domingo, 17 de maio de 2009

Commodities por sapatos - Presidente Lula inicia amanhã visita à China tentando reverter um jogo comercial que o Brasil já perdeu

FONTE: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1705200907.htm


São Paulo, domingo, 17 de maio de 2009
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Commodities por sapatos
Presidente Lula inicia amanhã visita à China tentando reverter um jogo comercial que o Brasil já perdeu
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO

COLUNISTA DA FOLHA
O ziguezague desta viagem de Lula, que foi primeiro à Arábia Saudita, em seguida à China (amanhã) e depois à Turquia, sublinha o intento particular da diplomacia brasileira em cada um desses países.A visita a Riad deve ser vista no contexto dos planos sauditas de reconversão da economia do país no longo prazo. Até 2025, a Arábia Saudita pretende mudar sua base econômica, reduzindo a proporção de gás e petróleo -de 72% de suas exportações (em 2004) para 37% (em 2024).Paralelamente, o país conta com a produção de energia nuclear para diminuir a dependência de eletricidade gerada por hidrocarbonetos e ampliar as usinas de dessalinização de água.O objetivo comercial brasileiro visa o plano de desenvolvimento que cria seis novos polos econômicos para reequilibrar o peso de Riad e Jidda, as duas maiores cidades do país.Estradas, portos marítimos, zonas industriais e conglomerados urbanos são construídos em torno desses novos centros.Várias empreiteiras brasileiras estão de olho nestes projetos.No fim de maio, o presidente do Saudi Arabia General Investment Authority, o equivalente saudita do BNDES, vem ao Brasil.No pano de fundo, há o desejo da Arábia Saudita de se afastar da tutela americana, acentuada desde a queda do xá Reza Pahlevi, do Irã, em 1979 -até então, o principal aliado de Washington na região.Depois de viajar de Riad para Pequim, Lula visita a Turquia.Em 1865, quando o imã Abdurrahman al Baghdádi chegou ao Rio de Janeiro vindo de Istambul, houve desfiles militares e salva de canhões para saudar os dois vapores da Marinha otomana que o traziam.Vaticano muçulmanoO imã ficou três anos no Brasil e deixou um interessante relato sobre o islamismo oculto dos negros e escravos brasileiros (Paulo Daniel Farah, "Deleite do Estrangeiro em Tudo o Que É Espantoso e Maravilhoso - Estudo de um Relato de Viagem Bagdali", Biaspla, 2007).Na época, Istambul era o Vaticano dos muçulmanos, e os otomanos e seus imãs dominavam um conglomerado internacional que impressionava o império do Brasil. Depois, o império otomano foi esquartejado. Sobrou a Turquia, entalada na Guerra Fria como aliada privilegiada dos EUA às portas da União Soviética.Acabada a União Soviética, as repúblicas islâmicas do Cáucaso se fizeram independentes, e a Turquia retomou influência na região.A ponto de se falar agora de um neo-otomanismo, praticado por um governo turco que se liga ao Azerbaijão, país-chave do petróleo do mar Cáspio, e marca presença no espaço do antigo império otomano.Ahmed Davutoglu, ativo ministro do exterior turco, se aproxima da Armênia, do Iraque e do Irã, ao mesmo tempo em que promove discretos encontros entre diplomatas sírios e israelenses.Enjeitada pela União Europeia, a Turquia, porém, guarda sua posição estratégica entre o Oriente e o Ocidente. Certa ou errada, a aspiração do Brasil de se posicionar como um dos mediadores da crise no Oriente Médio implica um contato direto com o governo turco.Em todo este périplo, é obviamente a ida do presidente a Pequim, de amanhã a quarta, que terá mais destaque.Quando estabelecem analogias entre a crise de 1929 e a atual, os especialistas sublinham três diferenças que fazem as perspectivas presentes parecerem menos sombrias.A primeira é no plano social: os sistemas nacionais de seguridade criados nas últimas décadas amortecem os efeitos mais nocivos da crise junto da massa dos trabalhadores.A segunda é de natureza bancária, e conduz os Bancos Centrais a refinanciar abundantemente o sistema bancário para amenizar a contração de crédito que transformou a crise financeira de 1929 numa longa depressão econômica.A terceira diferença se refere à geopolítica. Em 1929, a China pesava pouco na economia mundial e no concerto das nações. Hoje, o país aparece como um dos pilares da ordem internacional e é a terceira economia do mundo, atrás dos EUA e do Japão.Além disso, ao contrário dos dois primeiros, ela vem atravessando a crise sem muitos contratempos.Dupla dinâmicaPara muitos, a China se transformou na tábua de salvação do capitalismo. Zbigniew Brzezinski, ex-conselheiro de Segurança Nacional do ex-presidente Jimmy Carter e influente conselheiro de Barack Obama, é mais concreto: para ele, só a China pode ajudar a conter o declínio da hegemonia mundial norte-americana.Tal é a leitura que pode ser feita do artigo que ele publicou no "Financial Times" (em 13/ 1/2009).No texto, resumo de uma conferência feita em Pequim, Brzezinski propõe a criação de um G2, formado pela dupla dinâmica EUA-China, que cuidaria de pôr as coisas em ordem. Tanto nos contenciosos mais urgentes, caso da Coreia do Norte e do Irã, quanto na questão da proliferação nuclear ou do efeito estufa. Brzezinski pensa que o espírito conciliador de Obama casa perfeitamente com o conceito de "mundo harmonioso" propalado pelo presidente Hu Jintao.Acessoriamente, ele admite que o G8 deveria se transformar em um G14 ou G16 para melhor compartilhar as responsabilidades mundiais.Como apontaram alguns analistas, Brzezinski subentende um status quo onde a preponderância americana deixaria de ser desafiada pelo expansionismo diplomático e econômico chinês. Algo que a diplomacia brasileira conhece de perto, sobretudo na África, e em particular em Angola.Maior credora do Tesouro americano, cortejada pelo mundo inteiro, a China pode dar tempo ao tempo. Isso se aplica também às suas relações comerciais com o Brasil, atadas a um anel de ferro em que as commodities brasileiras são trocadas por manufaturados chineses.Nesse sentido, o fato de que a China tenha se tornado a maior parceira comercial do Brasil não muda grande coisa. Já perdemos esse jogo antes. A China também. Só que agora ela é a dona da bola.
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO é historiador e professor na Universidade de Paris 4. É autor de "O Trato dos Viventes" (Companhia das Letras) e edita o blog
sequenciasparisienses.blogspot.com. Escreve regularmente no Mais!.

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