sábado, 5 de abril de 2008

Depoimento de Lícia Barros Gonçalves

FONTE: Livro Repúblicas de Ouro Preto e Mariana: Trajetórias e Importância. Recife: Proenge, 2007. (Formato Eletrônico)

A Fundação da Tanto Faz: um caso de ocupação recente em Ouro Preto
Lícia Barros Gonçalves

A Tanto Faz é o resultado de uma batalha que uniu os estudantes em torno de um objetivo. Foi uma luta e uma conquista de todos os estudantes, pois se não fosse a força da nossa união, com certeza esta república não existiria hoje.
A “invasão” da casa onde atualmente é a república Tanto Faz ocorreu no início de 1987, época em que o Brasil (para variar) estava em recessão e vários planos econômicos tinham sido malsucedidos.
Em Ouro Preto, a Universidade estava em greve. Os professores e funcionários haviam parado e nós, estudantes, lutávamos por uma universidade “pública e gratuita”, melhores condições para todos, mais verba para as universidades federais, mais transporte universitário, mais moradia estudantil...
Era realmente necessário mais moradia estudantil; havia muitas meninas sem ter onde morar pois a maioria das repúblicas da universidade eram exclusivamente masculinas e de engenharia. As repúblicas femininas ou mistas existentes eram na sua maioria particulares e muitas estavam sendo despejadas.
Neste contexto, formou-se uma “comissão de moradia”, que se reunia semanalmente, buscando soluções para o problema que muitos estudantes (principalmente mulheres) estavam enfrentando: falta de república.
Queríamos conseguir mais casas, que fossem abertas a todos os estudantes, independente do sexo ou do curso.
Durante as negociações com a reitoria da Universidade para que esta alugasse algumas casas para os estudantes, não me lembro bem como, ficamos sabendo da existência de uma “casa de hóspedes” da própria universidade, que recebia “hóspedes” somente uma vez por ano ou nem isso. Conversamos com o reitor, tentando em vão consegui-la pacificamente para que se tornasse república estudantil. Revoltados pelo fato da reitoria manter a tal casa fechada e não querer cedê-la, decidimos que a solução seria invadir a casa e torná-la república.
Marcamos uma nova reunião na Reitoria, para a qual convidamos todos os estudantes de todas as repúblicas. Em vão! Após esta reunião, fizemos uma assembléia estudantil e decidimos nos dirigir à casa de hóspedes, a poucos metros da própria reitoria. Havia centenas de estudantes, de diversas repúblicas, diversos cursos, unidos com um mesmo objetivo: conseguir a qualquer preço uma nova república.
O mais bonito neste movimento foi ver todos os estudantes unidos por um objetivo. Havia muita gente, representantes de todas as repúblicas, nativos, amigos, amigos dos amigos, etc.
Cheios de coragem e movidos por um grande idealismo, chegamos até a casa. Como a “união faz a força”, bastou um pontapé para que a porta fosse aberta. Primeiramente, só entraram na casa alguns membros da Comissão de Moradia, pois havia bens e móveis pertencentes à universidade que precisavam ser catalogados à fim de que nada sumisse e ninguém pudesse nos acusar de “roubo” ou qualquer outro delito. “Invasores” de casa já era o suficiente. Os objetos menores foram trancados em um quarto e fizemos a listagem de tudo o que havia na casa. Mais tarde, esta lista foi entregue à reitoria e divulgada nos restaurantes e em vários outros locais da universidade para que todos ficassem sabendo. Em seguida, todos os ansiosos estudantes que estavam lá fora entraram e literalmente “acamparam” na casa.
Foram momentos inesquecíveis, pois nunca havíamos sequer pensado em passar por tal situação. Parecia que estávamos fazendo parte de um filme sobre os movimentos estudantis rebeldes dos anos 60. Em seguida, foram formadas várias comissões, entre elas a “comissão de invasão”, que deveria ficar permanentemente na casa, e a comissão de apoio que traria comida, materiais de limpeza e outras coisas necessárias para o pessoal que permaneceria na “Casa Invadida”.
Passamos a primeira noite na casa como se estivéssemos em uma festa: muita gente conversando, grupos tocando violão, jogando baralho, etc., mas todos com medo de uma possível chegada da polícia, o que felizmente não aconteceu.
Como a universidade estava em greve, ficamos acampados na “casa invadida”, sem ter que sair para nenhum compromisso. Tinha gente passava o dia todo na casa, outros vinham passar a noite, dando uma força e fazendo “volume”.
Nos primeiros dias após a invasão, estávamos todos muito tensos, agitados, com medo de aparecer polícia, de ocorrer alguma cena de repressão... mas o mais importante na nossa mente era vencer aquela “batalha” e conseguir uma nova república. Fazíamos rodízio durante a noite; sempre tinha uma turma acordada, era necessário ficar alerta pois não tínhamos a chave da casa e a polícia poderia aparecer a qualquer momento.
Após alguns dias, a tensão foi diminuindo, o otimismo foi tomando conta de nós e, tivemos a certeza de que aquela batalha estava quase ganha. O silêncio da reitoria representava o “sim” que tanto esperávamos. Não houve ação da reitoria nem da polícia. Não demorou muito para obtermos a chave da casa e sentirmos o primeiro gosto da nossa “vitória”.
Cerca de um mês após a invasão, os móveis da casa de hóspedes, que pertenciam à universidade, foram finalmente retirados e a reitoria cedeu-nos “pacificamente” a “Casa Invadida”, como passou a ser chamada.
Para a distribuição das vagas, os critérios estabelecidos pela Comissão de Moradia não incluíam sexo nem curso. Houve um sorteio entre os muitos estudantes que precisavam de moradia na época e, coincidentemente todas as pessoas sorteadas foram mulheres.
Algum tempo depois, escolhemos o nome da República, pensando que Tanto Faz um nome ou outro, o importante para nós era a “alma” da república, não o seu nome. E Tanto Faz ficou, prosperou, e hoje é um grande motivo de orgulho para nós, que ajudamos a invadi-la, a criá-la e nela vivemos alguns dos anos mais importantes das nossas vidas.

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