domingo, 6 de abril de 2008

DEPOIMENTO DE APOLÔNIO DE CARVALHO

DEPOIMENTO DE APOLÔNIO DE CARVALHO
CeVEH
Anexo - Primeira entrevista com Apolonio de Carvalho
Observação:Esta entrevista foi realizada no Rio de Janeiro em 24 de janeiro de 1996.Nos empenhamos em fazer uma transcrição fiel do que foi dito. A transcrição foi levada para apreciação de Apolonio de Carvalho que a aprovou. Há uma cópia da fita da entrevista e dessa transcrição no AEL -Arquivo Edgard Leuenroth.Thaís Battibugli –

Será que eles (voluntários que saíram do Brasil para lutar pela Espanha republicana) não adotavam um pseudônimo?APOLONIO - Não, não...Thaís - É o nome mesmo?APOLONIO - É que nós fizemos um bloco. Nós (somos) éramos jovens comunistas e próximos do Partido e o Partido nos convidou para ir á Espanha, o Partido Comunista, e então nós fomos para lá, eu e mais ou menos figuras que já haviam estado presas juntos. E nos conhecíamos, e fizemos um bloco na saída e nos vimos depois etc e tal, mas essas pessoas eu nunca vi não (referência a nomes de pessoas de devem ter ido lutar na Espanha e que a entrevistadora mostrou para Apolonio).Thaís - O senhor ficou preso aqui no Navio Prisão?APOLONIO - D. Pedro I? Não aí ficou o pessoal que participou diretamente de 35, compreende? Eu não, estava no Rio Grande do Sul e fui preso no Rio Grande do Sul, de lá vim para a Casa de Detenção e Casa de Correção.Thaís - Casa de Detenção em São Paulo?APOLONIO - Não aqui no Rio, eu não estive preso em São Paulo. Detenção e Correção.Apolonio reconheceu como voluntários que foram para a Espanha os nomes de José Gay da Cunha, Eneas Jorge de Andrade, Hermenegildo de Assis Brasil, Nemo Canabarro Lucas, David Capistrano, Jorge Cetl, José Homem Corrêa de Sá, Roberto Morena, Carlos da Costa Leite, Ramón Prieto Bernié, Dinarco Reis, Delcy Silveira, Eny Silveira, Nelson de Souza Alves, Homero Castro Jobim, Joaquim Silveira dos Santos, Bruno Giorgio, Nicolag Smaritochewski, Ernesto Yoske, e acrescentou o nome de Wolf Reutberg à nossa lista de voluntários que saíram do Brasil para lutar na guerra civil espanhola.APOLONIO - A minha grande esperança é que ele (Jorge Cetl) esteja vivo, compreende? Era um moço muito forte.Thaís - O Morena, o Roberto Morena... (A entrevistadora lia os nomes para ver se Apolonio conhecia algumas das pessoas).APOLONIO - O Roberto Morena, marca...Thaís - O senhor conheceu ele por Cláudio Ballesteros Gonzales?APOLONIO - Não, por nomes não. Eu conheci como Roberto MorenaThaís - Porque lá ele adotou esse pseudônimo.APOLONIO - Claro.Thaís - Ramón Prieto Bernié...APOLONIO - Ah... esse eu conheço de nome, muito. Ele é espanhol...Thaís - É espanhol de nascimento.APOLONIO - Ele saiu da Argentina e passou pelo Brasil e foi para a Espanha.Thaís - Dinarco Reis.APOLONIO - Uh... velho Dinarco.Thaís - É Mario Dinarco Reis ou só Dinarco?APOLONIO - Não, nós conhecemos ele... eu conheci como Dinarco Reis.APOLONIO - Ele (Carlos da Costa Leite) era nosso chefe político, nosso dirigente político.Thaís - Joaquim Silveira dos Santos.APOLONIO - Ah...morreu há pouco no ano passado, grande figura.Thaís - Fala de alguns que não chegaram a ir... que é o Alcedo Cavalcanti.APOLONIO - Ah...foi até Paris.Thaís - Silvio Porto Dias?APOLONIO - Silvio Dias? O Silvio Porto também foi até lá?Thaís - É.APOLONIO - Interessante.Thaís - Segundo um autor foi.APOLONIO - Quem mais?Thaís - Paulo (Pablo) Machado Carrión.APOLONIO - Isso mesmo. Esses três voltaram de Paris.Thaís - Porque será que eles foram e...APOLONIO - Porque eles achavam que a guerra estava terminada, estava em um momento muito difícil para a República.Thaís - Celso Tovar Bicudo.APOLONIO - Esse eu conheci lá. Esse não foi à Espanha não, estava na França.Thaís - Só chegou até a França. Ele não foi para a Espanha.APOLONIO - Porque era quem nos recebia em Paris, quando nós íamos para a Espanha. A gente fazia uma escala em Paris, e ele que nos recebia.Thaís - Ele recebia (os voluntários) no Partido Comunista?APOLONIO - Ele estava nessa turma (possivelmente era o grupo de voluntários brasileiros em que Apolonio estava) para ir também mas ele não pode.Thaís - Ele recebia no Partido Comunista Francês ou...?APOLONIO - Não, ele recebia como comunista brasileiro, mas tinha relações com o Partido francês. Comunistas em um país e em outro país tem relações.Thaís - Carlos Brunswick França.APOLONIO - Esse também voltou de lá (França). Não é isso que diz aí?Thaís - É (...).APOLONIO - Ele está vivo aqui, está muito bem.Thaís - Bruno Giorgio?APOLONIO - Bruno Giorgio. Esse eu não conheci, mas falaram muito nele, os companheiros falam muito nele.Thaís - (Era) italiano que morava no Brasil e que foi para a EspanhaAPOLONIO - E que foi... como um outro anterior que nós vimos, um outro espanhol que foi para o Brasil que eu marquei. Era... André não sei o que (Apolonio devia se referir de fato a Ramón Prieto Bernié; da lista que mostramos este não havia reconhecido nenhum André que teria saído do Brasil para lutar na guerra civil espanhola) . Também era espanhol mas foram para lá.Thaís - Nicolag ou Nicolau Smaritochweski.APOLONIO - O que é que diz dele?Thaís - Diz que ele foi...eu vi o nome como uma pessoa que saiu do Brasil para lutar para a Espanha no arquivo do DOPS, lá diz que ele foi expulso no dia 30 de março de 1936 por ordem de Getúlio Vargas. Eu achei o nome dele só no DOPS, falando que ele foi para a Espanha.APOLONIO - É isso mesmo, Nicolag Smaritochewski, pode marcar aí, é isso sim. Esse eu vi lá.Thaís - Na Espanha?APOLONIO - É.Thaís - Ele era membro do Partido, alguma coisa?APOLONIO - Eu não sei não...devia sim, não tive intimidade com ele, mas devia ser...Thaís - Juan Antonio Urquija?APOLONIO - NãoThaís - Bartolo Muroni?APOLONIO - NãoThaís - João Artur Urquija também é o mesmo (esses três nomes encontramos designando uma mesma pessoa).APOLONIO - Esse aí não era um italiano que esteve... não era um argentino? Urquija? Thaís- É um rolo a biografia dele, fala que o nome verdadeiro do Juan Artur Urquija era Bartolo Muroni, eu tenho a biografia dele de 37, e fala que ele pertencia ao Partido Comunista da Argentina...APOLONIO - Da Argentina, perfeito.Thaís - ...Mas que ele nascera na Itália.APOLONIO - Eu vi lá, esse eu vi.Thaís - O Juan Artur Urquija?APOLONIO - É (...). Aí terminou a lista?Thaís - É.APOLONIO - Muito bem, muito obrigado. Você vai deixar isso comigo? (Apolonio se refere ao trabalho de Iniciação Científica que a entrevistadora fez).Thaís - Deixo.APOLONIO - Muito agradecido pelo presente.Luís Fernando Baia Antonietto - (...) Gostaria de perguntar para o Apolonio, que nasceu em 1912 (...), o contexto um pouco da época, não de 12 porque o senhor era muito pequenininho, mas o que leva o Apolonio ao Partido Comunista, o Rio da época, como é que tá a situação política?APOLONIO - Eu vou tentar fazer em traços rápidos, porque senão ficaria muito longa aqui (...) a coisa pegaria para dois livros, assim de contar toda essa história etc, e também as épocas etc e tal, mas rapidamente... eu fiz 18 anos em 1930, isso influenciou muito sobre minha maneira de ver a sociedade, minha maneira de ver também o papel do jovem na sociedade. Eu antes já tinha um pouco de tendência à participação na vida política e social porque meu pai e meu irmão mais velho eram muito ligados á prática da democracia, (...) eram completamente avessos à todo... (gravação interrompida por barulho), de maneira que normalmente a gente se educava num espírito de liberdade, de direitos humanos, de recusa aos regimes de reação, de ditadura. Os anos 30 abriram um caminho mais amplo, a essa tendência que diríamos que tinha origem familiar, pela tradição do meu pai também, meu irmão foi tenentista nos anos 20. Luís Fernando - O seu irmão tenentista?APOLONIO - É.Luís Fernando - E seu pai?APOLONIO - Meu pai foi oficial do Exército, foi proclamador da República, foi um elemento muito ligado à idéia republicana, à idéia de liberdade, então dentro desse quadro os anos 30 abriram uma vasta condição e um vasto horizonte, para o desenvolvimento dessa tendência anterior, porque os anos 30 são marcados por alguns dilemas muito claros e muito definidos, dilemas que não admitiam adiamento, problemas que não podiam ser resolvidos senão dentro do decênio 30, e dentro desse quadro nós tínhamos o grande choque entre as idéias de paz e de guerra, se lembram que a grande guerra começou em 39, mas ela já se preparava desde 31, 32, 34. O dilema entre democracia e regimes de força. Fosse o fascismo, fosse o nazismo, fossem as ditaduras civis como nós tivemos com o Estado Novo. E também o dilema sobre a distribuição dos efeitos da grande crise econômica de 29 a 33, para os governantes os efeitos da crise deviam ser jogados sobre os lombos dos trabalhadores e da massa da população, para os democratas e patriotas isso devia ser dividido entre... partilhado entre as diferentes classes e grupos sociais. De maneira que os anos 30 foram anos também anos marcados por uma extraordinária e nova qualidade de participação do povo na vida política do país. Nos anos 30, o Partido Comunista aparece já como um partido político que quer se integrar na sociedade com respostas próprias aos desafios dessa sociedade, não é a toa que é através dos sindicatos que surge a Aliança Nacional Libertadora, mas o Partido Comunista se integra e encaminha a Aliança Nacional Libertadora em plena fase de formação e passa a ser um elemento muito importante sobretudo depois que a 30 de março de 35 no teatro João Caetano na festa de, houve apresentação pública da Aliança Nacional Libertadora o General Luís Carlos Prestes é eleito por aclamação o presidente de honra Aliança Nacional Libertadora, que era uma espécie de Frente Popular nas condições brasileiras. Esse ambiente de luta pela paz, de luta pela democracia, de luta pela igualdade dos cidadãos diante dos problemas positivos ou negativos, como por exemplo a grande crise econômica, esse problema, esse momento especial em que há uma participação vigorosa, nova, consciente de uma parcela muito grande da população na vida política do país representava um acicate, um estímulo, um convite para a participação na vida política aos que como eu trazíamos já uma tendência a lutar pela democracia a não aceitar os regimes de força e a integrar um movimento social.Luís Fernando - Feito. Como é que nós temos os sindicatos nesse período, seu Apolonio?APOLONIO - Eu acho que você deveria ler sobre isso um livro muito interessante de Nelson Werneck Sodré, Contribuição à História do PCB, aquele lá faz uma análise muito bonita, eu se falasse para você repetiria umas coisas desse livro, para ganhar tempo eu gostaria que você lesse (...). É o momento em que os sindicatos se já são organizações relativamente fortes em algumas categorias, e em que o surgimento do Integralismo, da Ação Integralista Brasileira, as tendências ditatoriais do governo Vargas que se manifestam desde 30, 31, 32, 33, 34, levam os sindicatos dentro do ambiente dos anos 30, que é um ambiente de lutas pelas liberdades, a combinar a luta econômica, que é sua tradição, com as lutas políticas, com a recusa ao fascismo, ao nazismo e aos regimes de força, e uma visão da democracia e a busca também, ao lado da combinação dos problemas econômicos, das bandeiras econômicas com as bandeiras políticas, a buscar também a unidade de suas organizações, de suas fileiras, para poder pesar efetivamente na vida social e política do país.Thaís - O senhor chegou a conhecer a Frente Única Antifascista (1933/34)?APOLONIO - Não cheguei a conhecer não. (...) Eu era um elemento muito verde na vida política, em 30 eu tinha 18 anos, em 35 eu tinha de 22 para 23 anos, de maneira que eu entrava na vida política dentro das condições locais em que a política se fazia sentir. E eu estava no Rio, na Escola Militar do Realengo, eu sou oficial do Exército. Eu estava no comando como tenente de artilharia do Exército brasileiro, e então conheci, por exemplo, na escola, em momentos de eleições, a propaganda do Bloco Operário e Camponês, (...) era uma organização ligada ao Partido Comunista, mas uma organização destinada à unidade das entidades das formações operárias, na realidade era organização de Frente Única mais ampla, porque não somente ela buscava unidade das forças e organizações operárias, como também ela tinha relações muito estreitas com o mundo parlamentar da época, no Rio de Janeiro, isto é, os parlamentares democratas e patriotas que defendiam as reivindicações da população trabalhadora, e que eram chamados por isso mesmo, deputados trabalhistas. Não era do Partido Trabalhista ainda que surgiria em 1946, mas eram chamados deputados trabalhistas. Aí você tem o Maurício de Lacerda, você tem Medeiros de Albuquerque e outros etc. Luís Fernando - Todos ligados ao BOC?APOLONIO - Não, não eram ligados ao BOC, eram aliados ao BOC, o BOC tinha relações com eles para defesa das reivindicações operárias e democráticas.Thaís - O senhor lia o Classe Operária?APOLONIO - Não, nesse momento eu não era comunista, eu só fui sair (...) pelo Partido em 1937, compreende? Mas eu tive uma formação na Escola Militar também de recusa aos contrastes sociais da sociedade, já trazia isso de família como eu contei para vocês. Então eu comecei a ler muito na escola militar, e comecei a sentir os efeitos da literatura mais ligada aos problemas sociais e um pouco a filosofia, e então eu li alguns livros que ao mesmo tempo que faziam, que me orientavam para uma concepção materialista da história, do mundo, da sociedade, eles me orientavam também para conhecer as mentiras convencionais, os preconceitos, os contrastes da sociedade e a vergastar no meu pensamento, dentro do meu pensamento, os profundos contrastes sociais da sociedade brasileira, mas isso foi um processo autodidático de formação cultural. Eu não pertencia a nenhuma organização, não tinha contato com nenhuma organização, acabei de dizer à vocês que nas épocas de eleições vinham os propagandistas do BOC, e de outros partidos, fazerem a apologia de seus programas e a apologia de seus candidatos, no Realengo, onde estava minha escola militar, e eu tomava contato com eles.Thaís - Lá nos quartéis, eles entravam nos quartéis?APOLONIO - Não, não entravam, era fora dos quartéis, mas nós também saíamos dos quartéis, tínhamos sábados, domingos fora dos quartéis etc e tal.Thaís - O senhor era filiado, o senhor se filiou à ANL?APOLONIO - Bom aí isso seria depois em 1935, eu estou falando do princípio dos anos 30. A primeira organização política de esquerda a que eu me filiei foi a Aliança Nacional Libertadora, que aliás é muito pouco conhecida no Brasil. Quando se fala de 30, se fala em Getúlio Vargas, em Oswaldo Aranha, mas também Luís Carlos Prestes, em Padre Geraldo, a ida para a União Soviética, a volta da União Soviética, etc, mas fala-se pouco em um acontecimento extremamente importante, é que na História do país isso se repetiria depois, em 1960, se repetiria depois no final dos anos 80, há momentos em que há um ascenso do movimento popular, uma mobilização da população trabalhadora, e 30 representa um momento dessa qualidade, é um momento em que verdadeiramente os sindicatos se corporificam, as reivindicações populares se manifestam nas ruas, e as aspirações populares passam a ter instrumentos para se fazer conhecer, através dos sindicatos, através organizações populares e aí surge uma organização de Frente Popular, que no Brasil não se chamava Frente Popular, uma organização de Frente Popular unindo os trabalhadores da cidade e do campo, mas o campo nesse momento não participava, compreende? E, mas devia, pensavam unir os trabalhadores da cidade e do campo e as classes médias e setores progressistas da sociedade, para a defesa de um programa de liberdades democráticas, de liberdades públicas, de independência nacional no plano econômico e no plano político, e de reformas democráticas, como reformas de base, e transformações das condições existentes na vida da população mais pobre. A Aliança Nacional Libertadora é uma das páginas mais bonitas da História do nosso país. Uma das mais belas páginas da História do Brasil, nós teríamos depois de 61 à 64, 63/64, nós teríamos também uma mobilização muito alta dessa vez ampliando a participação popular nas cidades, à participação popular no campo com as Ligas Camponesas e Francisco Julião e outras organizações, e teríamos depois já no final dos anos 80 (deve ser final dos anos 70), a grande eclosão do movimento operário e sindical através da luta dos sindicatos contra a ditadura, apressando o fim da ditadura, a crise geral da ditadura militar.Thaís - Voltando à ANL (...) que papel que o senhor acha que o Partido Comunista teve na formação da ANL?APOLONIO - Eu penso que o Partido Comunista teve um papel muito importante mas não esteve só. Em geral, como tudo o que existia de caráter democrático e patriótico era considerado pelas forças conservadoras como manifestação de comunismo, atribuía-se ao Partido Comunista, todo movimento popular e social e político que existisse no país, o que brotasse no país, dentro desse quadro o Partido naturalmente apontado como responsável pela Aliança Nacional Libertadora, responsável pelo movimento de 35 e por todas as coisas que viriam. Na realidade Aliança Nacional Libertadora não nasceu diretamente do Partido, porque o Partido tinha uma linha muito radical, muito sectária que vinha desde 30, pela influência exercida sobre a orientação dos comunistas brasileiros, por uma organização superior, de caráter internacional, que na realidade era o centro exterior de orientação dos partidos comunistas, a Internacional Comunista, compreende? Então o Partido que nos anos 20 tinha tido um desenvolvimento muito alto uma política muito rica, muito ligada aos interesses da população, mas também às características nacionais, esse Partido de 26 à 29, tinha criado o Bloco Operário e Camponês, o BOC, a aliança, e tinha feito em 29 a aliança com os tenentes de esquerda, que tinha ia participar do movimento de 30, com nas eleições de 30, com uma frente única muito ampla em que o candidato seria Luís Carlos Prestes à presidência da República. Esse Partido a partir de 30, sob influências externas, orienta-se de maneira extremamente radical e sectária e não participa nem de alianças nem da vida política do país. Ele pensa poder fazer o socialismo em pouco tempo, então isso faz com que o Partido Comunista se atrase em relação ao movimento social e em relação ao que há de novo na vida política do país, eu contei a vocês que os sindicatos passavam a ter dentro da ameaça Integralista, a ameaça de uma ditadura civil por Getúlio Vargas, a ter uma orientação mais ampla ligando os problemas econômicos aos problemas políticos, e a procurar a unidade de suas fileiras e a unidade com forças das camadas médias da sociedade, então a Aliança Nacional Libertadora nasce sob influência dos sindicatos e desse princípio de aliança com as classes médias e com os tenentes, e o Partido Comunista depois da conferência nacional de outubro de 34, passa por uma viragem porque a Internacional Comunista passa por uma viragem e adota a política das Frentes Populares, e então o Partido adere, a partir de abril, março/abril de 35, adere a esse movimento de criação da Aliança Nacional Libertadora e passa a ser um de seus componentes mais importantes.Thaís - E o movimento trotskista, o senhor chegou a conhecer, ou só o Carlos Alberto Besouchet, qual a opinião que o senhor tem?APOLONIO - O movimento trotskista foi muito fraco no Brasil. Ele teve momentos altos em 35/36/37 em São Paulo, atingindo de certa maneira a aliança nacional do Partido, mas foi um momento apenas . Eu quando estive preso em 1936/37, eu quando estive preso na prisão eu convivi com elementos trotskistas, eram jornalistas, eram médicos, eram professores, mas eram figuras isoladas. O trotskismo não teve no Brasil uma expressão forte, organizada, foi digamos uma fração dentro do Partido Comunista. Mas somente num momento especial, entre 34 e 35 ou talvez entre 35 e 37 ou mais tarde tenha adotado, assumido uma certa influência sobretudo em São Paulo, com o Sachetta e outros companheiros. Mas não foi um movimento muito....Luís Fernando - Parece que é uma tendência do trotskismo, já nessa época que o senhor fala, e o que a gente pode chamar de trotskismo que sobrevive até hoje, a Convergência Socialista, que foi expulsa do PT e que hoje é o Partido Social Trabalhista Unificado. O PSTU, se eu não errei o nome... Parece que é uma tendência histórica, então pelo menos dos trotskistas brasileiros de serem Partido dentro do Partido, de se isolarem do bloco, é mais ou menos isso?APOLONIO - É e não é, porque o trotskismo é produto de uma cisão interna no Partido Comunista da União Soviética, não era um problema nosso, como não era um problema de outros países e Partidos Comunistas no mundo, era uma situação soviética, o choque entre Trótski e Stálin e a maneira extremamente brutal de solução dessa contradição, a expulsão de Trótski e tudo mais e tal e mais tarde o assassinato de Trótski, tudo isso fez com que Trótski se orientasse para uma quarta internacional e também para um movimento de protesto contra essa orientação que se fazia na União Soviética. Então isso também fazia com que a sua maneira de ver a solução dos problemas fosse muito radical, também nos países em que o trotskismo chegava a ter influência nos Partidos Comunistas locais. De maneira que, no meu tempo em 35/36/37, quando eu estive na prisão eu conheci os trotskistas, os trotskistas eram uma tendência pequena, fraca ainda e tudo mais. Não tinha força (gravação prejudicada por barulho), é um momento dado, eu não tive capa... de pela memória localizar esse momento. Mas foi o momento de Sachetta e outros assim, e sobretudo em São Paulo, com alguns reflexos na direção nacional, mas muito momentâneos.APOLONIO - (responde á pergunta que não foi gravada: Thaís - O senhor chegou a escrever algum artigo em revistas e/ou jornais nesta época?) - Escrevi na prisão já depois 36/37, eu escrevi... nesse momento eu já me orientava para o socialismo, até 34/35 eu lia muito mas eu não tinha uma ligação qualquer com uma organização. A Aliança Nacional Libertadora, em princípios de 35, foi minha primeira organização de esquerda, até aí eu tinha a minha condição de cultura de autodidata. E também de mentalidade de esquerda, ou em contato com meus amigos... (parte irreconhecível) etc e tal, mas de maneira isolada, era um apreciador dos acontecimentos, era um apreciador isolado, um espectador e um crítico dos acontecimentos, mas isolado. Em 35 é que eu vou entrar para uma organização de esquerda, patriótica e nacionalista e democrática que é a Aliança Nacional Libertadora. Eu sou preso em conseqüência dos acontecimentos de 35, eu já na condição de tenente em Bagé no Rio Grande do Sul, eu sou preso porque tinha... porque eu participei da Aliança Nacional Libertadora, eu fui organizador da Aliança Nacional Libertadora em algumas cidades do Rio Grande do Sul, em Bagé, em Dom Pedrito, em São Gabriel, muito jovem ainda, mas não era comunista, a Aliança Nacional Libertadora que era uma organização profundamente democrática e patriótica. Eu te contei que mesmo o Partido Comunista se insere no processo de formação da Aliança, mas não é um produto do Partido, e então inclusive quando a Aliança, a Internacional Comunista adota a política das Frentes Populares, em agosto de 1935, nesse momento nós já tínhamos criado a Frente Popular no Brasil e estava em... começava seu período de crise depois do manifesto de 5 de julho de 1935. De maneira que eu participo da Aliança Nacional Libertadora, sou preso e de Bagé no Rio Grande do Sul de onde eu sirvo, como oficial do Exército, eu sou transferido para a Casa de Detenção, primeiro, e depois para a Casa de Correção no Rio de Janeiro, e aí eu entro em contato, é aí que eu vou me tornar comunista, é aí que eu entro em contato com o... com antigos colegas de Escola (Militar) que são comunistas já ardorosos e de prática permanente, mas também eu vou fazer as minhas primeiras leituras, orientadas pelos companheiros, e vou sentir um novo aspecto da sociedade que eu não via antes, porque os comunistas me ensinaram a ver a composição da sociedade, a composição de classes, a existência da classes diferentes, classes exploradoras e classes exploradas, a existência de partidos políticos para a defesa dos interesses desta classe ou daquela classe, ou de um conjunto de classes. A luta de classes, dentro de cada país em função da luta contra a exploração do homem pelo homem. Isso tudo eu fui aprender em 36/37 na prisão, e então eu me tornei um adepto do socialismo e do comunismo. Quando eu tinha entrado para a Aliança Nacional Libertadora, eu o tinha feito na condição de democrata, de nacionalista, porque a Aliança Nacional Libertadora não era uma organização comunista, era uma organização profundamente patriótica, profundamente nacionalista, profundamente democrática e integrada com os problemas da nossa sociedade, então lá eu me torno verdadeiramente um adepto do socialismo e do comunismo, mas na prisão não se fazia nessa época a, o recrutamento de (comunistas? - nessa parte há barulho), então eu esperei a saída da prisão, e no primeiro dia de liberdade, em julho de 37, eu me torno membro do Partido Comunista, e sou comunista até hoje, convicto, cada vez mais cheio de sonhos e de ideais na minha utopia, científica não muito elaborada.Luís Fernando - Ainda bem. O senhor pode citar para a gente o nome dos companheiros que introduzem o senhor no Partido Comunista? Esses companheiros que o senhor encontra na prisão e que são antigos colegas?APOLONIO - Eu quando estive na Escola Militar do Realengo, o Partido comunista existia, na sua...Luís Fernando - Ah! São militares?APOLONIO - São militares. Existia na Escola Militar do Realengo, e existia clandestinamente, o Partido era verdadeiramente, virou a peste vermelha. Pelos governantes, de maneira que eu conheci alguns dos companheiros comunistas sem saber que eram comunistas, porque ninguém sabia. E eu tive certa atividade mais ampla num momento dado na Escola Militar, porque eu fui o diretor da revista da Escola Militar, e como Nelson Werneck Sodré e como outros que foram meus colegas nessa época, e como outros nós transformamos a revista da Escola Militar que até então era uma espécie de coletânea de regulamentos militares, para ser... e que passou a ser sob nossa orientação coletiva, uma revista de tipo universitário, como aquelas revistas dos DCEs, nas faculdades. Isto era uma revista aberta para os problemas políticos, para os problemas sociais, para o humorismo. Para contos, para novelas, para charges etc. Então alguns companheiros eu sentia que apoiavam a nossa atuação de perto assim, e eu sentia que eram companheiros que eram bastante bem orientados, mas não sabia que eram comunistas. Já quando fui preso, os companheiros já tinham participado do movimento de 35, estavam presos também, e através deles e de outros, porque na prisão estávamos todos em conjunto, de representantes das várias camadas sociais que compunham a Aliança Nacional Libertadora, desde os operários aos militares, aos professores, aos catedráticos das grandes faculdades do país. Através dessas pessoas eu comecei a sentir, ver que era necessário ter uma visão mais objetiva da sociedade, até então eu misturava um pouco socialismo, anarquismo e tal, era um excelente confusionista, de esquerda, mas de esquerda, ancorado na esquerda. Sem definição precisa, aí a partir desse momento eu passo a conhecer a sociedade através de sua História, de sua composição de classe, da História da luta de classe, e passo naturalmente a ver mais de perto a composição da sociedade brasileira, antes eu tinha passado pelo nacionalismo, da Aliança Nacional Libertadora, pela luta contra o capital estrangeiro. Aí eu passo depois a (palavra inaudível) luta contra o capital em geral.Thaís - Voltando o senhor escreveu artigos na Casa de Detenção e Correção?APOLONIO - Ah, quando eu estava lá eu fiz estudos, fiz estudos sobre o algodão em São Paulo, que era um algodão financiado inicialmente por japoneses e ingleses, eram algodão de estrangeiros, eu escrevi um artigo sobre a má... a disposição errônea do sistema ferroviário brasileiro, nós não temos até hoje um sistema nacional de estradas de ferro, ligando Amazônia, Nordeste, o Centro e o Sul, não temos... de maneira nenhuma, mas nós tínhamos (...), a influência do capital estrangeiro, nós tínhamos trechos isolados de estrada de ferro, em função das necessidades do comércio internacional, por exemplo, a Gate Western, para canalizar o açúcar ao portos do Recife e de Olinda, para a exportação, por exemplo, a estrada de 100 quilômetros apenas, a estrada de Itabúna à Ilhéus, no Sul da Bahia, destinada a canalizar para o porto de Ilhéus o cacau a ser exportado, como por exemplo...Luís Fernando - A própria São Paulo Railway...APOLONIO - Exatamente, eu ia falar nela, São Paulo Railway é aquela que pega Santos-Jundiaí para o transporte do café e para exportação, nós não tínhamos portanto uma visão estratégica, uma visão nacional da nossa rede ferroviária (gravação interrompida - Fim do lado A da fita 2).INíCIO LADO B DA FITA 2 APOLONIO - (continuando a falar sobre ferrovias) - E isso porque os nossos governantes se (palavra inaudível), faziam uma política dependente, não dos interesses nacionais diretos mas sim, das influências e dos interesses internacionais. Estava repetindo aqui o que eu dizia mas já tinha apagado. Então eu comecei a fazer esses artigos que seriam publicados numa revista antiimperialista que se criava em 1937.Luís Fernando - Qual é a revista?APOLONIO - Eu não me lembro. Eu não conheci, não conheci. Eu parti do Brasil.Thaís - Eles publicaram depois da sua ida para a Espanha.APOLONIO - Na revista sob a direção do comandante Roberto Sissón.Thaís - E havia cursos, assim o PCB fazia cursos, os companheiros presos...APOLONIO - Nós fazíamos grupos de estudos. Grupos de estudos por iniciativa nossa mesmo, e eu me apaixonei pelo estudo, e me apaixonei pelas idéias do socialismo e do comunismo, naquele momento não se falava nem em estalinismo, nem em trotskismo, falava-se no marxismo em quadro geral. O trotskismo era uma tendência ainda isolada no pensamento de algumas pessoas, e mais tarde... ou de grupos muito pequenos que não tinham influência sobre o restante da organização.Thaís - Então acho que agora podia passar para...APOLONIO - Para a Espanha. Pois é, então eu saio da prisão em 37, em junho de 37, eu já contei a vocês o primeiro passo foi...Luís Fernando - Se filiar ao Partido.APOLONIO - Ao PC brasileiro, do Brasil, muito bem. Mas eu pensava sobretudo, trabalhava, estava muito interessado em trabalhar nessa revista nacionalista e patriótica, democrática e os companheiros do Partido e companheiros de outras partes da população queriam publicar. Era uma revista nacionalista, democrática, e eu estava começando a trabalhar ali, mas fui convidado a ir à Espanha, pelo próprio Partido, eu não fui à Espanha por que eu quisesse ir à Espanha, eu bem que tinha um amor imenso pela República espanhola, tinha uma paixão imensa pela luta antifranquista na Espanha e tal, mas eu estava nesse momento, eu tinha minhas várias tendências de jovem. No princípio eu queria ser médico, não pude ser médico, por isso fui para a Academia Militar. Depois eu queria ser jornalista, então eu ia entrar no jornalismo. Eu estava identificado também com o trabalho da nova revista, mas o Partido me convidou para ir à Espanha, dizendo algo que era muito coerente... na Espanha a rebelião do General Franco tinha levado e retirado da República, 80% da sua oficialidade, e a República para resistir estava criando uma nova oficialidade, um novo Exército, então... eu que era oficial do Exército, porque eu ao ser preso, eu fui também cassado do meu diploma de oficial, fui expulso do Exército, só voltei agora com a Constituição de 88. Por isso que eu sou Coronel hoje, porque...Luís Fernando - Mas quando o senhor foi expulso a patente...APOLONIO - Era Tenente, jovenzinho... fui expulso em 36. Fui anistiado com direito ao que seria minha passagem pelo Exército até 88. Muito bem, então eu partia, dizia à você, como militar e outros que estão como você, como militares que são cassados do Exército, nesse momento, vocês poderiam ser mais úteis lá porque ainda trazem essa bagagem técnica, formação teórica de militares, para ajudarem na formação do Exército, e eu achei que era uma coisa muito assim coerente. Muito coerente. Apesar da minha tendência ao jornalismo, eu voltei à minha condição de militar.Luís Fernando - O jornalismo podia esperar um pouquinho...APOLONIO - Não sei se podia esperar. Eu voltei à minha condição de militar. Quem me convidou, para ir falar em nome do Partido, em encontros secretos porque a gente apesar de estar em liberdade estava sobre o princípio já da ameaça do Estado Novo. Quem me convidou foi um jornalista, chamado Otávio Malta? (palavra inaudível), e uma bela figura que vocês conhecem de nome era Aparício Torelli, o Barão de Itararé, tínhamos estado preso juntos, e em nome do Partido...Luís Fernando - O senhor ficou preso com ele...APOLONIO - Ele estava preso comigo. Então eles é que vieram em nome do Partido me trazer essa sugestão, eu aderi a essa sugestão e fui para a Espanha.Thaís - Em julho mesmo de 36...APOLONIO - Julho de 37, em junho mesmo, eu cheguei lá em julho. Em princípios de julho eu estava lá já.Thaís - Mas o senhor não chegou a se filiar nas Brigadas Internacionais?APOLONIO - Isso eu vou contar agora. Então eu chego à Espanha e vou me apresentar em Valência, a capital da República, neste momento tinha deixado Madrid, que estava muito ameaçada, Madrid não caiu nunca, jamais caiu Madrid, mas estava muito ameaçada, sitiada e tal, e o governo estava em Valência, então eu me apresento ao governo espanhol lá republicano em Valência, sou integrado como oficial da artilharia, Tenente da artilharia no Exército, mas não vou para as Brigadas Internacionais, por uma razão muito simples, porque havia nesse momento 50.000 voluntários estrangeiros chegando à Espanha, de todos os países, figuras de todas as condições sociais, e também profissionais, havia os que eram particularmente militares como os soviéticos, havia os que eram particularmente militares como eram os chilenos, como eram os mexicanos, o México enviou aí nesse momento uma leva muito eficiente de oficiais para ajudar a república espanhola, havia os que representavam também um contingente muito forte de militares, que era a delegação brasileira, chamemos assim a delegação, nosso povo não sabia que nós estávamos em seu nome lutando na Espanha, mas nós nos sentíamos como uma delegação do povo brasileiro porque estávamos lutando na Espanha ao lado da República, contra os mesmos inimigos contra os quais nós lutávamos aqui na Aliança Nacional Libertadora, então, havia um detalhe é que os que sabiam falar espanhol ficavam no Exército republicano popular junto com os espanhóis, junto com o povo espanhol da metade republicana, a Espanha estava dividida em duas metades, metade com a República, metade com Franco. Os que não sabiam iam para as Brigadas Internacionais, e eram Brigadas que inclusive tinham a sua formação nacional, a 12 Brigada, a Brigada Garibaldi era composta fundamentalmente de italianos, a Brigada Hans (Beimler) era composta fundamentalmente por alemães, a Brigada Dabrowski (13ª Brigada) e a Brigada Koseiusko, nome de grandes heróis poloneses, eram constituídas por camponeses, a Brigada Lincoln era formada por norte-americanos, ingleses etc e tal, que também falavam a sua língua também e tudo mais e tal, embora todos procurassem falar espanhol também para ter contato com a população. Eu fui para o Exército republicano espanhol, fui oficial Tenente do Exército republicano espanhol, atuei durante quase dois anos, de julho de 37 até fevereiro de 39. Vinte meses, atuei em todas as frentes, exerci sempre com o posto de Tenente, funções de Capitão, de comandante, de Coronel, e no final ainda como tenente o governo nos promoveu a capitães, mas eu já tinha exercido funções de Coronel e comandante antes, porque eles precisavam de quadros e nós tínhamos formação militar. E aí eu falaria à você do contingente da nossa delegação, não é isso que interessa para o período? E aí terminaria não é isso? E aí seria o fim, eu já contei para você tudo.Thaís - É.APOLONIO - Muito bem. Então a nossa delegação era uma delegação muito interessante, repetindo o que eu disse antes, haviam delegações em que os militares constituíam uma percentagem muito alta, eu falei à vocês da delegação soviética, com 2.000 oficiais e técnicos, sem falar do imenso material que a União Soviética fornecia antes, a delegação mexicana, claro que eram muito menos. Mas eram umas dezenas de oficiais, e o México também enviava o seu materialzinho também para nos ajudar na Espanha, apesar da pobreza das suas condições. Havia os chilenos também que enviavam também um grupo de oficiais. Nós fomos uma delegação, sem nenhum desrespeito a todos esses nomes que você me leu aí, mas que eu não tive oportunidade de conhecer. Foi uma delegação, então eu conheci praticamente 20 pessoas, que já éramos também conhecidos aqui no Brasil já, e nos ligamos também depois de sair da Espanha nos campos de concentração da França etc. Nós éramos 15 militares, e cinco civis. Entre os civis havia sobretudo estrangeiros, como os dois espanhóis Ramón Prieto e André (Bruno) Giorgio.Thaís - Bruno Giorgio.APOLONIO - Bruno Giorgio. E Ramón Prieto. Um alemão, Ernesto Yoske, você não tem aí. Thaís - Tem como Joske.APOLONIO - Não Jorge Cetl é outro. Esse é alemão Ernesto Yoske, se escreve com y, o, s, k, e, escreve em cima aí Yoske.APOLONIO - E dois filhos de imigrantes que eram Jorge Cetl, filho de uma família checa, Tcheco-eslováquia, e o Wolf Reutberg, o mais jovem da nossa delegação, muito jovenzinho, filho de uma família de imigrantes romenos, se escreve r, e, u, t, b, e, r, g. Estou enriquecendo aí a tua lista.Thaís - O Ernesto Yoske...APOLONIO - Era alemão.Thaís - Alemão... ele foi tido como trotskista lá.APOLONIO - Não nunca foi. Nunca foi, muito meu amigo, eu conheço muito bem, nunca foi.Thaís - Parece que teve uma perseguição contra ele. APOLONIO - Não, ele foi...Thaís - Pelas cartas que eu vejo.APOLONIO - Mas ele não foi preso por isso não. Ele foi preso porque ele trabalhava no Socorro Vermelho em São Paulo. Socorro Vermelho que era a organização de ajuda e solidariedade dos comunistas às famílias dos presos e tudo mais e tal, Socorro Vermelho, depois foi preso e foi expulso do país. Mas então nós éramos cinco civis: Ernesto Yoske, Jorge Cetl, Ramón Prieto, André (Bruno) Giorgio e Roberto Morena, que era membro do comitê central do Partido Comunista, e que seria na Espanha participante de organismos de direção do Partido espanhol.Thaís - Em Alicante, parece.APOLONIO - Em Alicante, sobretudo. Ao lado desses cinco civis, nós tínhamos quinze militares, dos quais dez oficiais, uma delegação que pesava muito também o lado militar. O lado técnico profissional. Há uma coisa também, há uma pequena página do... da História da Espanha nos documentos do KGB que estão lá na Universidade de Campinas, na Unicamp, onde você tirou essas coisas, compreende? Muito bem, em que se diz o seguinte é uma frase em que falam de mim e que se dizia que eu provavelmente teria sido o melhor militar brasileiro na Espanha. Eu tenho essa frase, saiu num artigo dum rapaz chamado Luís Carlos Prestes Filho...Thaís - Acho que foi o Carlos da Costa Leite que disse...APOLONIO - O Costa Leite que deve ter escrito isso...Thaís - É.APOLONIO - Eu queria falar sobre isso, para terminar. Eu fui um excelente oficial, porque eu já era um jovem oficial muito atento às minhas funções no Brasil, compreende? E tinha exercido funções como Tenente, tinha exercido funções de Capitão em Bagé no Sul, e tinha feito uma boa base profissional para mim. Depois eu sempre fui muito estudioso, primeiro na Espanha eu fazia parte de uma equipe que estudava muito para fazer coisas da melhor maneira possível, porque a desproporção de forças entre nós e os franquistas, era muito alta, desproporcional, então era preciso trabalhar muito também. Eu fui um excelente oficial, um (palavra inaudível) militar, a seguir, mas daí a dizer que eu fui o melhor... provavelmente o melhor oficial militar brasileiro na Espanha, é uma distância de alguns meses e alguns anos luz, mais do que aqui à Júpiter, mais do que isso, compreende? Porque é que a delegação brasileira, isso é que não se conhece porque as classes dominantes sempre foram muito... há valas no que se refere à nossa possibilidade de propaganda, a imprensa era para ela e o noticiário era para ela e contra nós sempre. Nós também fomos muito preguiçosos em fazer conhecer os lados positivos da esquerda no Brasil, Agora eu queria dizer, eu digo que isto está anos luz da verdade, porque apesar de eu ter sido um excelente oficial, ter tido funções de Capitão, de Coronel, de comandante, embora sempre com os galões de Tenente e o soldo de Tenente também. Mas apesar de tudo isso, eu seria... eu mentindo, não pode ser, está muito longe da verdade, porque a delegação brasileira atuou magnificamente na Espanha, e os 15, eu falo sobretudo dos 15, dos que eu conheci, Jorge Cetl e Eny Silveira, eles eram comissários políticos magníficos, e os outros foram oficiais, oficiais de muita valia e de muita responsabilidade na Espanha. José Gay da Cunha tem uma folha de serviço magnífica, Nemo Canabarro Lucas também, Carlos da Costa Leite também. Uma coisa muito importante que é preciso conhecer porque mostra o senso de responsabilidade política diante da sua organização, os tenentes e sargentos que eram enviados à Espanha e que eram da Aeronáutica, chegaram lá não tiveram lugar na Aeronáutica, mas éramos dez oficiais e cinco sargentos, não tinham lugar na Aeronáutica, e então eles não quiseram, não voltaram para o Brasil, como voltou o Brunswick França, como voltaram os outros não, eles aceitaram lutar na Espanha na condição de soldados, e foram ser soldados, cinco soldados nas Brigadas Internacionais, sobretudo na 12 Brigada, a Brigada Garibaldi, dos italianos.Thaís - Parece que alguns serviram na 15ª também a...APOLONIO - Um momento... no último instante, eles serviriam, nós todos serviríamos na 15ª Brigada, já na batalha final de Catalunha antes da derrota da Catalunha, e o comandante da nossa Brigada passava a ser José Gay da Cunha, com a função já, o já posto de comandante, dado pelos dirigentes das Brigadas Internacionais, compreende? Era a Brigada Lincoln, a 15ª Brigada. Mas então, foi grandioso esse espírito de sacrifício, oficiais que tem um imenso, uma imensa contribuição a trazer, sargentos especializados, como metralhadores, como observadores na Aeronáutica, e tudo o mais, podiam contribuir também enormemente, mas que não podendo trabalhar, atuar na Aeronáutica, aceitaram atuar na infantaria e nas Brigadas Internacionais, como soldados. Nós tivemos Dinarco Reis, aí nós tivemos David Capistrano, aí tivemos José Correia de Sá. Companheiros que foram, companheiros que... aí tivemos Delcy Silveira, e tivemos Eny Silveira era civil, e Delcy Silveira, quatro companheiros que trabalharam como soldados e que por sua capacidade assumiram funções de Tenentes e de Capitães, nas Brigadas Internacionais. Eu acho que é preciso render um pleito de homenagem, a esses 20, sem prejuízo dos outros, todos que eu não... e de todos os outros que eu não pude conhecer infelizmente. Render um pleito de homenagem pelo espírito de solidariedade internacional, pela recusa ao fascismo e ao nazismo, e às influências nefastas do capital estrangeiro, lá fora como aqui no Brasil, e pelo papel relevante que tiveram como comissários políticos, como oficiais pela Espanha republicana.Luís Fernando - O espírito de equipe desses sargentos que o senhor comentou agora é notável!APOLONIO - Claro é preciso notar isso, você escreve isso e ela escreve isso, porque é preciso realmente tecer uma homenagem muito alta a esses brasileiros que lutando na Espanha, lutavam pela nossa Aliança Nacional Libertadora, pelos mesmos programas, pelas mesmas bandeiras políticas, democráticas e nacionalistas, contra o mesmo inimigo o nazi-fascismo. As ditaduras de Franco, aqui seria o Estado Novo. E que ao mesmo tempo se desenvolveu profissionalmente e tiveram uma atuação magnífica, inclusive com esse imenso espírito de sacrifício, de oficiais e sargentos profissionalizados, especializados, que iam trabalhar como simples soldados, no choque, no perigo do soldado, muito maior do que o perigo para os oficiais.Thaís - Depois em fevereiro de 39, todos foram para França ou alguns, o senhor sabe se alguns foram repatriados, foram da Espanha para o México, da Espanha para o Chile, o senhor queria ir para o Chile...APOLONIO - Eu não poderia te dar uma informação justa não. Houve alguns companheiros nossos que puderam vir diretamente para o Brasil, ou passaram pelo Chile ou pelo México... Eu poderia citar aí o Nemo Canabarro Lucas...Thaís - Veio direto para o Brasil?APOLONIO - Não sei se foi direto para o Brasil ou se passou por Montevidéu ou pelo México. Mas não passaram pelos campos de concentração na França. E Nelson Alves, eu acho que a grande maioria passamos, fomos jogados, derrotados na Catalunha, fomos jogados nas fronteiras da França, tivemos que depor as nossas armas no território francês, e fomos jogados em campos de concentração. Mas é isso aí eu acho que não tenho mais nada a te dizer. A não ser renovar o prazer de ter conhecido vocês. E pedir que destaquem muito o alto significado, o valor profissional, e profundo sentimento político e ideológico dos participantes, sobretudo aqueles que sendo oficiais e sargentos especializados, fizeram a guerra na condição de soldados, e como soldados ganharam funções de Tenentes e de Capitães nas Brigadas Internacionais. Eu acho que vocês devem enaltecer isso para fazer conhecer ao nosso povo, porque a esquerda não tem memória.Luís Fernando - (...) Nós priorizamos a figura, nós às vezes até criamos mitos, em detrimento desse corpo que o senhor citou agora na entrevista. Dessa unidade, que o exemplo maior são os Sargentos da Aeronáutica, tem poucos estudos, o senhor cita a ANL (...) Mas uma outra coisa... as Ligas Camponesas também são desconhecidas (...).APOLONIO - Mas aí Fernando, eu acho que o problema não é tanto a culpa das classes dominantes, elas estão no seu papel, de destacar (...) é um problema da esquerda, da esquerda que não tem memória, que não valoriza a sua História. Esta é uma luta que nós todos temos que fazer juntos. Eu quando dou esta entrevista a vocês, faço com muito, muita alegria porque eu sei que estou contribuindo para isso. Thaís - Quando o senhor retornou ao Brasil, em 46, o senhor estava com situação regularizada com o governo federal?APOLONIO - Em 46 quando eu voltei havia legalidade no Brasil, havia depois de 45 a restauração da Constituição no Brasil, então é o momento, em 45/46 há eleições, e há eleições para a Constituinte para se criar uma nova Constituição, que seria a Constituição de 46, nós tínhamos uma nova Constituição.Thaís - Mas a patente... não voltou? De militar?APOLONIO - A patente só voltou em 88, nós fizemos vários requerimentos etc e tal, mas só em 88, porque nós tínhamos contra nós o fantasma do comunismo, que cobriu a História do Brasil todo esse período. Hoje estão assustados... estão assustados porque celebraram tanto o fim da União Soviética, a crise da União Soviética, o fim da União Soviética, e consideraram até o fim da História... O capitalismo ia ser dominante daqui por diante. E o resultado é que hoje nós temos o parlamento da Rússia que representa 2/3 da antiga União Soviética, de maioria comunista...Segunda entrevista com Apolônio de Carvalho:Esta entrevista com Apolônio de Carvalho foi realizada em seu apartamento no Rio de Janeiro, em 23 de Julho de 1999. Foram transcritas principalmente as falas de Apolônio sobre as décadas de 30 e 40.APOLÔNIO - (...) Em 30 nós temos o resíduo do tenentismo, o movimento dos tenentes vai ser um dos componentes da força social e política que vai acabar com o governo de Washington Luís e acabar com as velhas oligarquias em certa medida, porque uma parte dessas oligarquias vai se unir às forças da burguesia industrial e comercial para fazer um governo de coalizão. É um movimento profundamente urbano (...) se tem o crescimento do movimento operário, crescimento da classe operária, com as conquistas sindicais e com as conquistas políticas, nós vamos ter um movimento similar ao que se chamava a política das Frentes Populares que seria vitoriosa na França, que seria vitoriosa na Espanha e que seria praticamente em 31, sob outros aspectos que seria vitoriosa no Chile. É um movimento em que a classe operária de um lado, a rebeldia organizada de setores da classe média através dos tenentes, dão um cunho novo a vida política do país e iniciam uma nova era, era o fim da República Velha, e o princípio da República Nova. Thaís - Nessa época o senhor tinha vinte e poucos anos...APOLÔNIO - Em 30 eu tinha 18 anos, eu sou de 12. Então eu começo a sentir os problemas da vida política e a sentir o impulso e o estímulo desse movimento social muito bonito... Aliás os problemas de família também intervêm, porque meu irmão era tenentista, porque meu pai sempre foi desde a Escola Militar no século passado averso aos regimes de força, tinha sido proclamador da República, tinha sido sempre um democrata, um nacionalista. Tudo isso ajudou a integrar-me no movimento popular. Em 30 nós passamos a ter com as Frentes Populares um governo... o programa de um governo, a luta por um governo ao mesmo tempo patriótico, quer dizer, nacionalista e democrático. Nacionalismo e democracia juntos, coisa que mais tarde certas faixas da esquerda vão querer dissociar sob desconfiança o nacionalismo etc... isso também era preparação ideológica da burguesia de um lado, para preparar para as privatizações e a entrega do patrimônio nacional. Por outro lado também era a visão de certas faixas da esquerda que procuravam uma política mais isolacionista com medo de certas alianças que pudessem (...) esmaecer a pureza, o purismo ideológico das esquerdas: nós somos os donos das verdades, somos poucos mas somos os melhores, como vamos nos confundir com aliados de tal tipo (...). O movimento de 30 se beneficia de condições extremamente particulares, é um momento em que você tem na cena política a divisão profunda das classes dominantes, porque os grandes senhores de terras que dominaram a cena política como continuadores dos grandes proprietários de terras, de escravos, os grandes escravistas até 88, depois passaram a ser os donos de terras, o monopólio da propriedade da terra isso marca o período de absolutismo, de domínio absoluto dessas forças na economia com o café, lá no Norte com a borracha, no Nordeste com a cana e com o algodão, mas sob a ameaça de crises sucessivas nós chegamos a beira dos anos 30, aos anos 30, sob a maior crise comercial da história do capitalismo na América Latina, crise de 29. Você encontra também uma crise da economia, você tem a crise da propriedade capitalista, recuada nas mãos dos grandes senhores de terra e o crescimento de uma burguesia industrial, uma burguesia industrial que começa a se desenvolver no Brasil em função da Primeira Guerra Mundial, porque a Primeira Guerra Mundial determinou em um momento dado, o bloqueio dos mares e nós a partir de 1905, 1910, 1914, nós comprávamos todas as coisas industrializadas importadas, porque nós não tínhamos indústrias (...) é preciso rapidamente verter dinheiro na indústria e produzir no Brasil (...). Entre 1913 e 1920 o número de estabelecimentos fabris (...) cresce de 6.000 a 13.000 (...) em conseqüência cresce também a classe operária (...), no quadro do operariado especializado, em 1921 chega a essa exorbitância pela época: 200.000 operários (...). Então você tem o crescimento da indústria, você tem a presença do capitalismo em decorrência a presença do proletariado, da classe operária, mas e o movimento operário? (...) Você tem da parte da classe operária um desenvolvimento de suas forças, de seus sindicatos. No final dos anos 20 já tem a reivindicação de uma central sindical (...). O Bloco Operário e Camponês em 26, 29, destinado inicialmente a unir as organizações e os partidos da classe operária, se ligava intimamente ao que se chamava nessa época - não Partido trabalhista que iria aparecer em 1947 - mas o movimento trabalhista, candidatos democratas, nacionalistas da pequena-burguesia, vereadores e deputados estaduais, o Rio era a sede das duas coisas, era a sede inclusive do parlamento nacional, nessa época era a Capital.... como Maurício de Lacerda, como Medeiros de Albuquerque e como muitos outros, formavam que lutava pelos direitos das classes operárias, lutavam por conquistas como a lei de férias, salário mínimo e outras coisas e ao mesmo tempo defendiam os trabalhadores num quadro geral (...) a primeira expressão de frente única no Brasil, entre forças das camadas operárias e forças das camadas médias, estabelecidas, reconhecidas e de relativa influência no Parlamento, na Câmara Municipal e na Assembléia Legislativa... a primeira idéia de frente, com pequenos momentos de alguns meses de legalidade, porque depois de 26... com o governo Arthur Bernardes, de 22 a 26, com as grandes lutas operárias recorreu ao estado de sítio do primeiro ao último dia. Nós tivemos as lutas das camadas médias e sobretudo da faixa militar das camadas médias com os tenentes (...) você tem essa situação de luta das camadas médias, de descontentamento das camadas médias com um regime muito opressivo, apoiado numa farsa de democracia, numa mentira de democracia que era o regime de democracia nas mãos das velhas oligarquias, então tinha muita deturpação dos resultados eleitorais, tinha muita fraude, não tinha legalidade dos partidos políticos de esquerda, não tinha possibilidade de uma central sindical... assim mesmo se conquistavam certos elementos, como a lei de férias de 26 e outras pequenas vantagens (...).FIM LADO A - FITA 1
INÍCIO LADO B - FITA 1
APOLÔNIO - (...) A classe operária sente o que é a ditadura, ela sente que em 30... em 30 ela não faz confiança...Thaís - No novo governo...APOLÔNIO - E nem a tentativa de revolução com o Getúlio. De um lado o Prestes não aceita, mas a classe operária não aceitava, procura posições independentes. Em 29, se preparam as forças políticas para as eleições de 30, eleições presidenciais. É o momento que Washington Luís apresenta a candidatura de um outro paulista, Júlio Prestes. Washington Luís não era bem um paulista, era um paulista de Macaé (...). Havia inclusive um diálogo, um humor entre os partidários de Júlio Prestes e os partidários de Antonio Carlos que era um outro candidato a presidência, mas que cedeu lugar a Getúlio Vargas que fez face à Julio Prestes. Os defensores de Júlio Prestes diziam assim: "Eu falo como um paulista, paulista velho de guerra, paulista de minha terra, paulista de Macaé...". Então temos entre choque entre elementos das classes dominantes divididos, quebrando inclusive uma velha tradição do rodízio do café com leite... um governador de São Paulo, terra do café, um governador de Minas, terra da pecuária e do leite. Mas Washington Luís não quis ceder lugar, ele que era paulista de Macaé, a um candidato de Minas, Antonio Carlos... era um choque muito sério. Criou-se uma organização de aliança das forças mais progressistas, chamada Aliança Liberal (...) você tem as classes dominantes divididas, tem a grande crise de 29, aumentando as divisões, porque tem muita gente que vai à falência, grande crise do café, grande crise dos outros produtos de exportação e ao mesmo tempo multiplicando o sofrimento, o desemprego para a classe trabalhadora e para a classe operária em particular. A classe operária avança sentindo a necessidade de defender seus interesses, mas também sentindo que não se pode confiar nas classes dominantes, porque elas marcharam sempre que possível para esmagar as reivindicações operárias para regimes de ditadura. Não é à toa que quando se faz o movimento de 30 e o movimento de 30 é vitorioso, um dos primeiros decretos de Getúlio Vargas: abolir o parlamento, abolir a justiça federal, estabelecer um governo que ele não chamava de ditadura, chamava de governo discricionário, trabalhava a sua discrição. Nessas eleições de 30 quando se apresentam Júlio Prestes, candidato dos paulistas e Getúlio Vargas unindo gaúchos, mineiros, paraibanos, o nordeste... nós iríamos ter também uma candidatura popular (FRASE INCOMPREENSÍVEL) depois do Bloco Operário e Camponês, uma nova tentativa de aliança política que seriam os comunistas, os socialistas, os tenentes e para isso Astrojildo vai a Buenos Aires, vai a Montevidéu discutir um programa de um novo governo com os tenentes, era um pouco difícil porque os comunistas querem reforma agrária, querem certas coisas que os tenentes ainda não estão habituados a abordar, mas o programa de um candidato das esquerdas e esse candidato seria Luís Carlos Prestes. Nesse momento intervém no Brasil, no movimento operário, a Internacional Comunista, que não aceitava a aliança dos comunistas com as camadas médias...Thaís - Com os tenentistas...APOLÔNIO - Com as camadas médias no mundo: os socialistas na Europa, a subida de Hitler ao poder foi porque os socialistas e os comunistas eram absolutamente os maiores partidos donos das urnas, mas a imposição da Internacional Comunista foi de jogar os comunistas contra os socialistas e então os nazistas estavam crescendo e passaram a ser mais fortes que os socialistas isolados e que os comunistas isolados. Aqui no Brasil seria não aceitar a aliança com as camadas médias que eram os tenentes, que eram os que faziam a luta contra as forças mais conservadoras. Esse empenho de termos um terceiro candidato popular estava avançando em 29, é cortado ao meio pela influência da Internacional. Nós temos o movimento político-militar de 30. Não foi uma revolução porque foram forças conservadoras que tomaram o poder, aliança de forças ligadas ao capitalismo nascente e forças mais flexíveis ligadas aos antigos latifundiários, os senhores de terras que eram os donos do poder, mas também já com a presença nos anos 30, da classe operária e da busca da classe operária de uma solução política e essa solução política no momento em que havia a ameaça do nazismo sobre o mundo, ameaça do fascismo sobre o mundo, ameaça do integralismo de golpe de ditadura, ameaça de Getúlio que desde o primeiro dia já marchava com o regime de ditadura, foi necessário o movimento de vocês paulistas, do 9 de Julho de 32, pela Constituição para que se passasse pela nova constituinte, por uma nova Constituição que surgiria em 34, sob essas influências o integralismo, os camisas-verdes, que nós chamávamos os galinhas-verdes, porque tínhamos as brigas de rua e nós temos a presença da Aliança Nacional Libertadora, dentro da política que era o elemento chave da tática do movimento socialista e comunista na Europa e no mundo, da política das Frentes Populares. Essa Frente Popular em 3 meses de 30 de março a 11 de julho essa Frente Popular passa a ter de 100 a 150.000 filiados e de 200 a 300.000 simpatizantes participando de suas manifestações e de suas lutas etc. (PARTE INCOMPREENSÍVEL) Nessa época, até 34, eu sou aluno da Escola Militar. Vou me formando como um membro de um partido chamado "Partido do Contra" porque eu começo a ver os males e os contrastes da sociedade, começo a ver as imensas desigualdades da sociedade, as injustiças sociais e eu passo a ter cultura, a ler literatura, a ler filosofia, a ler um pouco de ciência etc. Tenho amigos que são comunistas, me baseio em obras de professores que chamam a ter um ideal e que ensinam que não adianta apenas fazer a crítica da sociedade, mas é preciso ter uma alternativa para transformar essa sociedade e essa alternativa tem que servir ao povo e portanto tem que se apoiar no movimento social. Isso eu aprendo entre os meus 18 e meus 21 anos na Escola Militar. Estou fazendo parte do "Partido do Contra", não sei se existe Partido Comunista, se existe outros partidos, não sei ainda, mas quando o Bloco Operário e Camponês vem fazer propaganda eu assisto a vários comícios, eu e vários colegas, assistimos aos comícios e vamos votar no Bloco Operário e Camponês. Eu saio oficial, tenente de artilharia vou para Bagé e lá não tenho partido político mas leio muito e em 1934 há um fenômeno cultural no Brasil, com a constituinte, com a marcha para a liberdade depois desses anos de ditadura inicial de Getúlio 30 a 33, abrem-se no Brasil o campo das edições dos livros de esquerda, então vou ler esquerda, vou me embeber de idéias de esquerda etc. Quando surge a Aliança Nacional Libertadora em março de 35, eu que estava em Pelotas de férias, Rio Grande do Sul é a terra da minha mãe, ela era de Bagé mas gostava muito de Pelotas. Lá eu conheço um jovem capitão que era um dirigente comunista, que era um dirigente da ANL que me dá documentos, que me quer ganhar. Eu não aceito logo porque acho que eles são ainda muito moderados, eu já estou muito cheio das minhas leituras, leio anarquismo, leio socialismo, tenho um pouco de confusão no quadro mas sou bem do contra, muito mais do contra. Meu "pc" pequeno do contra passou a ser "p" pequeno mas "C" do contra bem grande! Eu sou bem do contra! Bem revoltado contra a realidade, eu acho ainda moderada esse primeiro programa... Esse oficial Moésia Rolim, meu amigo, que servia em Pelotas, ele mandou um amigo, operário que vinha discutir com os anarquistas em Bagé para criar a ANL e pediu que ajudasse o operário. O operário me pediu para o acompanhar em uma reunião difícil que ele iria ter com dirigentes anarquistas muito fortes. (...) (Não vivíamos) num país de grande indústria, (vivíamos) num país de indústria média de pequena indústria e isso facilita muito a disseminação do anarquismo, ao lado do que era sempre a base do anarquismo, que é o artesanato, que são os alfaiates, os sapateiros etc e eu tinha muito boas relações com eles, eu lia muito e discutia muito com eles. Vou a essa reunião e o enviado do meu amigo, da ANL, ele defende a ANL e o programa, mas a partir de um momento ele passa a ser acossado pelos dirigentes anarquistas que eram muito sólidos, fortes. Ele apela para mim, estou no meio da assistência, ele diz: "Mas o meu amigo o tenente Apolônio, que está aqui conhece esse programa e podia participar da nossa reunião... e me passa a bola, no meio campo...O meu amigo de Pelotas me tinha dado todos os documentos, tinha discutido... eu estava bem inteirado... passo à luta e nós ganhamos os anarquistas para apoiar a ANL, depois de algumas loucuras... a reunião começou num sindicato mas as casas dos sindicatos eram alugadas de duas em duas horas para fazer várias reuniões consecutivas...Thaís - Então tinha que mudar de lugar...APOLÔNIO - Eu convidei que viessem à minha república, eu vivia em uma república, meus colegas tenentes de cavalaria estavam fora em operações na fronteira, eu reuno no quintal, vem 250 pessoas, discutíamos mas o pessoal adere e eu vou trabalhar na Aliança Nacional Libertadora.Thaís - E nessa época o senhor não tinha (medo da repressão)?APOLÔNIO - Não porque a Aliança Nacional Libertadora era legal, então eles não podiam me tocar e depois eu era um militar muito cioso das suas responsabilidades, fui um tenente muito (cumpridor) das minhas funções, muito capaz, muito competente. Dava aulas para meus soldados se candidatassem a cabos etc e tinha muita influência na minha tropa... não com outro objetivo não, mas da minha maneira de ser mesmo, mas também eu era muito respeitado como um oficial sério, cumpridor e inovador, porque eu fazia inovações etc. Até julho de 35 a ANL era legal. Em 5 de julho sai o manifesto assinado por Luís Carlos Prestes em nome do Partido...Thaís - De todo poder à ANL...APOLÔNIO - Você já leu isso?Thaís - Já li.
APOLÔNIO - Que era uma declaração de guerra ao governo Getúlio Vargas e era um convite aos militares em particular e ao povo em geral para fazer uma rebelião e derrubar Getúlio, sob um programa muito avançado, um programa que quase que falava em conselhos operários soviéticos, sugeria e tudo mais... Getúlio com essa provocação, ele que tinha medo da Aliança Nacional Libertadora, da sua influência nas massas trabalhadoras, manda fechar... A polícia apoiada nos integralistas passa atacar todas as tentativas de comícios de concentrações que nós passamos a fazer.
Thaís - No Exército a coisa muda, ser um militante da ANL já passa a ter problema?APOLÔNIO - Eu não participo mais, eu não participo mais da vida pública, porque era ilegal. Mas não me tocam não, eles vão me tocar depois... a partir de julho a ANL está escorraçada das ruas, porque a polícia não deixava fazer nem comícios, nem manifestações. Eu sou um tenentinho e continuo trabalhando... Sou oficial competente, ninguém mexe comigo. Vamos esperar, fazer recurso à justiça, se ela voltar a ser legal eu volto... Mas há o movimento de novembro de 1935 em Natal, feito pelo Partido, há o movimento em seguida de Recife, isolado também é derrotado. Prestes e os dirigentes comunistas resolvem fazer uma cartada, a tentativa de um golpe militar no Rio.Thaís - Para ver se vira de uma vez...APOLÔNIO - Mas também era a capital da República, podia ter uma certa força de decisão. Os dirigentes do Partido diziam: "Nós podemos fazer uma greve geral!". Mentira, não houve nada. Houve um movimento isolado, no Campo dos Afonsos, houve um movimento isolado no 3º Regimento de Infantaria na Urca, os dois movimentos foram absolutamente derrotados e Getúlio passou em seguida para um trabalho de repressão violenta contra todos aqueles que tivessem simpatia pela ANL. A partir daí eu não sou preso em seguida não, mas depois eu sou denunciado, nesse momento se fazem milhares de prisões, todos os que fossem socialistas, comunistas, de esquerda. Em fins de janeiro (1936) há denuncias contra mim e sem ser processado, sem ser ouvido, eu sou preso e sou expulso do Exército como outros oficiais. Thaís - Eu li o processo do senhor no Tribunal de Segurança Nacional, que está no Arquivo Nacional e eles não encontram nada que pudesse comprometer o senhor e um militar disse: "depois que fecha a ANL ele não militou mais no Partido". Uma das alegações dos seus superiores era que o senhor conversava muito com os seus soldados....APOLÔNIO - Ah, muitíssimo, dava aulas...
Thaís - Um (superior) até falou que o senhor dizia para os seus soldados: "Pode baixar a mão, moreno velho". O senhor lembra disso?
APOLÔNIO - Isso estava no Tribunal de Segurança? Thaís - Está no processo.APOLÔNIO - (rindo) Mas é isso mesmo, um ou outro soldado que era mais íntimo meu...Thaís - Eles falavam: "Ah, ele não é muito de disciplina..."APOLÔNIO - Ao contrário, fui muito disciplinado. Quando fui preso inicialmente fui preso no quartel e os soldados da guarda vieram me dizer: "Tenente vamos fugir juntos". Não tinha nenhuma ligação com a vida clandestina. Vivi a partir de julho no quartel, na minha República. Onde iria levá-los para se esconder? Eu não tinha condições para isso, não tinha ligação com a organização clandestina do Partido comunista etc. Depois eu tinha diretivas do meu comandante, que ia ser preso e que fugiu para o Uruguai, era o Major Costa Leite, tinha diretivas de me deixar prender, porque eu não ficaria preso muito tempo. Mas ele estava muito enganado...Thaís - Permanecer também para reorganizar o...APOLÔNIO - Não tem a mínima (dúvida), eu tinha o meu prestígio, a minha força. Diziam assim: "Daqui a pouco você vai ser solto, porque eles não tem nada contra você".Thaís - Mantém uma pessoa importante ali na área... APOLÔNIO - "E nós vamos tentar de novo uma rebelião e você já está com a tropa".Thaís - Pronta... De Bagé o senhor vai (para a prisão)...
APOLÔNIO - Já vou como civil porque já sou expulso das Forças Armadas, sou preso em 22 de janeiro, depois me levam do meu quartel para o quartel de cavalaria, depois sou mandado em abril para o Rio, como um hóspede de honra do governo Getúlio Vargas em dois hotéis diferentes: a Casa de Detenção e a Casa de Correção. Lá conheço o movimento, conheço o Partido comunista, vou ler muita coisa sobre o movimento comunista. Tenho os meus antigos colegas da Escola Militar que eu sabia que eram qualquer coisa muito interessante, porque vinham conversar comigo sobre coisas muito interessantes...Thaís - Quem era?
Thaís - Quem era?
APOLÔNIO - Faziam parte de uma célula clandestina do PC, na Escola Militar, mas eu não sabia, mas achava que eles eram diferentes dos outros, que eles eram mais capazes, mais orientados etc. Eles não se abriam não porque era...Thaís - uma organização...APOLÔNIO - Do Partido clandestino, mas então vou me encontrar com eles, vou estudar o marxismo. Como não se fazia nessa época o recrutamento nas prisões, tinha havido antes uma experiência que eles (do PCB) não haviam gostado, no primeiro dia em que sou posto em liberdade, em fins de junho de 1937, entro no Partido. Passo a ser comunista. O Partido comunista me convida para ir à Espanha, com um argumento muito claro, eu já gostava muito de jornalismo na Escola Militar tinha sido diretor da revista, escrevia em prosa, escrevia em verso, na prisão eu escrevi dois artigos interessantes sobre economia, com os dados de jornais (rindo)...
Thaís - E baseados também nos cursos que havia na prisão, ou não?
APOLÔNIO - A prisão era mais para marxismo. Fiz dois artigos sobre a realidade brasileira. Problema do café, do algodão em São Paulo, que estava preparado, orientado e servindo a estrangeiros, o capital estrangeiro, o problema dos transportes no Brasil...Thaís - Das ferrovias...APOLÔNIO - Das ferrovias em geral. O Partido disse, você na Espanha... a Espanha está sendo agredida pelos alemães e que tem o programa da Frente Popular que é igual ao nosso programa, você na Espanha está lutando por nós, por nossos objetivos aqui no Brasil contra os mesmos inimigos. Eu aceito. Eu ia me casar dois ou três meses depois... converso com a minha noiva, desfaço o meu casamento. Ela disse: "Não, não eu espero", eu digo "não espera, não você é muito jovem, eu nem sei se volto". Luto na Espanha, luto na França e volto e me integro à luta novamente. Já te dei todo os anos 30.
Thaís -Vamos voltar um pouco na época da prisão, o senhor se lembra de algum curso que fez, quem...
APOLÔNIO - Não prisão eu fiz cursos de introdução ao marxismo, alguma coisa sobre o capital, alguma coisa sobre Lênin.
Thaís - Cursos dados por militares?
APOLÔNIO - Não, tinham de ser dados pelos comunistas que estavam comigo, antigos militares, meus colegas da Escola Militar, que estavam expulsos do Exército, estavam presos e tinham entrado para o Partido comunista muito antes, eu não havia entrado para o Partido comunista na prisão, entrei quando saí da prisão.Thaís - Eu li aquele livro do Graciliano Ramos - Memórias do Cárcere - e ele fala assim: "quando os militares chegaram era um grupo muito fechado..."APOLÔNIO - E era mesmo. Mas também a própria reação ajudava nisso, o que não justificava que a gente fosse fechado. De fato o Partido era muito fechado mesmo, ele falou isso quando ele estava na Casa de Correção, lá havia uma divisão de presos políticos, uma parte dos presos políticos aqueles que eles consideravam menos perigosos, viviam num sobrado, num lugar que era uma antiga capela, mas que (servia como) um alojamento muito amplo, lá estavam Graciliano Ramos, os professores, advogados, Aparício Torelli, o Barão de Itararé, (enfim) os intelectuais. Embaixo era o restaurante, mas havia adiante uma praça muito grande que nós conquistamos para praticar esportes, 70 metros de um lado e 70 de outro. Tinha os cubículos para os presos comuns...Thaís - Salas pequenas...APOLÔNIO - Salas pequenas, fechadas. Nós entrávamos nos cubículos às 7 da noite e saíamos às 7 da manhã. Íamos para o restaurante tomar café, íamos para a praça para jogar voleibol, jogar futebol, jogar xadrez, ler jornais. Também ali nós fazíamos os nossos grupos de estudo e alguns companheiros militantes comunistas me (mostravam) livros. Nós reivindicamos isso, um certo número de presos políticos que queríamos aprender, conhecer as coisas, porque eu gostei muito dos comunistas, da sua luta, me apaixonei pelo Partido Comunista e quis entrar, mas só podia entrar ao sair (da prisão). No primeiro dia de saída já entrei para o Partido.Thaís - Mas o senhor já participava das reuniões...
APOLÔNIO - Não das reuniões de Partido.
(FIM LADO B - FITA 1)(INÍCIO LADO A - FITA 2)APOLÔNIO - (...) O Partido era muito fechado, muito secreto. O Graciliano também era fechadão... eu gostei muito dele, mas era um homem muito calado...Thaís - Só observava....APOLÔNIO - Claro, muito calado, muito pessimista... nós éramos jovens de vinte e poucos anos, fazíamos esportes, queríamos discussões, líamos muito, tínhamos nossas maneiras de nos distrair, uns escreviam outros estudavam, nós éramos muito alegres. Graciliano chegava para um de nós e dizia: "como é que nessa sociedade, nessa situação vocês (conseguem) fazer essas coisas". (FRASE INCOMPREENSÍVEL) Ele já tinha livros, era professor, era uma pessoa muito mais alta que nós, tinha razão para não acreditar que tivéssemos motivos para estar rindo sempre. É que o Partido comunista nos mentia, a direção do Partido comunista mentia, nos dizia que Novembro de 35 tinha sido apenas um ensaio...Thaís - De algo maior?APOLÔNIO - Que algo maior se preparava e que em Novembro de 35, que nós dentro de em pouco tempo teríamos uma nova insurreição e que tudo se acabaria. Nós acreditávamos, porque éramos jovens idealistas, cheios de ilusões.Thaís - E as condições de vida da prisão?APOLÔNIO - Nós tínhamos um passadio bom, boa refeição, nosso café com leite. Eu não tinha parentes não, mas todos os presos tinham as visitas...Thaís - Tinham as ajudas...
APOLÔNIO - Isso, uma ou duas vezes por semana, as visitas traziam bolo, traziam doces, traziam livro. Quando nos fechavam às 7 horas, nós não íamos para os cubículos, os cubículos estavam abertos. Tínhamos uma parte da noite em palestras, em conferências, tínhamos nosso café com pão queijo para varar a noite em discussões.
Thaís - Não tinha preso comum...APOLÔNIO - Nós defendíamos a nossa vida também.Thaís - E preso comum nunca...APOLÔNIO - Não preso comum era fora...Thaís - E aí era só...APOLÔNIO - Só preso político.Thaís - Havia alguma diferença entre a Casa de Detenção e a de Correção?APOLÔNIO - Tinha porque a Correção tinha esses dois estágios a prisão nas celas, nos cubículos (onde ficavam) nós os militares e a chamada capela, o sobrado onde estavam os jornalistas, os intelectuais, os professores. Esses tinham mais liberdade ainda que nós.Thaís - E na outra prisão...APOLÔNIO - Era fechado, a porta da Casa de Correção estava fechada, mas eles estavam lá à vontade...Thaís - Dia e noite...APOLÔNIO - Dia e noite.Thaís - E na outra prisão era todo mundo fechado...APOLÔNIO - Não, havia um "u", um corredor fazendo um "u" e havia as celas, cada um de nós tinha a sua cela, mas aberta.Thaís - Isso na Casa de Correção?APOLÔNIO - Na Casa de Correção. Para os militares. Nós também brigávamos, fazíamos greve de fome se tínhamos reivindicações... e ganhávamos. Getúlio tinha medo que os oficiais fazendo greve de fome criassem um problema junto ao Exército, à Aeronáutica, a Marinha... (que poderiam pedir explicações): "por que tratar mau dos oficiais?". Éramos oficiais e sargentos.
Thaís - Na Casa de Detenção era diferente um pouco?
APOLÔNIO - Era diferente no sentido de que era uma coisa só, não tinha capela... era um grande edifício que tinha um andar térreo com um salão enorme que nós chamávamos a "praça vermelha", onde nós fazíamos os nossos comícios, as nossas festas, as nossas marchas triunfais, nós tínhamos o 7 de Setembro, tínhamos o 5 de Julho...Thaís - Tinha marcha lá dentro?APOLÔNIO - Mil pessoas...Thaís - Mas tudo organizado?APOLÔNIO - Tudo organizado. Em cima ficavam nossas celas e todo esse conjunto era fechado, mas dentro desse conjunto nós éramos donos, fazíamos festas, havia aulas, havia exercícios físicos, havia grandes manifestações, grandes comícios com discursos e sobretudo havia muitas conferências, havia pessoas muito capazes que faziam conferências para nós: Rodolfo Ghioldi que era um homem da Internacional, secretário geral do Partido Comunista Italiano (era do PC argentino). Tínhamos a nossa rádio a PR-ANL, a Voz da Liberdade. Todas as noites nós tínhamos um editorial, análise da situação política, análise das nossas condições, o que era preciso reivindicar, depois tínhamos a nossa parte literária, com canções.Thaís - Cada um falava um pouco... APOLÔNIO -Não cada um, (falavam) elementos muito capazes, com voz muito boa. Todos ouviam...
Thaís - E a volta em 46?
APOLÔNIO - Final de 46. Da Espanha eu vou para a França. Na Espanha nós perdemos, mas na França nós ganhamos. Volto da França como Coronel. É outra coisa...Thaís - Coronel vitorioso que encontra um PCB já...APOLÔNIO - Um PCB legal, em plena campanha eleitoral... mas por três meses apenas.Thaís - Em que mês o senhor chega?APOLÔNIO - Eu chego em dezembro... quatro meses porque 7 de maio nós somos fechados. Mas antes disso me propõe para que eu seja o presidente provisório da (PALAVRA INCOMPREENSÍVEL), eu trabalho na União da Juventude Comunista. Nós passamos a estudar... havia um companheiro da FEB Gervásio de Azevedo, muito capaz e o João Saldanha que era conhecido aqui no Rio como homem do Botafogo, treinador do Botafogo, mas que era uma figura muito interessante, dirigente do Partido Comunista. Nós criamos a União da Juventude Comunista, fazíamos um trabalho muito amplo, nos ligamos a um programa literário de cultura e de esporte com a ACM - Associação Cristã de Moços, de caráter mais ou menos religioso. Trabalhamos amplamente, fazíamos conferências, sonhamos com grandes manifestações, com grandes bandeiras coloridas como fazia a União da Juventude na União Soviética da época. Os militares, generais, almirantes, brigadeiros conservadores tinham muito medo que nós pudéssemos perverter a juventude. Os cardeais, havia nesse tempo um cardeal chamado Jaime Câmara que era um reacionário desgraçado, mas ou menos parecido com esse Eugênio Salles de hoje. O Jaime Câmara e outros príncipes da Igreja jogavam lama em cima da União da Juventude Comunista. Nós conseguimos legalizar a União da Juventude Comunista, era uma organização legal, eles jogaram a Juventude Comunista na ilegalidade, diziam impropérios na imprensa, no rádio... não havia televisão ainda...Thaís - A Juventude Comunista não tinha nenhuma ligação com as escolas militares?APOLÔNIO - Não, não...Thaís - Só com civis mesmo...APOLÔNIO - Foi criada pelo Partido...
Thaís - Com atuação no meio civil só?
APOLÔNIO - Mas é claro, na juventude... juventude estudantil, juventude camponesa. Nós só tivemos um mês de existência legal, mas também logo depois fecharam o Partido. Thaís - E nessa época quando o senhor voltou, chegou a reencontrar pessoas com quem lutou na Espanha? Os brasileiros com quem o senhor encontrou na França?APOLÔNIO - Encontrei Costa Leite... passei pela França, eles vieram para o Brasil, vieram antes em 41. Da França vieram para o Brasil. Eu não quis vir, quis ver como se passariam as coisas na França, para participar, aprender etc.
Thaís - O senhor optou mesmo por ficar?
APOLÔNIO - Mas claro! Entre nós, porque nós podíamos escolher, porque quem vinha para o Brasil, não vinha em liberdade não, ia para a prisão. Eu não queria a prisão tampouco. Mas depois já tinha a minha namorada... casado...Thaís - E como o senhor vê esse projeto político do PCB em 46?APOLÔNIO - Para mim era uma coisa muito agradável. Eu vinha de uma França onde na época de guerra e de ocupação militar, o Partido Comunista Francês tinha ficado na ilegalidade e muito perseguido. Nós fizemos a resistência lutando dentro da clandestinidade também, não só diante dos alemães que ocupavam a França, não só diante do governo de Vichy, que era o governo fantasma em nome da França, que era o governo imposto pelos alemães, para servir os alemães, mas também porque o Partido era colocado na ilegalidade, perseguido. Nós éramos perseguidos pela polícia francesa, pela Gestapo e pela Wermatch que era o exército alemão. Nós que participamos da resistência e nós libertamos a França, em agosto de 44, passamos por um período de liberdade depois da clandestinidade. Quando eu chego ao Brasil... estava na ilegalidade quando saí do país, encontro o Partido legal, a vida legal... estou no meu ambiente, estou muito satisfeito. Na Juventude nós fazíamos a análise da juventude, o que é a juventude no Brasil, o que é o nível de consciência de cultura dos moços, publicamos artigos em nossos jornais, nas nossas revistas, participamos de muitos atos políticos e esportivos com a Associação Cristã de Moços. Mas com um mês eles...Thaís - Eles fecham.APOLÔNIO - Porque nós éramos a jovem peste vermelha... Acho que já te dei um bocado de material. Faça a ligação entre o geral e o particular. Não fique nesse trabalho artesanal de fazer uma coisa isolada. Tem que situar na época e no ambiente, porque se você quer falar dos movimentos sociais de 30 tem que ver porque eles surgem, porque outros virão como um produto natural da luta política, da luta de classes das divergências e contradições no interior das classes dominantes e das próprias crises da economia capitalista.Thaís - Em 46 eu vi que o Dinarco (Reis) tentou reorganizar a ANL. O senhor teve algum contato...APOLÔNIO - Não. Eu tinha contato direto com a direção do Partido, ninguém falava isso.Thaís - Ninguém... em reorganizar a ANL...APOLÔNIO - De maneira nenhuma. Não acredite nisso não. Eu posso dizer porque estava ligado à direção. (GRAVAÇÃO INTERROMPIDA)APOLÔNIO - (...) Um elemento da prática política desenvolvendo a organização junto ao parlamento etc, para abrir novos caminhos até as eleições que seriam em 35, 36. Um movimento de insurreição de fazer logo um ataque ao governo Getúlio, para por fim ao governo Getúlio e estabelecer um regime da ANL (PALAVRA INCOMPREENSÍVEL) não tinha condições para isso. Nem a classe operária tinha condições de fazer uma greve geral, nem greves importantes, porque a polícia estava cercando muito, os integralistas estavam também cercando muito a gente, ajudando a polícia, nem a população esperava isso. Nós todos fomos surpreendidos pelo manifesto de 5 de julho de Prestes. Surpreendidos, porque era um chamamento aos militares para um golpe militar.Thaís - Porque a política da ANL não era isso...APOLÔNIO - De maneira nenhuma. Era uma política ampla, abrangente. Em Novembro de 35 assim mesmo esse chamamento de julho foi alimentado pelo Partido clandestinamente e resultou nesses três fracassos, em Natal, em Recife e em Novembro de 35. Esse erro grave de imediatismo, de querer fazer depressa a revolução e achar que havia condições para isso.... FIM DA ENTREVISTA.Entrevista com Delcy Silveira:Observação:Vale ressaltar que essa entrevista foi realizada em 31 de Julho de 1998, no Hospital Ernesto Dornelles, em Porto Alegre porque Delcy Silveira estava muito debilitado. Por isso, muitos dos objetivos e perguntas que foram preparadas para a entrevista não foram apresentadas optando-se, assim, por deixar o entrevistado falar o máximo possível sem qualquer interrupção dos entrevistadores, Thaís Battibugli e Luís Fernando Baia Antonietto.É preciso notar que antes da entrevista ser realizada combinou-se que Silveira faria as modificações que julgasse necessárias na transcrição que lhe seria enviada.A entrevista foi revisada por Silveira em maio e em julho de 1999, quando encontrava-se em melhor estado de saúde. Na revisão da entrevista Silveira fez questão procurar corrigir ao máximo a oralidade, desencontros de sua fala presente na transcrição e também suprimiu e adicionou algumas informações, tornando compreensíveis certas frases que se apresentavam desconexas.Foi doada ao AEL - Arquivo Edgard Leuenroth- uma cópia da transcrição aprovada por Silveira.DELCY - Esta entrevista, nas condições de saúde em que me encontro não vai ser fácil. Pela primeira vez dou uma entrevista de um leito de um hospital com poucas chances de recuperação. A Parca terá que fazer muita força para levar-me, pois ela está tratando com um lutador. Eu costumo dizer que nasci em berço de ouro. Eu nunca soube o que é necessidade, tive uma juventude feliz. Meu pai era um grande fazendeiro em Santa Vitória do Palmar, era um homem arejado que mantinha com seus filhos um diálogo franco, aberto e fraterno. Parecia um irmão mais velho e experiente, tanto que aos domingos, reuníamos em nossa casa um grupo de colegas do Colégio Militar, e muitas vezes, meu pai tomava parte na roda de chimarrão como se fosse um colega, pois não constrangia ninguém. Nasci em Santa Vitória do Palmar, na fazenda de meus pais, que distava 118 léguas da cidade. Até os oito ou dez anos vivi no campo, tornando-me um exímio cavaleiro, um gaúcho. Depois fomos morar na cidade de Santa Vitória, minhas duas irmãs, meu irmão caçula e eu. Vivíamos numa casa confortável, mesa farta, mas sem luxo, pois meus pais eram avessos à ostentação.Meu pai Pedro Silveira, era um dos fundadores e chefes do Partido Libertador, formado por fazendeiros que lutavam pela conquista do voto secreto, do parlamentarismo, sem nenhuma reivindicação social, retrógrado, mas que, em 1923, pegou em armas contra a ditadura borgista, esta sim retrógrada, reacionária e policial, que durou 30 anos.Minha mãe era uma mulher de classe média, dona de casa, muito carinhosa e solícita com os filhos. Nós a adorávamos. Tinha pouca cultura como todas as mulheres de classe média daquela época.Nas minhas primeiras férias, já cadete aviador da Escola Militar do Realengo, deu-se um fato que retrata o quanto era liberal e arejado o meu velho pai. Quis dar a ele um livro de Lênin, se não me engano, O Estado e a Revolução. Ele riu e disse-me: "estou muito velho para ler essas coisas, dá para teu irmão que é um jovem". Era três anos mais moço que eu. Os filiados ao Partido Libertador que, em 1923, empunharam armas contra a ditadura borgista, viam na Coluna Prestes a continuação de sua luta. O nome de Prestes, o Cavaleiro da Esperança, era muito admirado e respeitado por meu pai. Cresci num ambiente de lutas políticas, muitas vezes sangrentas, o que era comum no Rio Grande daquela época.Eu me tornei marxista pelos seguintes motivos: primeiro, por minha grande admiração e respeito pelo Prestes, de quem me tornei amigo anos depois; segundo, pelo horror que sempre tive às injustiças; terceiro, pela cabeça, estudando as teorias marxistas, seus princípios filosóficos, pelo conhecimento científico, que me transformou de católico praticante quando aluno do Colégio Militar, à ateu convicto.Ingressei no Partido Comunista em novembro de 1934, muito jovem.Eu fui um militante muito ativo. Tinha uma vida ilegal.Thaís - Eu queria saber um pouco sobre os seus companheiros, se o senhor conheceu o Roberto Morena? Quando?DELCY - Muito...bom, eu vou te citar alguns. Civis: Roberto Morena foi meu companheiro de prisão, o Marighela foi meu companheiro de prisão. Quem mais... foram tantos... e a maioria militares.Thaís - E o Morena, o senhor conheceu ele quando? Só na Espanha?DELCY - Não... eu conheci o Morena antes, aqui em Porto Alegre. O Roberto Morena era uma figura excepcional. Inteligência brilhante, um orador, e ele era magrinho, pequenininho? Careca... ele foi para a Espanha e lá ele não foi combatente, porque logo descobriram o quadro que estava ali, e ele foi levado para Valência, para uma missão de grande responsabilidade. O inverso de nós que éramos militares e que só podíamos dar alguma coisa mesmo era como militares. O Roberto Morena como militar era uma nulidade, mas como um quadro político e como um quadro administrativo era uma grande figura. E o interessante... o Morena me contou que os fascistas estavam entrando em Valência e invadindo os hospitais e degolando os feridos... os mouros e tinha um barco inglês que estava se afastando do porto e ele subiu no barco por uma corda, se não ele tinha ficado em Valência.Thaís - E o Eneas Jorge de Andrade? O senhor também conheceu no Colégio...? O Hermenegildo? O senhor conheceu no Colégio (Militar)?DELCY - Não o Hermenegildo era cabo lá na Escola de Aviação. Os nomes dos companheiros que foram lutar na Espanha eu vou te dar primeiro. Primeiro o Costa Leite, o Costa Leite era um revolucionário histórico. Desde 22 ele com o Jansen de Melo e outros assaltaram o 3º RI e o Jansen morreu nessa ocasião, levou um balaço que seccionou uma veia
[1]. O Costa Leite baixinho, moreninho, muito simpático, um conspirador terrível. Estávamos exilados no Uruguai após o movimento de 35... e lá o Costa Leite era o encarregado de coordenar a turma de militares brasileiros que iam para a Espanha. Então ele era uma figura central, a gente tinha um respeito enorme por ele, ele já era homem de uns 40 anos, eu era um guri de 20. Bom... o grupo, o Gay Cunha era um tenente de aviação, eu também sou aviador. Nós então morávamos em Montevidéu, acho que... uma organização revolucionária qualquer alugou uma casinha para nós. Era na rua Rui Barbosa. Era um terreno grande, no fundo ficava, duas peças de madeira e na frente tinha a cozinha e o banheiro. Lá se deu um fato gozadíssimo. Bom, nós éramos o Hermenegildo Assis Brasil que morreu na França, o meu irmão Eny Antonio Silveira - estudante - Nelson de Souza Alves, Dinarco Reis, tinha um outro irmão do Hermenegildo, não me recordo o nome, mas parece que é Eurico, não foi para a Espanha, era civil, e um rapaz, um jovenzinho, que fugiu porque era primo do Flores da Cunha que era governador aqui... Bolívar Cunha e o meu irmão eram os dois mais jovens, 17 e 18 anos. Dormíamos sobre jornais, nos cobríamos com o que dava para cobrir, tinha duas camas, uns colchões, sem lençóis, sem nada, aquelas camas eram para os doentes ou para os mais velhos. O Dinarco Reis, uma bela figura que morreu como Brigadeiro anistiado... porque foi expulso em 35, tomou parte do movimento da Escola de Aviação Militar. O Dinarco era um dos que sempre tinham uma cama porque ele tinha uns 30 e poucos anos, o resto era uma garotada de 20, 25 anos. E a outra cama era para um doente. Ah! E tinha um outro um tenente Dinarte Silveira, que era contador do 3º RI. A gente passava necessidades... (FITA INTERROMPIDA). O meu pai logo que conseguiu contato conosco, já estávamos no Estado Novo, aquela ditadura... por portas travessas, conseguiu mandar dinheiro para mim e para meu irmão... éramos os únicos que tínhamos dinheiro... esse dinheiro ia para o coletivo l... nós não lançávamos mão de um tostão, então a gente dizia quando chegava o dinheiro, que não era fácil. Porque era um troço meio ilegal, não podia ser mandado por banco, então a gente dizia: "vamos tirar a barriga da miséria", mas era pouco tempo, a miséria chegava de novo. O Gay era ligado ao Flores, era primo do Flores da Cunha que era o governador. Você conhece essa história. No Uruguai o Gay estava em uma boa situação, porque vivia lá com a turma do Flores. Tinha também o Homero Jobim, mas não fazia parte do nosso grupo.Thaís - Não estava na mesma casa?DELCY - Não, nem sabia onde nós morávamos. Aí nós resolvemos viajar para embarcar, porque estava ficando difícil a nossa situação no Uruguai, porque tinha lá esse Batista Luzardo, um canalhão, um fazendeiro... era embaixador, e tinha uma polícia, ele mandava lá...Thaís - Polícia brasileira lá em Montevidéu?DELCY - Lá em Montevidéu, na Embaixada mandava o "Seu Luzardo", um governo de droga.... Fomos a Colônia que é mais ao norte e chegamos num rancho na beira do rio, era o seguinte grupo: Nelson; Gay; Jobim, aí o Jobim já estava no grupo para embarcar, eu, e o meu irmão. Éramos cinco, e lá nós ficamos aguardando um contrabandista: vida revolucionária... a gente é muito... há um entrosamento muito grande entre os revolucionários dos diferentes países. Arranjaram um contrabandista para nos passar para a Argentina, atravessamos à noite 10 horas da noite por aí apareceu o tal... caiaque comprido, sentava um atrás do outro, uma temeridade, a largura ali é de mais de 6 Km... tocamos, um barquinho que andava com um motorzinho vagabundo, lá pelas tantas já altas horas da noite... pifa o motor, já em águas argentinas, e o imbecil do contrabandista acende um lampião, nós só vimos foi passar um barco enorme por nós e quase nos virou... era a Polícia Marítima argentina, deram uma volta e os marinheiros todos apontando armas para nós e aí o oficial perguntou: "Quem são vocês?", e o Gay disse: "Nós somos militares brasileiros que estamos querendo nos exilar na Argentina". Ele não acreditava, mas amarraram o barquinho no barco deles e cada um de nós subia no barco e ele nos revistava, tomava o nome, mas o oficial percebeu mesmo que nós estávamos falando a verdade, e quando clareou o dia, ele nos levou para a Capitania dos Portos da Argentina e nos disse: "estávamos a dias procurando um contrabandista, se eu soubesse que vocês eram brasileiros militares eu não passava nem perto, vocês só vão me criar problema!". Na polícia houve um fato gozadíssimo... o Nelson de Souza sentado numa cadeira com uma perna levantada, o joelho encostado e a cabeça dormindo, com a perna no ar, uma coisa gozadíssima. Nós prestamos depoimentos, eles perceberam, não havia mais dúvidas a nosso respeito, então nos mandaram para um quartel da Polícia Marítima, nos colocaram dentro de um táxi e marinheiros nos acompanhavam num carro da marinha... então nós escrevemos os nossos nomes e entregamos para o motorista, na esperança que ele fosse capaz de levar a um jornal, o rapaz levou ao A Crítica, que era... não sei se é hoje, era o maior jornal de oposição ao governo. No dia seguinte saiu até retratos nossos. Companheiros que estavam lá como Dinarco e... Pedro Mota Lima, um jornalista, não sei se você conheceu um jornalista de grande nome... já estavam lá e alguns retratos apareceram, um ou dois... (FRASE INCOMPREENSíVEL), nesse mesmo dia, nos puseram num salão... devia ser biblioteca ou coisa que o valha. No dia seguinte comparecem lá dois Senadores. O Senador Palacios, que é uma figura folclórica, duelista, cheio de romances amorosos, brigas com maridos, enfim é um sujeito com uma cabeleira, um bigodão, uma figura, um cara um pouco mais alto que você - aqui Delcy se refere ao entrevistador Luís Fernando - e o Senador Bravo, um índio patagônico baixinho rechonchudo que nos prestou um grande favor, ele que passou a receber o dinheiro que o papai mandava... Aí nos largaram... A Crítica fez uma campanha violentíssima pela nossa prisão e contra o governo do Justo, porque o Justo tinha mandado nos entregar, e se não tivesse A Crítica, se não tivesse havido isso, nós tínhamos sido entregues de volta. O Justo era um outro facistóide, General Justo... Nos soltaram, nós fomos nos colocando em pensõezinhas, sempre unidos, com ajuda... então se começou a preparar nosso embarque. O primeiro grupo que saiu foram o Gay, o Homero, talvez o Assis Brasil e o Nemo Canabarro Lucas. Eles desapareceram. Fomos presos[2], nos levaram para a polícia, o Delegado nos disse uma porção de grosserias, de desaforos e queria saber onde é que eles estavam, o Gay e os outros. Eu disse: "olha delegado eu sei que o Gay foi para o Tigre, o Tigre é formado por centenas de ilhas. Agora vou lhe dizer uma coisa Delegado, se eu soubesse não lhe diria...". Aí sabe o que é que ele fez? Nos colocou numa geladeira, quase nos matando de frio. A geladeira: um quarto, mais ou menos desse comprimento (4 metros), mais estreito assim (Delcy refere-se ao quarto do hospital no qual estava internado), de um lado e de outro uns bancos de cimento, a porta tem embaixo uma abertura por onde entra uma forte corrente de vento e a peça é encharcada..., nos manteve ali várias horas, depois nos soltou, quando nos soltou ele disse: "Vocês tem asilo do governo, por mim vocês iam apodrecer aí, mas vocês são exilados... vocês vão assumir um compromisso por escrito (PALAVRA INCOMPREENSíVEL), seguinte vocês não poderão mudar de cidade, de casa, sem avisar a polícia". Eu disse: "Mas como não... eu sou um exilado político, eu não tenho nada com a política de vocês, eu respeito as leis de vocês, eu me sinto feliz em ter recebido o asilo. Então assinei, eu, meu irmão e o Dinarte da Silveira. Fomos soltos. Eu e meu irmão alugamos um quarto na casa de uma velha francesa. Tínhamos direito ao banheiro e o quarto, uma cama de casal. Lá nós ficamos, houve fatos gozadíssimos... entramos, eu e o meu irmão, num barzinho e vimos quando entrou um indivíduo. A gente sente pelo cheiro a presença do policial. É um sexto sentido adquirido na vida revolucionária. Hoje já não tenho mais, mas eu passava e sentia o cheiro do tira. Entrou um gordão e eu disse: "esta aí o tira!". Ele sentou numa mesa e aí nós pedimos uma bebida e pagamos. Ele pediu um chá, eu disse "deixa vir o chá" quando veio o chá, nós levantamos e ele se atrapalhou. Entramos no metrô. Uma noite nós íamos para casa... conhecem Buenos Aires? É uma cidade feérica, de noite tem aquela Calle Corrientes e outras... os bares... ficam abertos até de manhã. Nós íamos muito bem por uma rua daquelas e percebemos que estávamos sendo seguidos. Nós começamos a caminhar ligeiro, dobramos a esquina e o tira era um homem gordo tipo Jô Soares, se não mais...Luís Fernando - O mesmo tira do bar?DELCY - O mesmo tira. Ele dobrou ligeiro e deu de cara conosco. E então eu disse: "cidadão, porque você está nos seguindo?" Ele disse: "eu sou policial se identificou, eu não tenho nada contra os senhores, eu estou trabalhando a pedido da embaixada brasileira, os senhores estão sendo seguidos e eu sou obrigado a fazer um relatório diário sobre, com quem os senhores conversam, onde vão. Eu digo: "O senhor está no cumprimento do seu dever eu não tenho nada a opor apenas eu não gostei de estar sendo seguido, mas agora eu estou vendo uma autoridade me seguindo, não tenho... até eu me sinto satisfeito... eu me sinto protegido! Aí quando nos despedimos, muito amigavelmente, não tinha nada com a polícia argentina. Ele disse: "Vem cá, vamos fazer uma coisa... se vocês me disserem todos os dias onde vão, eu faço o relatório e não preciso seguir vocês". Eu disse: "Pois não tenha dúvida!". Ele disse: "Para onde é que vocês vão agora?" Eu disse: "Agora nós vamos para o parque Palerma, um parque de diversões...". Ele disse: "Pois muito bem". Estávamos lá no parque, daí a pouco o tira, um paquiderme se escondendo! Nós fingimos que não vimos... nunca mais demos de cara com ele não sei se resolveu abandonar ou mandaram outro nos seguir. Quando chegou a nossa vez de embarcar... embarcamos, o Dinarco Reis, o Nelson de Souza, o Eny Antonio, meu irmão e eu. Éramos quatro. Como embarcar? Se nós éramos vigiados... então eu saí para um lado com uma pessoa qualquer, o meu irmão saiu para outro, um entrou num cinema... não carregávamos bagagem. A pequena bagagem que tínhamos, os companheiros levaram para o vapor e nós fomos (...) os quatro separados. Só que o Dinarco por exemplo não era conhecido, não era vigiado, porque ele passou para lá sem nunca ter sido pego pela polícia nem sabiam da existência dele, mas o Nelson, o Eny e eu, éramos conhecidos. Numa determinada hora cada um de nós encontrou-se com um companheiro, num determinado ponto e fomos levados ao navio Poulask, um navio polonês fascistóide. A Polônia tinha um governo fascista. Saímos de Buenos Aires e chegamos não no Rio... ficamos escondidos nos camarotes do navio. FIM LADO A, FITA 1.INÍCIO LADO B, FITA 1.DELCY - Havia muita polícia inclusive dentro do navio, Polícia Civil. Era o Estado Novo, uma ditadura... pior do que ela só essa de 64 que foi mais criminosa ainda. Pela a escotilha nós víamos o Rio aquela coisa...Thaís - Mas já saiu com o passaporte espanhol ou não? Saiu sem documento nenhum...DELCY - Ah sim, nós viajamos com passaporte espanhol. Passaportes verdadeiros nós é que éramos falsos. Porque era fornecido pela Embaixada espanhola. Eu era Galego por causa da língua. O Galego é muito parecido com o Português, eu sabia o nome do meu pai, da minha mãe, dos meus irmãos, da cidadezinha onde eu morava. É aquela conversa que o revolucionário está cansado de viajar sempre com documento de um morto com o retrato dele, este é o mais comum...Luís Fernando - A pessoa é falecida e a identidade passa para o revolucionário...DELCY - Claro! E a gente passa a adquirir... muda o retrato, coisa muito bem feita. O Dinarco andava por toda a parte com um documento desses. Do Rio fomos ao Espírito Santo, ali em Vitória, aí sim nós desembarcamos. Não havia policiamento. Desembarcamos, resolvemos comer uma bela feijoada, fomos em um daqueles restaurantes modestos e o garçom perguntou: "Você quer quente?". Eu disse: "Claro que quero quente!" Mas não sabia que "quente" era apimentado. Foi um pavor de pimenta... Dali nós seguimos e fomos direto a Bologne-sur-Mer. Foram 22 dias, pegamos um temporal no golfo de Biscaia uma coisa terrível, só marinheiro andava na coberta do navio. Fomos direto a Bologne-sur-Mer que é uma cidadezinha no norte da França é sobre uma colina, é um cartão postal, as casinhas todas floridas, belíssimo! Nossa vida no navio... eu por exemplo era aviador, tinha um livro do Exército francês sobre combate de infantaria, eu não sabia onde é que eu ia parar Mas eu acabei parando na infantaria mesmo... de manhã ia para a proa do navio, porque era muito bonito ver aqueles peixes voadores... e estudava. Nesses 22 dias eu estudei um bocado sobre combate de infantaria. A comida polonesa é um pavor, o almoço vinha batata cozida, peixe defumado. A batata eles ainda estragavam porque eles usam um creme branco que dá náusea. Eu nem podia sentir o cheiro então eu me defendia com peixe defumado e o pão. Estava fazendo um regime, fiz um regime durante a viagem... 22 dias de Buenos Aires a Bologne-sur-Mer. Em Bologne-sur-Mer nós desembarcamos, já havia alguém a nossa espera e nos levaram para Paris. Lá em Paris, ficamos num hotelzinho, lá encontramos um dirigente do Partido Comunista Brasileiro, cujo nome era Piano. Esse era nome de guerra. Eu não sei o nome dele, nunca quis saber, nem nunca me interessou saber. Porque ao conspirador não interessa saber aquilo que não lhe diz respeito. Encontramos lá o Piano, que estava no Rio quando o Estado Novo... a casa dele foi cercada pela polícia. Ele era um gringo, um italiano desses retacões[3], cara grande, vermelhão, um tipo mais baixote, muito cheio de corpo muito forte. Eu sei que ele fincou bala na polícia e escapou, mas eles prenderam a mulher dele, uma jovem e o filhinho. Mas o filho do Flores tirou a mulher e o filho da prisão e os levou para Montevidéu. Ele foi para o Uruguai, teve conosco no Uruguai e depois nos encontramos em Paris ele ia para a União Soviética. Ele com um francês resolveram fazer um almoço para nós. Em Paris tem uns restaurantezinhos muito modestos, umas caves[4], entra, desce uma escadaria, uma espécie de um porão... Isso foi na Praça Santo Antonio lá na Bastilha onde tem o monumento. Comida francesa: vem um peixe e um vinho... vem um outro prato e um outro vinho... éramos o Eny, o Nelson, o Dinarco, o Piano, um francês e eu. Tomamos um fogo só conseguimos chegar ao hotel a noite, então andávamos os seis de braço... francês não liga isso... a gente ia de um lado para o outro... nessa noite então nós embarcamos para a Espanha. Chegamos em Perpgnan cidade francesa, do outro lado Port-Bo, tem os Pirineus separando. Luís Fernando - Vocês foram de trem...DELCY - Sim, de trem de terceira classe e passamos muito frio durante a noite...Thaís - Ainda na França, o senhor conheceu um tal de Castro?DELCY - Não. Na França eu procurei o Eliezer Magalhães. Eu vou contar um fato não sei se é verdadeiro, mas parece que é: um major do Exército brasileiro, sabe que no Estado Novo as Forças Armadas não cooperaram com a polícia, com raras exceções, não foi como agora (refere-se à ditadura de 64). Estava lá o Eliezer Magalhães, irmão do Juraci Magalhães. O Eliezer estava exilado na França. Eu sei que se encontram num bar e o major parece que resolveu ir cumprimentá-lo e parece que recebeu um bofetão de cheio na cara. Sabe que no Estado Novo você contava a dedo os oficiais que se prestavam... muitos se prestavam para ser chefes de polícia, mas para torturador não.Luís Fernando - Mesmo entre o alto oficialato foram raros os que colaboraram?DELCY - O Exército apoiou o Estado Novo... claro o responsável, porque o Estado Novo quem fez foram os generais. Tem um livro do Hélio Silva em que ele reproduz o documento... os generais em comando no Rio resolveram não o Estado Novo, não era esse nome... mas resolveram criar um governo forte, ditatorial com o governo ou sem o governo. Foram ao Getúlio, ora o Getúlio tinha uma ânsia de poder terrível, topou logo. O Estado Novo foi uma ditadura civil, mas feita pelos generais. Dois generais não assinaram... um parece que foi o Andrade Neves, o resto assinou. Tem esse documento vocês que estudam devem procurar ler (...). Em Paris eu não conheci ninguém... Qual foi a pergunta?Thaís - O Castro... eu estava pensando se esse Castro era esse Piano...DELCY - O Piano para mim não era Castro. Castro para mim é um nome que eu não conheço. O Piano é um nome de guerra, era um italiano, dirigente do Partido Comunista. Um homem de 50 anos mais ou menos, era um operário, com um ótimo preparo político.Thaís - Não era um tal de Urquija...DELCY - Nome estranho... Nós chegamos em Perpgnan, tínhamos passaporte, atravessamos de trem pelo túnel para Port-Bou. Chegamos em Port-bou à noitinha. Quando nós chegamos na Gare... trens destruídos de roda para cima, buracos enormes, que cabia um trem dentro... fomos recebidos por um Carabinero. Carabinero corresponde a Polícia Militar. Nos identificamos, então ele nos deu uns "boletos" para comida e mandou um soldado nos levar a uma pensão, um hotelzinho. Era cidade muito pobre, Port-Bou uma cidade pequena encravada na rocha, um mar belíssimo. Port-Bou sofria bombardeios quase que diários, porque de noite Perpgnan ficava com as luzes acesas, feérico aquilo, eles viam então tinha aquela luz feérica e aqui a escuridão. Eles sabiam que passando a escuridão estava Port-Bou. Chegamos, uma velhinha nos atendeu, nos deu uma sopa rala e fomos dormir. Era uma casa antiga, três andares... nós subimos para os quartos (Delcy Silveira explica com gestos que os quartos eram porta com porta), eu e o meu irmão fomos para um dos quartos, no outro foi o Nelson e o Dinarco. Estávamos nos despindo, nos arrumando com as portas abertas e papeando, nisso deu um estalo... bombardeio. Foi um tal de se vestir e descer a escada e o último que descia apagava a luz. Chegamos na rua, estavam as pessoas, as senhoras, mulheres, crianças se dirigindo para o abrigo subterrâneo na rocha escavada, salão enorme. Estava uma moça querendo fechar uma porta, eu quis ajudar e ela disse: "Não companheiro, vá, não se preocupe, sou veterana...". Nós fomos até o abrigo, nem chegamos a entrar, ficamos por ali. O rebate falso, um navio de guerra que passou e eles bombardeavam... eles vinham bem perto da costa, a marinha italiana e bombardeavam. Os bombardeios maiores eram com navios. No dia seguinte nós embarcamos para Figueiras, que era a sede das Brigadas Internacionais. O comandante era um major espanhol mutilado de guerra, faltava um braço, a cara faltava um pedaço do rosto, um homem de uns 50 anos todo aleijado... Nos apresentamos e nos mandaram para as Brigadas. O Dinarco e eu dissemos o seguinte: "não, nós somos aviadores, nós queremos lutar na nossa arma. O major disse: "eu vou à Barcelona e vou levar esse desejo de vocês, foi... Um ou dois dias depois nos chamou no comando... antes disso esteve lá no comando um major do Exército italiano, claro que antifascista, expulso, Rodolfo Patiardi, que foi ministro depois quando caiu Mussolini. Rodolfo Patiardi um militar de carreira, ele soube que existiam brasileiros que eram militares e nos procurou, e nos convidou para irmos para a Brigada dele a XII Brigada Internacional Garibaldi. Garibaldi tem muito a ver com os gaúchos aqui. Ele disse (Patiardi): "Já existem alguns brasileiros lá, o Correia Sá, o David Capistrano - que sumiu na ditadura, foi preso... sumiu ele, o automóvel e o chofer. Mas eu e o Dinarco não aceitamos, o major chegou e disse: "eu tenho ordens de repatriar vocês para a França". Delcy disse - "Mas como?" "Acontece que a Brigada Internacional não tem aviação, quem tem aviação é o governo, é o Exército e a ordem que eu tenho é essa de mandar vocês de volta". Delcy disse: "Mas como nos mandar de volta? Eu sou um revolucionário, eu vim lutar contra o fascismo...". Nós aceitamos, eu e o Dinarco, irmos para as Brigadas. O Gay, o Nemo Canabarro Lucas, o Hermenegildo vieram direto ao Exército e já foram mandados para as unidades como oficiais. Não foi o nosso caso, nós fomos como soldados para as Brigadas. As Brigadas eram uma organização comunista. Eu por exemplo, cheguei lá e fui ser instrutor de jovens espanhóis que estavam sendo chamados às filas, garotos de 18, de 17 anos. Eu e o Nelson recebemos até um prêmio pela apresentação dos nossos pelotões. O prêmio foi o seguinte, um cachimbo e um pacote de fumo, aquilo tinha um valor...! Depois me mandaram para uma unidade... Aliás me entregaram o comando de uma seção de metralhadoras pesadas. Uma frente muito calma no Ebro, nós ficávamos numa elevação, o rio estava lá embaixo, o pessoal ia de noite tomar banho e os fascistas desandavam a tirotear mas nunca conseguiram atingir ninguém. Eu nunca fui. O meu irmão ia. (...) Uma posição muito calma, esporádicos tiroteios, a única coisa ruim eram... a coisa que eu mais tive horror na guerra, as patrulhas noturnas. Você entra numa escuridão... não sabe o que vai encontrar. Eu fiz umas quatro ou cinco missões dessas, nunca encontrei patrulhas inimigas, mas outros companheiros encontraram, um combate assim... o sujeito dá de cara, aquele tiroteio, aquela coisa e espalha gente para tudo que é lado. Muitos se perdem... uma missão muito perigosa. Luís Fernando - Mas que o senhor cumpriu com brio...DELCY - Ah depois disso, houve a travessia do Ebro e me entregaram o comando de um pelotão de fuzileiros. Pelotão de infantaria de fuzileiros que já não é mais metralhadora pesada, que é mais estabilizado (...). Nesse pelotão muitos daqueles garotos que eu instruí foram os meus soldados... Era soldado, mas tinha comando. Aliás sempre na guerra eu tive comando, quando eu fui promovido a tenente, eu estava no hospital... eu disse o seguinte: eu não fui promovido, mas sim confirmado... Tomei parte em muitos combates fui ferido duas vezes, ferimentos sem gravidade, um ferimento foi uma bala que me entrou no quadril e saiu, atravessou as nádegas; o outro, um estilhaço de granada, não sei se nesta perna ou nesta... ferimentos sem gravidade nenhuma, mas que dói... esse troço de dizer que ferimento por bala não dói é mentira. Dói mesmo. Thaís - E lá na Espanha o senhor recebia mensagens do Morena, alguma coisa do Partido ou...DELCY - Eu nunca me encontrei com o Morena lá. Eu era do Partido Socialista Unificado da Catalunha (...).Thaís - Então lá ficou bem espalhado, cada um ficou para um lado e...DELCY - Eu e o meu irmão sempre estivemos juntos. Agora o Nelson foi ferido com um estilhaço de morteiro, que é uma arma perigosíssima, porque bate num papel e explode, parece que ele foi ferido no pulmão ou uma coisa assim... A vida na frente: fomos primeiro para uma frente calma, eu estive destacado[5] numa cidade que se chamava Tortosa, que fica onde o rio desemboca no mar, a cidade dividida pelo rio Ebro. Tinha uma ponte de ferro. Essa ponte foi destruída, afundou na água, ficando distante da outra margem. Os fascistas estavam à direita. De noite eu saía com quatro ou cinco soldados para patrulhar a cidade. A cidade estava completamente destruída... cheiro a cadáver, uma coisa que você não imagina o pavor... a gente não podia comer e aquele cheiro entrava nas narinas da gente. Era psicológico, é claro, porque quando a gente andava lá sentia o cheiro, mas quando ia comer não é que sentisse o cheiro, mas a gente sentia. Ficamos em Tortosa coisa de um mês. Uma noite resolvi visitar os fascistas. Eu desci pela ponte e fui até onde ela entrava na água, e eu ouvia a conversalhada, eram italianos... tinha o Exército italiano lá. Italiano gritalhão... eu fiquei ali uns dez minutos ouvindo o papo deles. E os meus soldados ficaram lá em cima, para me proteger de qualquer coisa, aí eu subi. Fui transferido para onde o rio entrava no mar, aquele areal uma posição difícil de defender. Esteve lá o comandante do meu batalhão e me perguntou: "Como é, dá para fazer a defesa?" Eu digo: "Olha me manda caixas de granada, porque com tiro de fuzil essa posição é indefensável". Eu estava uma ocasião numa segunda linha... aqui está uma linha da frente, aqui está uma outra linha, forças, tropas de reserva. À noite recebemos ordens de nos deslocar para a primeira linha e assaltar uma posição fascista. Minha unidade, minha companhia e mais outras companhias, um batalhão não sei... numa determinada hora nós partimos para o assalto. Os desgraçados estavam tão bem fortificados que tinham até canhão, pequenos canhões de tiro rápido que se tornaram famosos, um alemão, um tal de 88 se não me engano. Dava vários tiros. Foi uma noite terrível... foi o meu primeiro ferimento. Eu consegui levar o meu pelotão até as trincheiras deles, mas quando cheguei na trincheira, tinha o que, uns oito homens, e uma rede de arame farpado... e não havia granada de mão, uma operação mal organizada. Nos estendemos ao longo da rede de arame farpado. Nisso um fascista levanta na trincheira com uma granada. Eu dei-lhe um tiro na cara... lá se foi de costa. Pedro Bial numa entrevista que eu dei me disse: "Você não teve remorso?" Eu digo: "De matar um fascista? Não tive, nenhum". Essa noite eu fui ferido com um balaço (...) e o meu irmão também foi ferido, e ao clarear do dia... a batalha é uma coisa, é uma coisa horrível. O senhor (para o Luís Fernando) já ouviu falar em very light. Very light é um foguete que eles atiram e ele desce num pára-queda, então o campo de batalha fica claro, mas uma claridade amarela, um troço tétrico, mas a gente enxerga. Foi em uma lançada de very light que eu acertei o fascista.Luís Fernando - Os dois lados usavam esse tipo de artifício?DELCY - Eles mais porque o poderio deles em relação ao nosso era bastante. Se nós lançávamos cinqüenta tanques eles lançavam duzentos. Aviação eles tinham 1000 aviões, nós tínhamos uns 50. Tinham o apoio da Alemanha e Itália, bem próximos. FIM LADO B, FITA 1.INÍCIO FITA 2, LADO ADELCY - Tem muita coisa sobre a guerra... eu posso falar horas... mas nesse combate ao clarear do dia que cessou a luta, sabe quantos soldados eu tinha? Do meu pelotão de trinta e dois homens? Quatro. Luís Fernando - O senhor e mais três?DELCY - Eu e mais quatro. Um cabo espanhol, meu irmão que estava vivo, eu estava ferido, bastante ferido, mas não abandonei o comando até... não era um ferimento de gravidade. Perdi muito sangue, mas um tiro que atravessa as nádegas... o que deve correr de sangue. Fui para o hospital. Voltei à frente outras vezes. Quero citar um fato. Vamos deixar os tiros para lá. Eu participei de outros combates tão violentos, corpo a corpo...Thaís - E o período da volta da Espanha?DELCY - Sim, mas eu quero contar um fato. Estava hospitalizado e já em convalescença e recebi uma licença de uma semana para passar em Barcelona, tem um hotel dos militares. Fui para o hospital que ficava uns trinta quilômetros de Barcelona. Tomei um trem, porque lá só andava de trem ou então caminhão de... Cheguei lá e me hospedei no hotel, mas no dia que tinha que me apresentar cheguei na estação ferroviária, tinha umas cem pessoas no mínimo, era uma pequena multidão. Não sei se pode existir uma pequena multidão... crianças, mulheres, velhos e tinha um guarda. Um guarda de assalto que controlava a passagem naquela roleta. Eu cheguei ali e olhei, eu ainda estava todo enfaixado, disse: "eu não passo aí". Eu gritei: "companheiro, eu estou ferido, preciso embarcar, mas não pode ser assim". Houve um silêncio, e abriram alas... cruzei. Isso mostrava o respeito e o carinho que o povo tinha por nós combatentes internacionais (Delcy diz isso muito emocionado). Agora a saída da Espanha em 1996 foi uma coisa fora de série. O Apolonio... ah! O Apolonio foi legalmente, ele saiu de... ele conta no livro dele, vocês vão ler... O Apolonio é que me disse lá na Espanha: "Delcy a recepção, o carinho com que este povo está nos recebendo, justificou o nosso sacrifício, porque foi sacrifício...". Thaís - Agora só da volta, como o senhor via o país nesses anos 40.DELCY - A volta... com a derrota nós passamos para a França, e na França fomos para um campo de concentração. O embaixador do Brasil na Espanha, Silveira Martins foi lá no campo de concentração para nos retirar. Nós fizemos uma reunião e resolvemos o seguinte, quem não tem processo ou supõe que não tem processo deve voltar. Foi uma resolução coletiva, quem tem processo vai direto para a cadeia. Então nós estudamos o caso. Eu não tenho processo pelo seguinte: estive um ano preso, nunca respondi inquérito, nunca respondi nada, portanto não devo ter processo. O meu irmão é um guri não deve ter... tinha. O Nelson é outro que também foi preso "gramou" uma cadeia, mas nunca respondeu inquérito, não deve ter processo e o Jobim que nunca teve um passado revolucionário destacado, não tem processo. Então viemos. Na chegada no Rio, o Eny saiu com o meu cunhado que era oficial da FAB. Não pude sair, eu o Homero e o Nemo, porque a Polícia Marítima nos confinou numa saleta, mas o Nelson e o Eny escaparam do confinamento. O Nelson saiu com um primo dele oficial da Marinha. Fomos levados para a polícia. Na polícia se deu um fato interessante... eu fui chamado numa sala, chegou um cidadão cara fechada de policial mesmo, sentou-se e fiquei de pé. Ele abriu uma pasta, quando ele abriu a pasta eu corri o olho e vi o jornal A Crítica. Eu tinha dado uma longa entrevista para A Crítica, só não chamava o Getúlio de nome feio... Getúlio, o Estado Novo e os Generais. Ele me olhou e disse: "O senhor no estrangeiro atacou o Brasil. Eu disse: "Delegado, desde quando Getúlio e o Estado Novo são o Brasil?". Ele fechou a pasta, não me deu resposta e saiu. Eu disse logo, esse cara é antigetulista... Porque se não ele iria me dar um esbregue[6] terrível. Fiquei na prisão uns dias, me soltaram com ordens, de não sei quantos dias, de sair do Rio, sob pena de prisão. Eu não tinha um papel. Só se viajava de trem ou de navio, e para isso você precisava de um documento, um salvo-conduto. Eu falei com o Trifino Correia. Revolucionário histórico foi comandante de... foi da Coluna Prestes, uma grande figura, um grande amigo. Eles tinham muito respeito pelo Trifino na Polícia. E o Trifino disse: "vamos lá na Polícia". Chegou lá, falou: "Vem cá... Como é que vocês querem que o rapaz saia daqui do Rio e não dão um salvo-conduto para ele? Vamos ver um salvo-conduto" Viajei para Porto Alegre, cheguei dia 1º de Maio, fiquei por aqui. Trazia uma missão para conversar com alguns militares entre eles, vou citar o nome desse canalha que se chama general Argemiro de Assis Brasil, chefe da casa militar do Jango. Este era um indivíduo que eu tinha que procurar, porque ele tinha fama de comunista, de revolucionário, foi revoltoso de 32, era apontado como comunista. Como não o conhecia e ele tinha um irmão que tinha sido meu companheiro de prisão, o João Antonio, uma pérola de rapaz, eu disse: "Antonio tu vais me levar para falar com o teu irmão". O João Antônio disse: "Pois não". Também não me perguntou assunto nem nada, nem eu diria. Ele estava parando no Hotel Majestic, nós chegamos lá, ele estava no quarto com a esposa, e o João Antonio me apresentou a ele um conspirador velho, viu logo que eu apresentei uma carta boba dessas me apresentando... a um amigo pedindo... essa coisa que é uma maneira de... E o João Antonio convidou a cunhada para sair passear. Eu fiquei conversando com ele, expus o problema, um problema simples para um antifascista. Eu vi que eu estava lidando com um sabonete ensaboado, porque me fugia das mãos não olhava nos meus olhos, tinha uns olhinhos pequenininhos de porco, aliás tinha cara de porco. E eu vi que deste mato... Quando o João Antonio chegou eu me despedi, ele me disse: "eu vou escrever para o fulano... o signatário da apresentação". Eu disse: "aqui fracassei". Sabe o que é que ele fez? No dia seguinte foi ao comandante da região, ele era capitão e servia no quartel-general e me denunciou. Estava aquele coronel Umbelino Vargas, sobrinho do Getúlio. O Umbelino disse para ele: "Pede por escrito". Ele disse: "mas ele não vai me dar...". Ele um velho conspirador sabia que eu não daria por escrito coisa nenhuma. Chamaram o Aurélio Py, que era o chefe de polícia, capitão, revoltoso de 22 e policial. Mandaram me prender, mas estava no quartel general, adido, um coronel veterinário, Aristides Leal (Aristides da coluna Prestes), que estava lá muito perseguido, mas estava lá posto pelo Cordeiro de Farias que era o interventor. Ele tomou conhecimento e mandou me avisar por um jornalista chamado Lineira Tégio. Acontece que a polícia chegou primeiro que o aviso. Eu estava legal, estava passeando na rua da Praia. Não tinha porque esconder e me caçaram. Estive dezenove dias incomunicável. A primeira noite eles me torturaram. Não me surravam, passei a noite em claro, em pé e cada vez que queria me encostar, um dos tiras me dava um "sacalão". Durante a tarde veio um tira, assim como quem não quer nada, conversar que "às vezes te deixam preso a noite toda em pé e o pé não cabe dentro do sapato, é uma coisa horrível". E eu já percebi, digo: "É isso o que eles estão preparando para mim". Mas acontece que no dia seguinte, o chefe da Ordem Política e Social, um delegado, um homem digno chamava-se Plínio Brasil Milano. Sujeito decente. Quando ele soube, mandou me chamar e disse: "isto é coisa desse pederasta do Neuman, que era um delegado de polícia, e suspendeu (a tortura)". Mas já nesse meio tempo, o meu cunhado que era oficial do exército, já havia falado com o Py e a coisa mudou de figura. Fiquei dezenove dias incomunicável. Conversava muito com esse delegado. Cara inteligente, um gauchão e falava muito sobre a guerra, ele era antifascista estava com uma campanha ferrenha contra o nazismo aqui no Rio Grande. Então tínhamos um ponto de contato. Apesar de eu ser um comunista e ele um policial, nós tínhamos um ponto de contato muito forte que era a luta contra o nazismo. Conversava muito com ele, tomava chimarrão me tratava muito bem, com muita deferência e respeito. Bartira (esposa de Delcy) - Que idade tu tinhas nessa época?DELCY - 22, 23. Um belo dia eu estava tomando chimarrão no gabinete dele e tinha uma turma de ex-alunos do Colégio Militar. Eu fui aluno do Colégio, então eles também vinham conversar comigo E entrou um policial, um delegado e disse: "O Plínio tu vais viajar para o Rio?" E o Plínio fez um (sinal)... acho que o delegado não sabia que eu era um prisioneiro. O Plínio viajou para o Rio, voltou e mandaram me soltar. Então eu digo o seguinte, nesse momento eu estava "trabalhando" para a embaixada americana, porque justamente a campanha que nós estávamos desenvolvendo era de fazer um movimento nos quartéis para levar o Brasil à guerra. Eles me tomaram um depoimento idiota, mais besta, que eu vi que aquilo era mais para constar e me soltaram. Depois eu fui trabalhar no interior, tive uma vida revolucionária ativíssima, cheia de peripécias e encontrei essa moça aqui (referindo-se a sua esposa).Thaís - Em 42 o senhor tentou seguir junto com os pracinhas?DELCY - Eu fui para uma cidadezinha chamada São Francisco de Paula, cidade serrana muito bonitinha, perto de Gramado... cidade de fazendeiros. Um povo muito hospitaleiro (...). Fui para lá trabalhar no DAER (Departamento Autônomo de Estradas e Rodagem), para estudar o projeto de uma estrada, porque eu sou engenheiro agrimensor, a aviação civil não me aceitou, a Varig (...) eles não queriam ver um comunista no meio deles. Luís Fernando - Essa profissão o senhor adquiriu no Colégio ainda?DELCY - Colégio Militar. Tanto que me aposentei no DAER como agrimensor técnico-científico. Fui trabalhar e acabei casando lá (...), me levaram, não para a Igreja, mas para o Fórum. E eu comecei a receber tarefas do Partido, o Partido na ilegalidade. É que eu tinha apoio... não havia rancho que eu tivesse entrado, muitas vezes chamado para resolver um problema de família. Quando veio a legalidade do Partido, criei o Partido formado por um médico, um advogado e dois operários, só dois porque ninguém podia ser comunista lá, porque eles botavam para fora do serviço. Tive o apoio dos trabalhadores e dos pobres da cidade. Fui para lá como agrimensor e eles não me davam serviço. Eles só passaram a me dar serviço quando eles perceberam que eu não era pobre e que era capaz. Em Canela houve um inventário, um senhor de Bertolucci, era o prefeito. Um advogado, meu amigo o Cléber precisava de um agrimensor para medir as terras, dividir e ele disse: "olha, aqui em São Francisco tem um agrimensor é um indivíduo compententíssimo, respeitadísssimo, honesto, e ele disse: "eu sei de tudo isto, mas esse eu não quero. Quem é que vai apagar a fogueira que ele vai deixar aqui no meio dos meus operários?". São Francisco: tinha um advogado, um médico, dois operários, oficialmente, que faziam parte da diretoria (do Partido) ... eu levantava quantidades de dinheiro... vou te contar um fato. Quando se tratou daquela campanha para trazer a filha do Prestes para o Brasil, eu peguei um papel e fui direto de comerciante em comerciante, digo: "assina aqui". Não houve um que se atrevesse a não assinar. Em menos de meia-hora, a revista do Globo...BARTIRA (esposa de Delcy) - daí que partiam (diziam) que tinham medo dele!DELCY - (...) a revista do Globo publicou (...) (que havia sido arrecadado em São Francisco) um conto e quatrocentos mil réis em menos de meia-hora. A revista do Globo publicou o retratinho da guriazinha.Luís Fernando - Os comerciantes de São Francisco ajudaram a trazer a filha do Prestes para cá.DELCY - (...) Era uma quantia grande. O primeiro movimento camponês de invasão no Rio Grande do Sul, fomos nós que fizemos. Tinha uma fazenda enorme que não tinha herdeiro e que portanto era da União. Então nós reunimos - foi um trabalho longo - camponeses esparsos e invadimos a fazenda. Deu reação de polícia, deu prisão, mas eles ficaram lá. Há uma fábrica, a Ouro Verde de papel celulose localizada na vila Carambá. Centenas de operários, cortadores de lenha, uma miséria, uma exploração (...). Nós fomos lá fizemos um comício, foi o Afrânio, o Ortovazi o Luís e eu. Então vieram nos avisar que iríamos ser agredidos pelos seguranças da fábrica. O primeiro discurso nós já desafiamos a que nos atrevessem a nos agredir (...) que eles iam receber a resposta de imediato. Não houve agressão, mas houve o seguinte, a firma se dirigiu o juiz dizendo que aquilo era uma propriedade particular e pedindo a proibição de nós irmos lá. O juiz que era um outro safadão, baixou um... nos comunicou sob pena de prisão desrespeitar uma propriedade particular. Nós continuamos indo, mas nós íamos assim: por exemplo, pegava a caminhonete e num determinado ponto, já avisado, reunia 40, 50 trabalhadores no mato, nós não entravamos pela (entrada principal) entrávamos por terrenos vizinhos da propriedade e continuamos fazendo isso. Fizemos uma greve lá, depois disso eles acabaram conosco mesmo, não nos permitiram mais o acesso. Em São Francisco eu fiz bons amigos com a população pobre e também com muitos fazendeiros ricos. Fiz muitos inimigos muitos mesmo, mas um dos maiores fazendeiros de São Francisco, senão a maior fortuna, (era) um sujeito muito liberal. Este senhor era o meu contribuinte e não era pequenininho não, ele só me pedia uma coisa: "não fala para ninguém, estou dando para ti" eu digo: "está dando para o Partido!". Ele: "não para o Partido eu não dou", digo: "tá bem, tu dá para mim e eu dou para o Partido!". Nós fazíamos dia 1º de maio um churrasco para o povo pobre e num desses churrascos eu fui falar com esse fazendeiro e disse: "eu quero uma vaca para o churrasco que nós comunistas vamos fazer, como sempre fazemos", ele disse: "está bem, pode mandar buscar a vaca. Um outro fazendeiro, um cara muito liberal, se dava muito bem com a gente nos ofereceu uma vaca. Eu voltei no primeiro fazendeiro e disse: "olha aqui eu vim fazer um negócio contigo. Eu vou te vender a vaca que me destes!". E ele me comprou a vaca. Procurei outro fazendeiro e pedi uma ovelha para o churrasco. Ele disse: "que eu vou te dar ovelha coisa nenhuma, então tu achas que eu vou dar ovelha para comunista fazer churrasco...". Eu digo: "Ah, tu não vais me dar? Tu vais para o meu caderninho". Ele disse: "Vai buscar". Eu fui de caminhonete buscar, não era uma, e sim duas ovelhas... Mas a perseguição por trás era terrível, as denúncias... Nós fizemos um comício, o maior comício de São Francisco em nome do Partido Comunista, eu era o secretário-político. Eu não sou orador mas fiz um (discurso) por escrito.Luís Fernando - Tudo isso na época da legalidade?DELCY - Já na legalidade. Comício à noite, veio de Caxias um grande orador, um advogado, Persí de Abreu Lima. O comício foi num cinema antigo, velho, comprido e pegado um café com janelas (...). O cinema ficou cheio, principalmente de mulheres jovens. O café fico cheio de fazendeiros. Foi o maior comício, atacamos o Jango, por causa do negócio da fazenda. Foi uma comissão a Porto Alegre, levar a denúncia ao Jango. Jango era um homem liberal, sabe que ele não topou fazer reação? (...) Inclusive nós dissemos palavras fortes a respeito do governo e do Jango mesmo que era o secretário de agricultura.Thaís - Tentou-se reorganizar a Aliança Nacional Libertadora...DELCY - Não a Aliança Liberal foi anterior à guerra...Thaís - Mas se tentou reorganizar alguma coisa...DELCY - Eu era cadete e é claro que eu estava envolvido na Aliança Nacional Libertadora, agora eu não tomei parte no levante, só fui preso. Passei um ano na cadeia, fui expulso da Aviação...Thaís - Aí depois da volta da guerra em 39, 40 aí não se tentou mais reorganizar porque... ou se tentou reorganizar a Aliança?DELCY - Não, a Aliança não. Eu sempre fui um militante muito ativo, dizem que ativo e extremamente ativo, e sempre eu estive envolvido. Tenho uma coisa, eu fui preso várias vezes, agora eu nunca arrastei ninguém comigo. Disto eu me orgulho, como na guerra eu me orgulho de às vezes estar borrado de medo, mas os soldados nunca perceberam, nunca perceberam por dois motivos: um pela minha consciência revolucionária e também pelo preparo militar recebido nas Escolas Militares do Realengo.DELCY - Em 42 o senhor tentou voltar para a Europa de novo?DELCY - Não, 42? Durante a guerra? Ah, quando o Brasil entrou na guerra, eu e o Homero nos apresentamos no Quartel General ali em Porto Alegre. O comandante era o General Benício, era um antifascista. Ele mandou tomar nota dos nossos nomes. E ficou nisso a minha participação.Trabalhava na cidade de São Leopoldo, quando o governo criou a Força Expedicionária Brasileira na época da Segunda Guerra Mundial. Então procurei um coronel reformado - Coronel Peixoto -, e expus a idéia de criarmos um Comitê de Apoio aos Pracinhas, esclarecendo a população, o significado da ida da FEB para os campos de batalha, da Europa, lutar contra o nazi-fascismo. Ao fazer isso estaríamos lutando contra o Estado Novo fascistóide. Ele topou.Uma advogada, amiga conhecida, reuniu um grupo de jovens da alta sociedade. Eu compareci e falei sobre a necessidade de apoio aos pracinhas. Elas fizeram uma festa na sociedade local, com o objetivo de coletar presentes para os pracinhas, fazendo com que a "alta roda" fosse envolvida na luta contra o nazismo.Fizemos uma solenidade de lançamento do Comitê presidido pelo coronel Peixoto. Além das autoridades civis, compareceu o coronel comandante da Guarnição Militar do Exército, um reacionário. Eu via o ódio com que ele me olhava. Bom, (Delcy cita agora nome que foi possível distinguir) deu a palavra para mim. Aí eu expus. Saber expor eu sei, eu não sei discursar. Mas quando eu pego um assunto eu levo até... esmiuço mesmo, mostrei o que significava. Era aquele apoio para o soldadinho. O nosso Pracinha estava sentindo o apoio do povo na luta contra o nazi-fascismo. O Coronel parecia que ia pular da cadeira e dizer: "Prende esse subversivo" Ele era convidado de honra.Luís Fernando - (...) Sobre o filme "Terra e Liberdade".DELCY - Acontece o seguinte, eu estava num cinema no Rio, com um sobrinho, um jovem engenheiro. Quando terminou, o filme foi muito aplaudido. O pessoal de pé bateu palma e um único indivíduo não bateu palma. Esse único indivíduo era um ex-combatente da Guerra da Espanha. Meu sobrinho ficou muito admirado e eu então expliquei para ele o porquê. O filme belíssimo, muito bem feito mostrava a solidariedade dos combatentes nas trincheiras. Agora o conteúdo político era muito safado. A União Soviética, eles eram do POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista) os trotskistas, eles eram inimigos da União Soviética. No filme há o fato daquela moça, daquele romance. Quando ela sabe que ele, o voluntário inglês, tinha entrado para as Brigadas Internacionais ficou furiosa. O filme é simplesmente mentiroso, falso. Ele mostra por exemplo a tomada de uma aldeia pelo POUM. Eu ainda quero falar sobre o levante que eles fizeram em Barcelona. Então eles reúnem os camponeses e discutem a coletivização da terra. Um camponês que é contra e que prefere trabalhar para ele mesmo sozinho e eles acabam convencendo, votam etc. É mentira, eles faziam a coletivização na marra, fuzilavam inclusive. Esta é uma das bandalheiras do filme. Outra, quando o Exército Republicano resolveu dissolver as milícias que estavam sendo prejudiciais à luta, por não obedecerem a um comando único, já existindo o exército popular. No começo da guerra as milícias foram de um valor à toda prova, cada Partido tinha as suas milícias e seus tribunais. O governo não existia nos primeiros meses do levante fascista, não tinha exército nem polícia.Quando começaram a haver fuzilamentos, o governo chamou o chefe de polícia e disse: "O senhor tem que tomar uma providência". Ele disse: "Quem que vai tomar, eu? A Guarda Civil? A Guarda Civil não vai me obedecer, a Guarda Civil está com o povo, setores da Guarda Civil. (...) Primeiro aquela mentira da coletivização da terra, segundo, quando a República resolve dissolver as milícias. O que o governo fez? Quem quisesse ingressaria nas Forças Armadas, porque já existia um Exército Popular com organização militar, com comandos, com respeito aos prisioneiros, enfim um Exército de verdade. Quando cheguei já existia esse Exército. Aqueles que não quisessem iam embora para casa. Então chega uma tropa, (Delcy retoma o comentário sobre o filme) uma companhia do Exército Republicano, fardados com um capitão comandando e estava dissolvido as milícias estavam dissolvidas quem quisesse que fosse para casa. Então eles apresentavam ali o Exército Republicano, porque eles sempre foram contra o Exército. Em São Paulo, num cinema, compareci a um debate sobre o filme acima referido. Foram duas horas e tanto de debate, muitos jornalista, jovens e intelectuais. Gente do povo, debate muito bom dirigido pelo professor José Carlos Sebe Bom Meihy e por uma professora que eu não me lembro o nome dela.FIM LADO BFIM DA ENTREVISTA(Delcy Silveira escreveu esta parte final do depoimento durante a conferência da entrevista)Ao finalizar essa entrevista, quero dizer que dediquei minha existência à luta pela independência do nosso Brasil, seu povo, seus camponeses miseráveis, explorados por uma classe dominante corrupta e subserviente ao imperialismo.Creio que valeu a pena ter vivido tão intensamente e enfrentando muitos sacrifícios, para mim e minha família.Sou um homem realizado, pois tenho consciência que fui revolucionário, que não mediu sacrifícios na luta contra as injustiças sociais.Encerrando este relato, cito o nome dos brasileiros, com os quais lutei na Guerra da Espanha.Cel. Carlos da Costa Leite +Cel. Nemo Canabarro Lucas +Brig. Dinarco Reis +Cel. Joaquim Silveira +Cel. Av. José Gay da Cunha +Cap. Davi Capistrano da Costa +Cap. Eneas Jorge de Andrade +Hermenegildo de Assis Brasil +Cel. Amilcar Besouchet +Eny Antonio Silveira +Ramón Prieto +Roberto Morena +Cel. Apolonio de CarvalhoCel. Homero de Castro JobimCap. José Corrêa SáNelson de Souza Alves +
[1] Tal fato ocorreu no dia 5 de Julho de 22, quando houve o Levante do Forte de Copacabana e da Escola Militar do Realengo. Osttes Siqueira Campos e Eduardo Gomes com outros colegas de armas enfrentavam, na praia de Copacabana, as forças governistas. Dos heróis, só os dois referidos acima sobreviveram Esta nota inserida por Delcy Silveira por ocasião da correção da entrevista.[2] Dinarte da Silveira e Delcy Silveira. Nota inserida por Delcy Silveira, no momento da revisão da entrevista.[3] Retaco: Diz-se do indivíduo baixo e reforçado; atarracado, retacado. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1986, p. 1499.[4] Cave: palavra francesa, cuja tradução que melhor se encaixa na frase de Delcy Silveira é "porão". Michaelis, Francês-Português, Português-Francês, Melhoramentos, São Paulo,1992, p. 58.[5] Destacar: enviar ou fazer partir (um destacamento); enviar (tropas) em destacamento; destacar um batalhão, um pelotão. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, RJ, Nova Fronteira, 1986, p. 576.[6] Descompostura, repreensão. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1986, p. 681.

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