, de Lênin a Caio Prado, de Graciliano Ramos a Drummond – e cantamos – de Chico Buarque a Geraldo Vandré, Ray Charles e Beatles – e proclamamos – da saga de Ganghi e Luther King à de Che Guevara – foi posto à prova. Alguns, mais frágeis (ou sensíveis), refugiaram-se no silêncio, na vida cotidiana de aceitação do imposto, na “normose”. Outros, fortes e determinados, prosseguiram no enfrentamento, em meio a terrores e teimosa esperança. Nossa ideologia, sempre alimentada pela operação intelectual da leitura e dos debates a portas fechadas, corroeu os metais da ditadura. Ela deu suporte teórico e militância prática à eclosão de diversos movimentos sociais – de operários, de camponeses, de donas de casa, de vizinhos associados – que já não eram contidos pelos opressores. Hoje podemos dizer que deixamos este legado maior, do fim do autoritarismo, da abertura das avenidas por onde uma nova sociedade, possível e necessária, pode ser construída. Evoé, jovens à vista!
Mas, se soubemos minar a ditadura, não temos sabido democratizar substantivamente o Brasil, com avanços seguros na redução da desigualdade, da transparência nos assuntos públicos, da negação do poder dissolvente do dinheiro, do controle social dos meios de comunicação de massa, do combate à egolatria do “compro, logo existo”, das políticas universais que cheguem como fruição de direitos inalienáveis das massas empobrecidas. Perdemos a disputa de idéias na sociedade, e o pensamento único hegemoniza corações e mentes. Não temos sabido mostrar que a política não é, necessariamente, o espaço da esperteza, das incoerências, do praticado negando o discursado, jogo pré-estabelecido entre quase iguais, torneio nada olímpico dos “telhados de vidros”, onde ética e virtude são incompatíveis com as necessidades eleitorais. Livres do obscurantismo totalitário, estamos presos às formas convencionais que fazem da nossa pátria o país do PIB claudicante e do PID (Produto Interno do Desencanto) galopante.
Às vezes tudo isso me chega como o grande fracasso da nossa geração, aquela que desatou os nós do regime de 64... E, lágrima não impedindo ver a estrela cadente, enxugamos o rosto para esperar, ainda uma vez, o nascer do Sol, entre as densas brumas da manhã.
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