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Proletarização estudantil e universidade: que têm os movimentos sociais a ver com isso?
(Fala no Congresso de Estudantes da UEFS, 17-03-2008)
Manoel Nascimento trabalha no Centro de Estudos e Ação Social - CEAS com assessoria a movimentos sociais urbanos e é militante do Movimento Passe Livre - MPL
1. Apresentação da fala
O tema desta fala é bem complexo: universidade e movimentos sociais. Tendo como companheira de mesa uma candidata ao ANDES, creio que qualquer fala minha seria extremamente redundante.
Resolvi, então, atirar para outro lado e focar minha fala num aspecto pouco discutido desta relação, e que tem a ver com a maioria dos presentes neste auditório. Afinal, num momento em que o estudante universitário é proletarizado nos estágios; em que seus primeiros empregos são geralmente nos setores mais precarizados da economia (atendentes da Oi, vendedores de McDonald's, vendedores de qualquer loja furreca do Iguatemi, ou mesmo aquelas figuras chatas que ficam atrás da gente querendo nos cadastrar em mais um cartão de crédito ou nos empurrar mais um empréstimo); em que suas futuras profissões são progressivamente degradadas; por que, no meio desse furacão, os estudantes ainda pensam que os movimentos sociais estão fora da universidade? Eles mesmos, a partir de seu reconhecimento enquanto jovens proletarizados, e tendo como base o fortalecimento de suas próprias lutas a partir de seu próprio lugar na divisão social do trabalho, não seriam capazes de formar um dos mais fortes movimentos sociais de que já se teve notícia?
A universidade está em crise. Isso acontece porque a sociedade inteira está em crise, e a universidade apenas a reflete. A juventude percebe esta crise porque é através dela que os jovens detectam as contradições mais profundas da sociedade, refletidas na universidade. A universidade não é algo essencial como a linguagem; ela é simplesmente uma instituição dominante, ligada à dominação. Não é uma instituição neutra; é uma instituição de classe, onde as contradições de classe aparecem. Para passar a régua nisso tudo é que dentro dela se desenvolve uma ideologia do saber neutro, científico, a neutralidade cultural e o mito de um saber "objetivo", acima das contradições sociais.
O que se pretende aqui é apresentar a universidade pela perspectiva não dos movimentos sociais, que certamente será abordada por outros companheiros, mas pela perspectiva da reprodução social sob o capitalismo. Tentarei demonstrar os seguintes pontos, alguns deles bastante polêmicos, através de algumas provocações:
a) A universidade foi criada para fortalecer um dos pólos da luta de classes na Idade Média, depois segue tendo a mesma missão na Idade Moderna, e na contemporaneidade é meramente uma formadora de mão-de-obra qualificada – ou seja, uma fábrica de peões com anel de doutor.
b) A universidade perde lugar, progressivamente, para centros tecnológicos empresariais na formação de tecnologia de ponta, e as poucas universidades responsáveis pela produção de tal tecnologia já se encontravam privatizadas por dentro muito antes da Lei de Inovação Tecnológica – ou seja, a universidade pública já é privada há décadas, mas, por ser estatal, ainda é vista como pública.
c) A modificação dos currículos ostensivos é importante para a transformação social, mas praticamente irrisória diante da permanência dos currículos ocultos – ou seja, na perspectiva de uma mudança social radical, o que se ensina não é tão importante quanto o modo como se ensina.
d) O movimento estudantil cria uma miragem quando se lança de cabeça ao apoio aos movimentos sociais sem lutar contra a proletarização progressiva do estudante universitário – ou seja, o movimento estudantil ainda não consegue localizar o lugar do estudante universitário no modo de produção capitalista, e tem preferido reforçar a luta daqueles cujo lugar no modo de produção já é conhecido a criar novas crises no sistema a partir de seu próprio lugar na produção.
e) A universidade é uma instituição conservadora, é um instrumento da reprodução social do capital tão-somente, apesar de exceções que confirmam a regra; precisa-se é construir novas formas de produção de conhecimento em conjunto com os movimentos sociais, das quais existem inúmeras experiências históricas.
2. Reprodução social sob o capitalismo. Conceito.
O capital não é um conjunto de fábricas, nem um bolo de dinheiro depositado num banco ou enfiado embaixo do colchão da vovó, nem um armazém cheio de produtos, nem muito menos um monte de títulos de terra transformados em janta de traças em alguma gaveta. O capital é uma relação social mediada por mercadorias. É uma forma de relacionamento entre pessoas que só acontece por intermédio de mercadorias, produzidas através de relações de produção onde vigoram o assalariamento e a extorsão de mais-valia.
Isso não significa que todas as relações sociais aconteçam por intermédio de mercadorias, mas que as mais importantes só se dão tendo a mercadoria como intermediária entre as pessoas. Por exemplo, em casa você se relaciona com sua família sem precisar se mercadoria alguma para isso, mas como ninguém sobrevive sem comida isso significa que é preciso comprar comida num mercado – e a comida é mercadoria quando conseguida desta forma. Para ter dinheiro e poder comprar comida é preciso trabalhar, ou seja, no caso dos assalariados (maioria da população), vender a própria força de trabalho – uma mercadoria – em troca de dinheiro, para trocar este dinheiro por mais mercadoria. Basta analisar cada relação social que você tem em cada dia e observar quantas delas só acontecem quando a mercadoria entra na jogada.
O capital não se sustenta por si só: prossegue existindo graças a mecanismos de reprodução. Até uma criança sabe que se uma formação social não reproduz suas condições de produção ao mesmo tempo em que produz seus produtos, ela não sobrevive um ano que seja. Muito esquematicamente, as classes capitalistas conseguem reproduzir o capital – ou seja, expandir a produção de mercadorias através do assalariamento e da extorsão de mais-valia – principalmente em duas situações.
A primeira: quando aumentam a quantidade de pessoas que se vê obrigada a assalariar-se para sobreviver, e os meios são bem conhecidos: violência, fraude, saque, extermínio, tudo o que for necessário para tirar os meios de produção daqueles que antes o utilizavam, e para evitar qualquer forma extra-capitalista de sobrevivência ou reprodução social. Sem isso, não há como tornar mais pessoas dependentes do assalariamento, e, portanto, submissas ao capital. Um camponês cuja família tem uma horta de fundo de quintal para sua própria subsistência, por exemplo, não precisa ir ao mercado para comprar comida. Mas mesmo assim, se não consegue trabalhar com fertilizantes orgânicos, precisará ir ao mercado para comprar adubo químico. Quanto mais ele necessita de mercadorias para sobreviver, mais se submete à lógica do capital, e mais tende a, no futuro, se assalariar. Há outros exemplos, mas este é o que me veio primeiro á cabeça. A isto se convencionou chamar reprodução extensiva.
Na impossibilidade de aumentar a quantidade de assalariados, ou quando há pouquíssimos lugares onde haja produção sem assalariamento ou extorsão de mais-valia, as classes capitalistas aumentam a exploração dos assalariados já existentes, seja aumentando o tempo em que estão à sua disposição, seja investindo em tecnologia para que se produza mais em menos tempo. Basta lembrar dos controles que existem em qualquer centro de atendimento da Oi: horário regulado para ir ao sanitário (não dá nem pra mijar), controle rigoroso de ponto, supervisão de cada ligação recebida (volta e meia uma vozinha fala nos fones de ouvido para lembrar que cada ligação é monitorada). E já que falei em sanitários, basta lembrar da história da Carrefour, que iria impor a seus caixas que usassem fraldas geriátricas para mantê-los no lugar por mais tempo poupando os poucos minutos de necessidades fisiológicas a que tinham direito por dia. A isto se chama reprodução intensiva.
Historicamente, a reprodução extensiva tem encontrado limites sérios, pois quase não há mais espaços para onde expandir as relações de assalariamento; quase toda a produção econômica global é feita através de relações capitalistas de produção. Mesmo aquelas comunidades mais remotas mantém alguma forma de contato mercantil com o modo capitalista global de produção, e não escapam da necessidade de conseguir dinheiro de alguma forma – e, assim, sua produção é inserida de alguma forma (venda de produtos, trabalho assalariado a tempo parcial etc.) em relações capitalistas de produção.
Vivemos agora um momento de intensificação da reprodução intensiva do capital. Os ramos mais produtivos da economia dependem cada vez mais intensamente da tecnologia. Se hoje, por exemplo, o Bradesco, o Itaú e outros bancos batem recordes atrás de recordes de lucros, isto é apenas um reflexo de uma fase onde o capital financeiro domina o cenário; este domínio não poderia acontecer sem a tecnologia de automação (caixas-rápidos, pagamento de contas através de leitura ótica etc.) e comunicação (internet banking, sistemas informáticos de comunicação interna – o "sistema" que está sempre "fora do ar" quando temos pressa – tele-atendimento através de call centers etc.) que o sustentasse. De igual maneira, a indústria automobilística chegou aonde está graças à robótica, à informática etc. Vale o mesmo para a logística, para os transportes públicos (que dependem cada vez mais da bilhetagem eletrônica, dos tacógrafos etc.), para os controles de estoque... O capitalismo depende cada vez mais da tecnologia para se reproduzir, pois a sua principal forma de reprodução hoje é a reprodução intensiva; a sobrevivência do capitalismo depende, portanto, da inovação tecnológica constante.
Guardem essa informação, porque vamos dar uma pausa para falar de currículo.
3. Currículo ostensivo e currículo oculto. Conceito.
Currículo ostensivo é o que se ensina: cálculo, embargos de declaração, anamnese, taxonomia, resistência de materiais, contabilidade de custos, modelo atômico de Rutherford-Bohr etc. Currículo oculto é o modo através do qual se ensina: aula expositiva, debate, seminário, experiências de campo, trabalhos de laboratório etc. Nisto se contém, de igual maneira, as atitudes de quem ensina e de quem aprende no processo de aprendizagem: se é uma atitude de recepção passiva por parte de quem aprende (o que Paulo Freire chamava de concepção bancária do ensino), se é uma atitude ativa por parte de quem aprende, se é uma atitude autoritária por parte de quem ensina, se é uma atitude compassiva por parte de quem ensina, se há maior ou menor autonomia por parte de quem aprende etc. Enquanto o primeiro reúne os conteúdos a serem transmitidos de quem ensina a quem aprende, o segundo reúne os habitus necessários para o bom exercício da profissão. Quando falo habitus é no sentido físico, corpóreo, que reflete no psicológico: um modo de se vestir, determinadas mesuras, o puxa-saquismo e a bajulação de professores, a autonomia em sala, tudo isso são fatores determinantes na conduta de vida futura de quem estuda.
Neste ponto, devo apresentar ao companheiro do ANDES uma crítica fraterna, pois sabemos que os sindicatos filiados ao ANDES têm contribuído muito – às vezes até financeiramente – com certas lutas estudantis mais avançadas.
Até agora, de uma maneira deliberada, consciente e sistemática, aqueles mesmos professores que pretendem reforçar a solidariedade e derrubar as hierarquias capitalistas no âmbito da sua profissão têm-se esforçado por conservar os alunos numa estrita situação de disciplina e de obediência. É claro que tudo nas escolas, como aliás em quaisquer empresas, pressiona neste sentido, mesmo a arquitetura e a disposição das salas de aula, que coloca o professor no lugar de destaque, para onde convergem os olhares. O problema é que até durante as lutas, quando eles próprios violam a disciplina da instituição escolar, os professores não esquecem das exigências disciplinares relativamente aos alunos. E assim, na medida em que as pautas de suas greves se restringem às mais que justas reivindicações salariais (incorporação de gratificações de produtividade nos salários etc.) e não põem em cheque esta mesma disciplina de sala de aula, os docentes têm mantido indisputada a sua posição hierárquica numa das áreas mais importantes da sociedade capitalista.
Os professores ficam entalados entre o Estado ou os donos das escolas, por um lado, e, por outro, os estudantes. E para muitos professores os estudantes são uma ameaça bem pior do que o Estado ou os patrões privados, já que estes, se pagam mal, pelo menos os reforçam na autoridade, enquanto os alunos são um perigo permanente para a hierarquia e para a disciplina. Qualquer manifestação de protesto por parte de alunos que inclua atos de indisciplina ou vexames feitos a autoridades acadêmicas são vistos com indignação pela esmagadora maioria dos professores, se bem que estes atos não atinjam os professores pessoalmente, mas em razão da função que exercem; e mesmo as autoridades acadêmicas, quando são visadas, são-no somente em virtude das funções que exercem, não enquanto membros comuns do corpo docente. Para ilustrar tal situação, basta lembrar de uma cena de 02 de agosto de 2005: estudantes da UNESP-Franca aproveitaram uma visita do reitor Marcos Marcari para vomitar e cagar em sua frente – representando, respectivamente, a náusea por estudar num campus degradado e um sinônimo da qualidade de suas aulas – além de entregar-lhe coquetéis molotov para que partisse, ele mesmo, reitor, finalizasse a destruição do campus Franca, que já se iniciara há muito. Resultado: expulsão dos sete estudantes envolvidos no dia 12 de novembro de 2005, quase que num rito sumário, com aprovação dos professores mais progressistas do campus, que acham o conteúdo da manifestação válido, mas equivocado na forma. É certo que há outras histórias semelhantes espalhadas pelas universidades do mundo inteiro, mesmo quando a ação não é tão irreverente e nem suas conseqüências tão dramáticas.
Ao mesmo tempo que manifestam a sua hostilidade às formas de contestação especificamente estudantis ou, no melhor dos casos, que ficam indiferentes perante elas, os professores esquecem-se de que com uma simples greve atingem os interesses materiais da totalidade dos estudantes. Apesar disso acusam os estudantes de atraso político quando estes reclamam da suspensão das aulas.
4. Universidade. Surgimento e desenvolvimento.
Mas isso é porque o respeito, a decência e a compostura fazem parte dos trejeitos que devem ser ensinados aos estudantes nas universidades. Afinal, a universidade surge para formar burocratas na Idade Média, e sua função não mudou uma vírgula em mais de mil anos. E onde já se viu um burocrata desobediente, um barnabé insolente com seus superiores, um pacheco que mete o dedo na cara do chefe?
Dizer que a universidade tal como a conhecemos surge na Idade Média européia com a Universidade de Bolonha em 1088 não passa de reprodução de preconceitos eurocêntricos. Há instituições semelhantes e muito mais antigas que ela em diversas partes do globo. O centro de estudos de Taxila (Índia), que funcionou entre os séculos V a.C. até III d.C.; o centro de formação de Nalanda, em Bihar (Índia) foi fundado no século V a.C.; a Universidade Al-Karaouine, ainda em atividade, foi fundada no Marrocos, em 859; a Universidade Al-Azhar, ainda ativa no Egito, em 975. A Academia Imperial do Vietnã foi fundada em 1076 para formar burocratas, e assim o fez até 1779, graduando 2.313 doutores; a Guozijan (Escola dos Filhos do Estado) foi fundada no século III para fazer o mesmo, assim como Academia Hanlin na China (século VIII), a Universidade de Constantinopla (século IX). O exemplo foi seguido pelo papa Gregório VII nas reformas que introduziu nos monastérios entre 1050 e 1080: agora incluía-se nos currículos o direito canônico, a contabilidade e outras matérias bem práticas, para que os clérigos pudessem administrar a estrutura burocrática da igreja.
Uma vez que é deste caldo que a Universidade de Bolonha tira suas origens, é fácil de entender porque a universidade foi formada para criar quadros para a administração burocrática. Não é sua origem mais imediata – que é a de grupos de estudantes organizados como uma guilda – mas é seu desenvolvimento mais certo nos séculos que se seguiram: a Universidade de Paris (1160), a Universidade de Oxford (1167), a Universidade de Cambridge (1209), a Universidade de Monpellier (1220), a Universidade de Pádua (1222), a Universidade de Orleans (1235), a Universitas Carolinus Pragensis (Praga, 1348), a Universidade de Colônia (Colônia, 1388), a Universidade de Erfurt (1392)... Entre 1200 e 1400 foram fundadas 52 universidades na Europa; 29 delas por papas e 21 por reis e imperadores.
A universidade era então uma congregação internacional de burocratas: sua licença para funcionar era dada por uma autoridade internacional (a Igreja); suas aulas eram dadas na língua franca de então (o latim) a partir de livros em latim, árabe e grego; seus professores vinham de todas as partes da Europa, assim como seus alunos; aquelas que recebiam o título de studium generale eram tidas como as mais importantes, e seus professores eram estimulados a dar cursos em outras universidades, além de receberem permissão para divulgar seus escritos. (Daí a origem das revistas e artigos que hoje conhecemos, responsáveis pela síndrome do publique ou morra que grassa nas universidades de hoje.)
As universidades se transformaram na terceira maior força da Idade Média (studium), ao lado da Igreja (sacerdotum) e dos senhores feudais (imperium, regnum). As crises políticas em que os estudantes e professores se envolveram a partir das universidades demonstra que não nasceram como território neutro. Era a época da Reforma Gregoriana, vã tentativa de criação de uma teocracia cristã entre 1049 e 1245, na qual a luta entre clero e senhores feudais resultou em assassinatos, perseguições e excomunhões a torto e a direito.
Mas para onde iam estes burocratas? Para os burgos, que então inauguravam a luta pela sua libertação. Para os castelos, onde serviam aos senhores feudais. Para Roma e para as principais cidades da Igreja, onde serviam aos interesses do clero. Os recém-formados serviam tanto à Igreja quanto aos senhores feudais e aos burgueses, que então nasciam enquanto classe, em suas atribuições burocráticas. Inaugurava-se assim uma característica dos gestores: enquanto classe, historicamente, serviram aos interesses de muitas classes diferentes até que surgisse a oportunidade histórica de assegurar-se no poder com as Segunda e Terceira Revoluções Industriais, ao se enfiarem definitivamente no processo de produção econômica. O que há, aqui, são proto-gestores, confinados ainda à administração feudal e, posteriormente, estatal, sem maior influência sobre a proteção econômica.
Mesmo a partir do novo modelo laico inaugurado pela Universidade de Berlim (1810) a função prosseguiria. A maior liberdade interna garantida no modelo humboldtiano de universidade não significou de forma alguma mudanças na função da universidade; o aumento ou diminuição das liberdades internas a uma classe de opressores não significa que estes opressores parem de oprimir; os engenheiros ainda serviam como capatazes nas novas fábricas, os juristas ainda serviam aos interesses da burguesia e dos restos de aristocracia etc. A partir da substituição da universidade de elite dos séculos anteriores pela universidade de massas do século XX, o que há, nada mais nada menos, é a adaptação da universidade à sua função mais específica dentro da fase atual do capitalismo.
5. A universidade na fase atual do capitalismo.
O título acadêmico era, como ainda é, o passaporte que permite o ingresso nos escalões superiores da sociedade: a grande empresa, o grupo militar e a burocracia estatal. Numa sociedade baseada na miséria de milhões, quem não quer subir na vida?
Se o capitalismo, em sua fase atual, depende de tecnologia de ponta para a produção, para a intensificação do processo de trabalho e da disciplina de fábrica, e para a reprodução de relações de exploração, é na universidade que tais ferramentas tecnológicas foram criadas durante muito tempo, e é nelas onde ainda se cria tais ferramentas. Seja nas universidades mais destacadas, seja naquelas que simplesmente adaptam a realidades locais tecnologias criadas por outras, a universidade ainda é um lugar privilegiado de criação de tecnologia. Ocorre que a produção econômica precisa de operadores para esta nova tecnologia. Não seria uma mão-de-obra com baixa qualificação que lidaria com as engenhocas de uma fábrica com esteira de produção mecanizada, ou com os defeitos de uma máquina mais complexa. Com o advento da Terceira Revolução Industrial, os laboratórios químicos cessam de ser claustros de eremitas para se tornar ambientes complexas de produção. As profissões universitárias, assim, são proletarizadas ao serem incorporadas como parte subalterna no modo de produção capitalista.
Mas há novidades no cenário além da proletarização. Os empresários e gestores dos grandes conglomerados monopolistas, principais demandantes da inovação tecnológica, precisavam de uma produção de tecnologia mais especificamente voltada para suas necessidades produtivas, e não de uma "ciência pura" que viesse depois a ser aplicada em tais ramos. De igual maneira, certos ares de independência dos acadêmicos, conquistados na luta de classes da Idade Média através de isenções e garantias (cujo resquício se vê, ainda hoje, na cela especial garantida a universitários) , não batiam bem com a disciplina de empresa. Solução? Criar centros de pesquisa internos às empresas. Já em 1930 o nylon foi criado não nos laboratórios de universidade, mas num centro de pesquisa da DuPont; o PalmPilot surge de pesquisadores contratados pela Apple;
Outro problema é o das universidades corporativas, como as criadas pelo Banco do Brasil, Companhia Vale do Rio Doce e Caixa Econômica Federal: programas educacionais e de treinamento criados por uma empresa privada, criados para oferecer cursos técnicos específicos para os colaboradores da corporação. Assim a empresa customiza os cursos exatamente de acordo com suas políticas e estratégias, reduz custos do treinamento convencional e obtém rapidez na formação da mão de obra. Fácil como adestrar cachorros, e com menos custo.
Num país como o Brasil – e aliás na esmagadora maioria dos países – é muito duvidoso que existam ainda estabelecimentos de ensino superior dedicados exclusivamente à formação das classes dominantes. As elites enviam os seus filhos e as suas filhas para escolas secundárias na Suíça e colocam-nos depois em meia dúzia de faculdades de administração localizadas nos Estados Unidos ou em França. Todo o resto, e quaisquer que sejam as ilusões de professores e de alunos, se destina a formar força de trabalho qualificada, ou pretensamente qualificada.
Se os professores quisessem contestar seriamente os mecanismos do capital aproveitar-se- iam do lugar estratégico que ocupam, e nas suas greves, em vez de se limitarem a não dar aulas, dariam aulas ao contrário, alterando não só o conteúdo do ensino mas sobretudo invertendo as hierarquias, abolindo a disciplina, realmente sabotando um dos aspectos básicos das relações sociais capitalistas. Alcançaríamos deste modo uma solidariedade entre os produtores de trabalhadores e os trabalhadores produzidos.
Apesar disso tudo, é a universidade, hoje, quem forma mão-de-obra qualificada. Ao menos esta função lhe foi permitida. É nela que se formam os futuros gerentes e supervisores que irão botar pra lascar com o peão em qualquer trabalho. É nela que se formam os pesquisadores que deformarão dados econômicos para favorecer os capitalistas contra os trabalhadores. É nela que se formam os médicos, enfermeiros e farmacêuticos que preferem trabalhar nas doenças cuja cura depende de remédios caríssimos, ao invés de trabalhar a medicina preventiva ou tratar de doenças que atacam o povo com maior freqüência.
6. Proletarização do estudante universitário. Conceito e exemplos.
No processo de transformação de uma universidade de elite para uma universidade de massas, temos opiniões pra tudo quanto é lado sobre a proletarização dos professores universitários, mas quase nada se fala sobre a proletarização dos estudantes universitários. Se o currículo oculto, aqui, tem como função enfiar na cabeça dos estudantes os valores, sentimentos e expectativas profissionais, além de certos comportamentos ditos responsáveis nos meios profissionais, é o mesmo receio do profissional de nível universitário quanto à sua proletarização – atualmente, inegável – que se transmite ao estudante, e ele prefere crer que os constantes apertos financeiros e as humilhações pelas quais passa são fases preliminares para um futuro de glórias, ao invés de um processo imediato de proletarização que antecipa a proletarização futura.
Na prática, o estudante universitário de hoje realiza tarefas de profissionais já diplomados, mas recebe salário de estagiário. Exemplos não faltam. É o estagiário de direito quem escreve quase todas as petições de um escritório de advocacia, enquanto o advogado só as assina e se relaciona com os clientes. É perfeitamente possível encontrar estagiários de medicina ou enfermagem responsabilizados por todos os pacientes de um andar de um hospital, quando tal responsabilidade seria de um médico. Em empresas do Pólo Petroquímico, são raros os estágios com jornada de trabalho menor que 8h diárias – uma jornada de trabalhador formado. Quem tiver mais exemplos pode preencher o quadro.
7. Movimentos sociais e universidade
É neste cenário que o movimento estudantil procura se ligar aos movimentos sociais, ou, mais especificamente, aos movimentos de luta pela terra, seja ela rural ou urbana. Há um movimento de ida ao povo bastante semelhante – para permanecer no tom polêmico – ao dos narodniki russos do século XIX: vai-se ao povo em busca de uma revolução que não leva em conta a sua própria participação, a partir de seu próprio lugar na produção e na divisão social do trabalho.
A universidade é um espaço em disputa? Sim, como qualquer instituição numa sociedade cujo motor do desenvolvimento é a luta de classes. Mesmo o Estado, perdido para a luta anticapitalista como é, vive em disputa por parte da burguesia ou dos gestores, e mesmo por frações internas de cada classe dessas. Mas a existência de disputas não diz nada quanto àquilo que se disputa: no caso da universidade, trata-se de um espaço que reivindica para si, e somente para si, uma produção de conhecimento e tecnologia que se produz a todo tempo em diversos outros espaços e instituições sociais. Se buscamos uma sociedade que preze pela autonomia, como permitir essa forma de alienação do conhecimento?
Estaria mentindo se dissesse que tal ida ao povo não resulta em práticas gratificantes: os estágios de vivência organizados pela FEAB, a aproximação da DENEM com o MST, a organização dos cursos Realidade Brasileira e Realidade Latino-Americana em várias universidades em conjunto com movimentos sociais, os cursos de extensão mais variados, os acampamentos de juventude... Apesar disso tudo, o que se forma na universidade ainda são os mesmos gestores que, enquanto classe que disputa o domínio da sociedade com os burgueses, apóiam-se nos trabalhadores para romper a hegemonia burguesa. Afinal, os estudantes que participam de cada experiência dessas podem se formar como profissionais simpáticos ao movimento, mas sempre que se precisar de conhecimento, de produção de tecnologia, de gestão das tecnologias produzidas, ainda é a eles que os movimentos se voltarão.
Os movimentos populares anticapitalistas, os movimentos de luta pela terra, os movimentos que lutam contra a opressão e exploração, certamente podem encontrar na universidade um espaço que os legitime frente a um público que os vê como demônios, como destruidores, graças à construção da opinião pública feita pela mídia; mas ao tomar a universidade de forma um tanto quanto neutra, e ao depositar nela as esperanças de formação técnica de novos quadros para si mesmos, corre o risco de reforçar uma instituição talhada historicamente para destruí-los.
8. Experiências de produção de conhecimento pelos movimentos sociais
Estou dizendo que os movimentos populares devem cultivar a ignorância, o analfabetismo, o primitivismo e o ludismo? Não. Seria estupidez, na luta de classes, que os movimentos sociais não se apropriassem de toda a herança tecnológica e científica já produzida para inverter seu sentido e colocá-la a seu serviço. Digo, como disse antes, que o modo pelo qual se ensina é tão importante quanto o conteúdo que se ensina. Se queremos, de fato, botar um ponto final no histórico de opressão e exploração que justifica a luta dos movimentos populares, é preciso mudarmos também as instituições que reforçamos no processo de luta. É preciso buscarmos novas formas de produzir e transmitir conhecimento, e se não existem, é preciso inventá-las.
Parece maluquice, mas o que se diz aqui não é novo; é fruto da experiência histórica das lutas anticapitalistas: os trabalhadores desenvolvem formas novas de produção de conhecimento contrárias à forma hegemônica, cujo resultado é apenas a submissão à ideologia dominante. Estas formas novas de produção de conhecimento contribuem para a construção de um novo modo de produção, ao romper com as instituições responsáveis pela reprodução social do capital.
Durante todo o período que vai de 1807 até mais ou menos 1840, os escravos muçulmanos organizaram secretamente levantes, e mesmo a famosa Revolta dos Malês, em Salvador, em 1835. A base de tal organização acontecia não somente no boca-a-boca, mas também graças aos escritos de mestres muçulmanos como Dandará, Luís Sanim, Ahuna, Pacífico Licutan, Manoel Calafate, Huguby e outros. A escrita e a cultura islâmica serviram como inspiração e meio de difusão das idéias de liberdade e de uma nova civilização desejada pelos haussá, nagô e iorubá muçulmanos, conhecidos como malês. Aliás, os escravos desta época conheciam bem a história da revolução escrava em Santo Domingo, que levou os negros ao poder em.
No fim do século XIX teve início outra experiência semelhante, desta vez por parte dos primeiros socialistas que apareceram no Brasil: as escolas operárias, que existiram entre 1895 e 1900, visavam à alfabetização do proletariado de então. Sua curta duração serviu como fermento para a criação de inúmeras bibliotecas populares, onde se lia desde jornais diários a livros de Marx, Bakunin, Spengler, Comte e tratados técnicos.
Destas bibliotecas populares surgiram os centros de cultura social, impulsionados principalmente pelos anarquistas entre 1900 e 1927. Eram casas onde os operários se reuniam para acessar as bibliotecas populares; para elaborar e participar de cursos de alfabetização, ou profissionalizantes , ou artísticos e vários outros; para assistir a peças de teatro elaboradas, produzidas, representadas e dirigidas pelos próprios trabalhadores, como O Infanticídio (1907), de Mota Assunção, O Semeador, de Avelino Fóscolo, e Operários em greve; para divulgar seus livros; para organizar as comemorações do Primeiro de Maio... Enfim, uma cultura operária que se fazia. Destes centros de cultura social surgiu a efêmera universidade popular, iniciativa de intelectuais ligados ao movimento anarquista que não durou mais que alguns meses.
Mas a principal experiência deste período são as escolas modernas, criadas por alguns professores entre 1904 e 1927 para a educação dos filhos dos operários, que recusavam colocar suas crianças para estudar em escolas do Estado ou da Igreja. A experiência começou em São Paulo e se alastrou por todo o país, sendo a primeira instituição escolar a evitar o ensino religioso, focar-se no ensino técnico e a ter aulas mistas, com meninos e meninas nas mesmas salas. Influenciou mesmo a corrente escolanovista que seria responsável por reformas no ensino público durante a era Vargas.
Para ficar em tempos mais recentes, temos o movimento negro organizando os pré-vestibulares de periferia que proliferam nas grandes cidades. Nestas mesmas cidades temos experiências de bibliotecas populares e bibliotecas itinerantes. E, evidentemente, temos a experiência da Escola Nacional Florestan Fernandes, a mais avançada experinccia de construção de conhecimento a partir dos movimentos populares no Brasil recente.
9. Conclusão
Todas estas experiências são tentativas de construir outras instituições para transmissão de conhecimento e criação de tecnologia que não se limite a isso, mas questione também a submissão à ideologia dominante, a disciplina e a hierarquia capitalistas. E isto não se constrói para os movimentos sociais, como qualquer atividade centrada na universidade, mas com os movimentos sociais, e a partir de suas próprias iniciativas. Os estudantes podem colaborar com tal construção, mas, diferentemente dos cursos de extensão ou dos meros contatos militantes, ela só será eficaz quando se fizer em conjunto com a luta contra a sua própria exploração, contra a sua própria proletarização. É neste caminho de lutas conjuntas que se pode apontar novas perspectivas de produção científica, tecnológica e institucional.
Um comentário:
Muito importante a preocupação do texto. Não podemos ceder!!!
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