domingo, 3 de maio de 2009
Leia a íntegra da entrevista com o crítico Luiz Costa Lima
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u558006.shtml
3/05/2009 - 02h35
Leia a íntegra da entrevista com o crítico Luiz Costa Lima
ADRIANO SCHWARTZEspecial para a Folha de S.Paulo
"O Controle do Imaginário & A Afirmação do Romance", o teórico da literatura e colunista da Folha Luiz Costa Lima volta a um dos temas que mais tem trabalhado, desde os anos 1980, quando lançou os volumes que foram recentemente republicados, em uma única edição revista pela editora Topbooks, com o título de "Trilogia do Controle".
Na primeira parte de seu novo livro, estuda principalmente o período do Renascimento italiano --"como o tempo de que parte não só a hostilidade contra o romance como a motivação para ele"--, analisa as variadas formas que assume esse antiquíssimo veto ao ficcional e mostra como Aristóteles discutiu a imaginação em um de seus textos mais enigmáticos, o "De Anima".
Em seguida, na segunda parte, comenta quatro livros "paradigmáticos", relacionando-os com os mecanismos de controle vigentes: "Dom Quixote", de Miguel de Cervantes, "Moll Flanders", de Daniel Defoe, "As Relações Perigosas", de Choderlos de Laclos, e "Tristram Shandy", de Laurence Sterne.
Na entrevista a seguir, ele fala sobre a obra, sobre esses mecanismos pelos quais as sociedades buscam defender seus valores e como, no capitalismo, o controle assume novas feições.
Folha - A dedicatória a tantos amigos mortos recentemente antecipa um estado de espírito que fica evidente na sua nota introdutória bastante desencantada. Faz sentido estudar literatura no Brasil?
Luiz Costa Lima - A situação que você levanta é semelhante à de um homem que descobrisse ser uma embusteira a mulher pela qual está apaixonado (ou vice-versa). Ter consciência do embuste dela não refrearia sua paixão.
Do mesmo modo, saber que o estudo da literatura neste país é uma excrescência, muitas vezes visto como algo prejudicial ao próprio gosto pela literatura (!), é por certo desanimador.
Mas, pensando em termos globais, o que "faz sentido" em um capitalismo que hoje enfatiza o consumo, e não mais a produção?
Na fase anterior, ainda se poderia confundir a presença da graça divina com o êxito no trabalho e, daí, estabelecer-se uma ética calvinista. Agora, apenas faz sentido ganhar muito dinheiro em um mínimo espaço de tempo.
Como os "eleitos" serão muito poucos --os gênios em furtos financeiros, os modelos das passarelas, os astros em algum esporte, as estrelas de Hollywood, os "pais da pátria"--, os milhões restantes hão de escavar dentro de si uma "vocação", ainda que, para os outros, ela não faça o mínimo sentido.
Folha - Uma variação da pergunta anterior, só que de outro ponto de vista. Gostaria que o sr. comentasse a seguinte afirmação, presente no livro: "A obsessão com o problema do controle resulta em que, lateralmente, se visualize um fundo inatingível: o que leva alguém a insistir numa criação que só parece inútil e ociosa?
Costa Lima - A frase procura desindividualizar a sensação de inutilidade dos que não têm uma atividade que "faz sentido". Assim considerando, o estudo das artes e da filosofia é privilegiado. No Ocidente, ser artista ou filósofo sempre "fez sentido" se isso ou aquilo estava a serviço de uma causa (religiosa ou política).
Para ficar com o caso das artes: desde que elas começaram a se autonomizar, entre finais do século 18 e começos do 19, a tendência maciça foi assumirem uma postura crítica quanto aos valores dominantes.
Mesmo antes, entretanto, sob situação ainda mais adversa, elas --sobretudo o que hoje chamamos literatura-- procuraram desdobrar um veio crítico que, se descoberto, poria em risco, no mínimo, a circulação da obra.
Daí a extrema importância que concedo ao que chamo de controle do imaginário. Analisando os mecanismos pelos quais as sociedades procuravam defender seus valores, temos condições de melhor verificar as estratégias dos autores em se desviar da espada virtuosa, o controle.
O exemplo imediato seria o do "Dom Quixote" diante da Contra-Reforma.
Folha -No início do texto, o sr. agradece a colaboração do professor de literatura da USP João Adolfo Hansen. A presença dele ao longo do texto, contudo, é muito mais efetiva (e explícita) do que a do usual leitor prévio de qualquer estudo. Ele se torna uma espécie de interlocutor privilegiado, que é várias vezes nomeado e de quem inclusive as divergências são deixadas evidentes. Gostaria que avaliasse o alcance desse processo colaborativo.
Costa Lima - Considero um privilégio ter como amigo e colaborador uma pessoa com as qualidades intelectuais e éticas de João Adolfo Hansen.
Aos poucos com sua erudição, é frequente que se tornem incapazes de usar a sensibilidade, a intuição, tudo que se afaste da estrita racionalidade.
Ou que convertam a máxima de Carl Schmitt [1888-1985] --o mundo dividido entre amigos e inimigos-- em algo tão estrito que só aceitem os que estão de acordo com eles.
João Adolfo está isento dessas "qualidades". Por isso posso aprender com ele, muitas vezes refinar um argumento porque ele próprio dizia não ver minha argumentação com clareza ou, noutras ocasiões, manter nossa divergência sem prejuízo de nossa colaboração.
Tudo isso já seria louvável por si. No nosso caso, além do mais, João Adolfo me empresta um saber que me é deficiente: o da cultura greco-latina. Quando me decidi estudar literatura, por volta dos 16 para os 17 anos, já perdera a oportunidade de aprender latim. Quando, dez anos depois, poderia pensar em recuperar o latim que desperdicei e o grego que não aprendi, fui cassado pelo regime.
Por cerca de 20 anos, gastei um tempo enorme dando aulas e aulas simplesmente para sobreviver. Quando afinal tive uma situação afetivo-financeiramente equilibrada, tinha um débito intelectual muito grande. Por isso me concentrei naquelas culturas cujas línguas havia aprendido, sempre então me faltando o conhecimento melhor da Antiguidade.
João conhece o que eu conheço e me fornece meios de me aproximar do que ignoro. Já contara, aliás, com sua colaboração em "O Redemunho do Horror" [ed. Planeta].
Folha - Como vê a questão do controle na atualidade? Que autores contemporâneos mais acompanha?
Costa Lima - À medida que o capitalismo avançado restringe seus valores em ganhar dinheiro, o controle também se limita a essa frente.
Assim, uma obra/um autor que sejam extremamente críticos da própria estrutura capitalista podem ser favorecidos caso seu argumento aumente sua capacidade de venda, desde que a sociedade se saiba protegida.
É, por exemplo, frequente nos EUA que "scholars" sejam contratados por universidades com salários excepcionais porque atraem um grande público, sem que esse número prejudique o andamento dos negócios.
Na literatura, a chamada "literatura de testemunho" se integra no caso.
Na pintura, há toda uma tradição cujos polos são o Marcel Duchamp do mictório, exposto como obra escultórica, até os "ready-mades" de Warhol.
São obras que aparentam desafiar o mercado, quando são feitas para o mercado. No caso, o controle se apresenta sob uma forma neutralizada, isto é, os agentes institucionais --críticos, professores, curadores, marchands-- estimulam o que pareceria dever ser controlado porque sabem que a divergência (real ou aparente) estimulará o consumo. A tática da neutralização, nos países periféricos, é bem mais dura.
Por que se edita muito pouca poesia entre nós? Porque os poetas são libertinos ou anarquistas? Dificilmente, mas sim porque vendem muito pouco.
Toda vez que escrevo, que pratico um ato de reflexão teórica, me pergunto se ainda terei editor. Rara vez, atualmente, o controle precisa sair desse círculo estreito: tal produto vende ou não vende?
Quanto a autores da atualidade que valorizo, como o critério de nacionalidade me importa pouco, interesso-me tanto por [Samuel] Beckett ou Philip Roth ou por um poeta como Auden ou o espanhol Antonio Machado --sobre o qual ainda pretendo escrever-- como por Milton Hatoum, que vejo em processo de crescimento, ou por uma jovem poeta, que apenas começo a descobrir, Virna Teixeira.
Folha - Em que está trabalhando atualmente?
Costa Lima - Terminei há alguns meses de responder a um conjunto de perguntas sobre cada um dos livros que escrevi até agora. Pela seriedade de seu organizador, um ex-aluno que começa sua carreira de professor universitário, Dau Bastos, creio que será um livro bastante útil para explicar, em linguagem direta, a razão de certos argumentos teóricos e como concebo o que tenho escrito --adianto que considero que meu primeiro livro apareceu apenas em 1980, o "Mímesis e Modernidade" [ed. Graal].
Tudo o que fiz antes, inclusive minha tese de doutoramento, tão-só fez parte de minha aprendizagem de pensar e escrever. Mais recentemente, tenho trabalhado com um professor da Universidade de Brasília, José Otávio Nogueira, na tradução e organização de uma coletânea de textos só sobre a reflexão contemporânea acerca da mímesis.
José Otávio traduziu um texto de Jean-Pierre Vernant, eu traduzi dois textos do alemão, um de um filósofo ainda muito pouco conhecido no Brasil, Hans Blumenberg [1920-96], outro de um filólogo, Arbogast Schmitt. Pensava ainda em acrescentar um texto com três pontas, sobre a "Teoria Estética" de Adorno, sobre uns poucos textos capitais de Jacques Derrida e sobre a maneira como eu mesmo tenho repensado a questão da mímesis.
Mas o texto ficou demasiado grande e, como discordo de Adorno e Derrida, poderia dar a impressão de que me socorro de dois nomes famosos para ressaltar minha divergência.
Guardei portanto o que fiz para desenvolvimento em outro livro. Nele, só pensarei quando o José Otávio e eu tivermos chegado a um acordo sobre o texto introdutório, que deveremos assinar em conjunto.
Mas antes disso ainda gostaria de reescrever a primeira seção de um livro, "O Redemunho do Horror", relativa à expansão portuguesa pela Índia, que já me parece mais lacunar do que seria tolerável. Se o fizer, terei então de procurar outro editor, pois o primeiro não se mostrou adequado.
Adriano Schwartz é professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
"O Controle do Imaginário & A Afirmação do Romance"Autor: Luiz Costa LimaEditora: Companhia das Letras (tel. 0/ xx/11/ 3707-3500)Quanto: R$ 57 (400 págs.)
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