FONTE: http://www.fflch.usp.br/sdi/imprensa/noticia/014_2004.html
Memória 70 anos - FFCL-FFLCH/USP - Entrevista com a Professora Emília Viotti da Costa Professora do Departamento de História da FFLCH, foi aposentada compulsoriamente pelo AI-5, em 1969. Recebeu o título de Emérita em 2002.Daniel Cantinelli Sevillano
Professora, gostaria que a senhora me falasse um pouco sobre sua formação acadêmica. Minha formação acadêmica deu-se inteiramente na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, exceto pelo curso de especialização, feito na França. Na Ecole Pratique des Hautes Études, Quinta Secção da Sorbonne . Naquela época, a Faculdade oferecia os cursos de Geografia e História aos alunos, e depois de formada optei pela História. Fiz minha especialização 1 ano no Brasil e 1 ano na França, onde estudei com Emile Labrousse, Charles Morazé e George Gurvitch; terminei o curso em 1954.
Como era a Faculdade quando a senhora foi aluna? Nós tivemos aulas na Escola Caetano de Campos, na Praça da República e no prédio da rua Maria Antônia. Cheguei a dar aulas no prédio da Escola Caetano Campos, onde estivemos instalados temporariamente no 3º andar. Os cursos de História e Geografia mudaram-se para o prédio atual do Departamento de História na Cidade Universitária nos anos de 1966 ou 1967, período conturbado da história da Faculdade. O curso de Ciências Sociais estava instalado naquele prédio também, enquanto o seu era construído. Lembro-me que meu gabinete ficava em frente ao do Florestan Fernandes.
Sua turma tinha quantos alunos? Quando entrei na Faculdade minha turma tinha mais ou menos uns 15 alunos. Dois ou três anos depois já havia 30 alunos por sala. Quando fui aposentada em 1969, as salas de aula já tinham 100 alunos.
Havia um grande número de mulheres nos cursos? Dependia dos departamentos. Em alguns departamentos, como era o caso das ciências exatas, havia um número majoritário de homens. Em Letras e História havia um número maior de mulheres. Nas Ciências Sociais o numero era mais ou menos equivalente.
A senhora teve aulas com os professores estrangeiros? Eu tive aulas com professores brasileiros, discípulos dos professores estrangeiros que aqui estiveram nas décadas de 30 e 40. Havia ainda uns poucos professores estrangeiros que vinham para cá ministrar alguns cursos, como Philippe Wolf de História Medieval, Pierre Gourou e Louis Papy de Geografia Humana, Emile Leonard de História Moderna, cujas aulas assisti, mas minha geração foi bem menos exposta aos professores estrangeiros do que a geração anterior. Outros professores franceses vieram mais tarde, como Jean Glenisson, de quem fui assistente, e Frederic Mauro. Quando aluna, a senhora participava de algum movimento estudantil? É preciso conhecer bem a História do Brasil para entender o que aconteceu naqueles anos. Eu freqüentei a USP durante o governo Dutra. Quando terminei a Faculdade, em 1951 ou 1952, Vargas tinha iniciado seu segundo mandato como Presidente. Em 1953 fui para Paris, e quando voltei, em 1954, recebi no navio a notícia do suicídio de Vargas. Eu pertenço a uma geração que foi criada durante o período Vargas, que abrange toda minha infância e parte da minha adolescência. É preciso entender quais eram os parâmetros políticos que as pessoas tinham naquela época. Primeiro, um grande número de pessoas achava que ditadura era muito ruim, e a maioria tinha uma posição democrática. Havia, no entanto, grande interesse pelas sociedades socialistas e pelo processo de desenvolvimento brasileiro. O principal objetivo da minha geração era o desenvolvimento do país e a busca da sua independência e autonomia. Esse era o clima ideológico do momento. Essa tendência perdurou até o governo de João Goulart, quando a sociedade brasileira se radicalizou. Em 1964, o Exército brasileiro derrubou o governo Goulart e a Universidade e os alunos se sentiram chamados a responder a esse golpe. Muitas pessoas decidiram não participar, mas eu achava que os professores da Universidade tinham a obrigação de dar informações à comunidade sobre o que estava acontecendo. Tive uma participação grande na Reforma Universitária. Fiz várias conferências a respeito e coordenei abaixo-assinados encaminhados a Câmara dos Deputados, em defesa da Escola Pública. Pertenci a uma organização de professores filliados às várias unidades da Universidade de São Paulo que acompanhavam a Reforma Universitária. Havia projetos alternativos sendo estudados nas Faculdades de Medicina, Engenharia, Direito, Arquitetura. Eu estava encarregada de coordená-los afim de que pudéssemos encaminhar o governo um projeto de reforma da Universidade que nascera das bases. Isso nunca aconteceu porque todos os estudos que chegaram às minhas mãos foram destruídos durante a repressão.
Os professores tratavam de política dentro das salas de aula? Não, nem eu tratei de política dentro da sala de aula. Havia uma separação bem definida entre o mundo político e o mundo acadêmico. Não havia nenhuma intervenção política na sala de aula, nem quando fui aluna, nem quando fui professora. Claro que a maneira de ensinar História era influenciada pela ideologia do professor, mas ainda assim na sala de aula o que se ensinava era História. Havia, no entanto, discussões e debates sobre a Reforma Universitária e os problemas brasileiros fora das horas de aula.
Como era a organização política dos alunos? Os alunos eram muito bem organizados; havia o Centro Acadêmico de História, que estava vinculado ao Grêmio da FFCL. Tratava-se de uma organização muito ativa, que contava com programas de cinema, artes, palestras, etc, para estimular a convivência entre os alunos dos diversos departamentos.
Eu gostaria de saber qual foi a reação da Faculdade ao golpe de 64? A Faculdade estava dividida; havia pessoas favoráveis ao golpe, e pessoas contrárias ao golpe, que tinham apoiado as reformas do João Goulart. Havia um grupo de assistentes e professores, liderados pelo Fernando Henrique Cardoso, que era favorável às reformas. O golpe de 64 interrompeu esse processo, e fez com que aquelas propostas fossem deixadas de lado. O golpe foi um choque para nós, que participávamos do grupo favorável às reformas. Houve um grande número de prisões e alguns professores, como o Cruz Costa, da Filosofia, e o Florestan Fernandes, de Ciências Sociais, Mário Schemberg da Física, foram obrigados a depor nos Inquéritos policial-militares (IPMs). Vários políticos tiveram seus direitos políticos cassados e alguns professores foram afastados de seus cargos. Eu continuei a ensinar na Faculdade de Filosofia até 1969. Naquele momento, era quase impossível permanecer indiferente à política nacional. A Universidade e todos os alunos estavam mobilizados. Os que não queriam participar ficavam em casa e não vinham à Faculdade. Em 1968, eu era a livre-docente mais nova da Faculdade. O Diretor da FFCL, professor Eurípedes Simões de Paula, me indicou para ministrar a aula inaugural da Faculdade de Filosofia naquele ano. Fiquei pensando qual seria o tema que poderia interessar a um público tão diversificado, que incluía alunos dos vários departamentos: física, química, matemática, ciências biológicas, história, geografia, letras, ciências sociais e filosofia. Depois de muito pensar cheguei à conclusão de que um tema interessante para todos seria A crise da Universidade. Essa conferência foi publicada numa revista que o Grêmio da FFCL patrocinava. O texto passou a ser divulgado e citado em documentos estudantis daquela época. Passei a ser convidada a fazer conferências sobre esse tema em diversas faculdades do interior. Atribuo minha aposentadoria a esse fato, pois eu era vista como alguém que estava contra a Reforma Universitária proposta pelo Governo. Cheguei a discutir num programa da Televisão Cultura com o Ministro de Educação, Tarso Dutra, a proposta de Reforma do Governo, e lá comigo estava também o hoje Ministro da Casa Civil, José Dirceu, líder estudantil naquela época.
A senhora estava na Faculdade no dia do incidente com o Mackenzie? Não, eu não estava. Nessa época, meus filhos eram muito pequenos, e eu estava em casa tomando conta deles. Fiquei sabendo depois que havia um grupo dentro do Mackenzie, chamado de Comando de Caça aos Comunistas, que havia atacado os alunos da Faculdade de Filosofia, e que estes haviam revidado. Em 1968 foi publicado o famoso Ato Institucional 5, que cassou diversos professores da USP, entre eles eu, Fernando Henrique Cardoso, Bento Prado, Otávio Ianni, e outros.
O Governo possuía espiões na Faculdade? Sim. Em anos anteriores, a Faculdade havia sido invadida por "alunos", que na verdade eram espiões do Governo. Houve um caso de um capitão que se encantou por uma aluna casada, mas como ela não correspondeu às suas investidas, ele a indiciou em um IPM (Inquérito Policial Militar). Por acaso, ela foi incluída no mesmo IPM em que eu estava.
A senhora foi presa dentro da Cidade Universitária? Não, mas vários alunos foram presos. Alguns colegas meus foram presos nessa época e, em 1969, quando o David Rockfeller veio ao Brasil, os militares, provavelmente com medo de que fosse feita alguma denúncia sobre violação de direitos humanos, detiveram por três dias várias pessoas, entre eles Octavio Ianni e eu. Foi nessa época que decidi aceitar um convite do Michael Hall, (atualmente professor da Unicamp), para lecionar na Universidade de Toulaine em New Orleans. Aceitei a proposta e fiquei 6 meses naquela Universidade. Foi um período bastante difícil, porque embora conhecesse a língua inglesa, não tinha prática nenhuma em falar inglês. Enquanto isso, eu havia sido absolvida no Brasil pelo corpo de juizes da auditoria, mas o promotor apelou para o Tribunal Federal. Voltei ao Brasil em 1971, e decidi ir ao Rio para assistir à última sessão do meu julgamento, no qual também estava sendo julgado o neto do General Lott e aquela aluna que havia sido indiciada no mesmo IPM que eu. Houve uma coisa muito engraçada no julgamento. O juiz, ao se referir A mim e à aluna, trocou nossas identidades. Ele disse "Emilia Viotti teve um bebê", e eu pensei comigo mesma que isso acontecera há muitos anos. Quem de fato tivera um bebê era a Caetana. E depois ele acrescentou "E Caetana (a aluna), já foi aposentada". E ele dizia tudo isso muito sério. Terminou pedindo mercê para mim porque havia tido um bebê, e para a aluna, porque ela já havia sido aposentada do cargo que tinha na Universidade. Em 1972, eu aceitei outro convite para ser professora nos Estados Unidos, desta vez na Universidade de Illinois, em Urbana-Champaign.
Por que a senhora não quis retornar à USP em 1979, quando foi dada a oportunidade para os professores cassados retornarem à Universidade? Eu estava nos Estados Unidos havia 7 anos e tinha acabado de receber o meu visto de residência e a minha tenure (estabillidade) depois de muita luta. Foi uma época de grande sofrimento. O visto de residência demorou muito tempo para ser concedido. No dia em que o Serviço de Imigração Federal me concedeu o visto, a secção de Connecticut estava me deportando para o Brasil. O mais correto teria sido voltar, mas eu estava com um emprego fixo na Universidade de Yale, o que me permitia dar aulas na Universidade até quando eu quisesse, já que lá não existe aposentadoria compulsória; e tinha começado vida nova com meu atual marido. Isso me levou a decidir por minha permanência nos Estados Unidos.
Como a senhora se sentiu ao receber o título de professor emérito? Considerei o título uma homenagem à toda aquela geração da qual Eu fiz parte, todos aqueles que foram injustiçados e perseguidos, e que tiveram seu trabalho impedido de forma violenta. O próprio Reitor confirmou que o título era uma homenagem àquela geração.
domingo, 6 de abril de 2008
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