domingo, 6 de abril de 2008

Depoimento de Angelo Oswaldo

FONTE: TEXTO PRODUZIDO PARA A EXPOSIÇÃO ORGANIZADA POR OTÁVIO LUIZ MACHADO NO MUSEU CASA GUIGNARD DE OURO PRETO (SETEMBRO DE 2002)

Reproclamação das “Repúblicas”
Angelo Oswaldo
[1]

Os inconfidentes mineiros, no calor das discussões travadas na conjura de 1788 e 1789, imaginaram a criação de uma universidade em Vila Rica. A capital seria transferida para São João del-Rei, onde a plana e extensa Várzea do Marçal aparecia aos olhos dos conspiradores como sítio ideal para a sede do governo do país independente.
Meio século depois, em 1839, surgiu na Imperial Cidade de Ouro Preto, assim chamada desde 1823, o primeiro núcleo de ensino superior em Minas Gerais, a Escola de Farmácia. Cento e trinta anos mais tarde, em 1969, seria enfim criada a Universidade Federal de Ouro Preto, tendo por base a Escola de Farmácia e a Escola de Minas que Pedro II ali instalou em 1876.
As Escolas de Farmácia e de Minas deram a Ouro Preto, por entre torres vetustas e assombrosas ladeiras, o colorido jovial de uma cidade de estudantes. Evocando Coimbra e Montpellier, em cujas universidades moços mineiros do século XVIII foram buscar as luzes da Inconfidência, a velha Capital de Minas logo identificou-se como centro de estudos superiores. Tanto que a mudança do governo para Belo Horizonte, em 12 de dezembro de 1897, deixou a cidade praticamente entregue à destinação universitária.
Ambas as unidades fundadoras fizeram a glória de Ouro Preto no final do século XIX e início do século XX. A Escola de Minas tornou-se, rapidamente, foco de atenções gerais. Fundada pelo professor Henri Gorceix, da congênere de Paris, mereceu apreço especial do imperador brasileiro e pretendia formar um quadro de valores que respondessem aos anseios de progresso que se ampliavam no País em transformação.
Alunos de toda parte acorriam a Ouro Preto, como aconteceu com o jovem Getúlio Vargas e os dois irmãos que se envolveram em rixa com estudantes paulistas da família Prado, fechando ao futuro presidente as portas da Escola de Minas. Embora Gorceix fosse monarquista e tenha retornado a Paris desgostoso com o novo regime, a Escola de Minas tornou-se o grande celeiro de técnicos que haveriam de concretizar a legenda positivista da bandeira republicana, em busca de “ordem e progresso”.
Para acolher os estudantes, surgiram as “repúblicas”, à maneira das “fraternities” de Oxford e Cambridge. No princípio, eles alugavam casas nas quais se instalavam durante os anos curriculares. Depois, a Escola de Minas passou a adquirir imóveis para alojar seus engenheirandos. De tal sorte prosperou o sistema de aquisições que vender um imóvel para a Escola de Minas passou a ser o melhor negócio, senão o único, em que corria dinheiro na cidade, afeiçoada ao escambo desde a transferência do governo e sua pagadoria para as ruas largas e arborizadas de Belo Horizonte.
Foi assim que as duas Escolas hoje centenárias acumularam notável acervo imobiliário em Ouro Preto, adquirindo casas para as “repúblicas”. Terrenos também eram comprados. Tombada a cidade em 1938, os projetos se submetiam à aprovação do IPHAN, como se vê na Ruas das Mercês, nas residências que oferecem dicção contemporânea a formas da arquitetura tradicional. De tal maneira Ouro Preto era homogênea e autêntica que o IPHAN, durante muitos anos, recomendava a adoção de linguagem contemporânea que evitasse pastiches e cacoetes.
Construções nobres ou singelas compõem esse singular acervo residencial. Destacam-se a casa em que nasceu o Visconde de Ouro Preto, na Rua Direita, o casarão na lateral da Matriz do Pilar, o sobradão da Rua do Carmo, com varanda sobre o vale do Córrego do Tripuí, que se estende ao pé da Casa dos Contos. Entre tantas outras casas nas ruas Conselheiro Quintiliano, Direita, das Flores, Gorceix, Cláudio Manoel, Antônio Dias, Paraná, Pilar e Rua São José.
Espalhou-se pela cidade a rede das “repúblicas”, e foram todas assumindo peculiaridades. Os nomes bizarros constituem a primeira delas. Na “Verdes Mares”, aportavam os cearenses, é óbvio. Galeria de fotos dos ex-republicanos registram as gerações que passam pelas residências, e cada retrato é um apelido e uma história geralmente divertida ou inacreditável.
O crescimento do turismo em Ouro Preto fez com que as “repúblicas” se configurassem como opção de hospedagem, sobretudo para os jovens visitantes. Tudo parece ter começado nos Festivais de Inverno da UFMG, nos anos 60. A coordenação do evento alojava participantes em algumas “repúblicas” especialmente cedidas durante o mês de julho.
Com o aumento dos fluxos, sofisticaram-se os equipamentos das “repúblicas”, muitas já dispondo de boates em seus porões, com sistema especial de som e luz, desde a moda das discotecas, nos anos 70. Recebendo turistas, à maneira dos albergues da juventude, as residências estudantis puderam comprar grandes refrigeradores e outros aparelhos pertinentes. Tornaram-se, de fato, opção de hospedagem alegre, descontraída e barata no parque hoteleiro de Ouro Preto.
Ao mesmo tempo, foi gradativamente alterado, desde os anos 80, o mito das festas de estudantes em Ouro Preto. A legenda dos bailes inesquecíveis das décadas de 30, 40 e 50, na moldura dos anos dourados, praticamente estava desaparecendo quando as festividades tomaram uma direção inesperada e inquietante. Não havia mais bailes, suprimidos o terno e gravata, os vestidos longos, a viagem de seis horas de trem entre Belo Horizonte e a possibilidade de um noivado ao fim da última dança. A etiqueta polida e discreta virou uma pedra rolando a ladeira na era do rock e do jeans. O brilho se apagava. As formaturas perdiam o “glamour”, tal como os bailes de debutante e os concursos de miss.
Foi então que a comemoração de cada qual das “repúblicas” passou a concentrar o interesse e a atenção do aniversário da Escola de Minas, à revelia do rito solene e do conservadorismo de grupos de ex-alunos da Escola de Minas fanatizados pela celebração tradicional do 12 de Outubro (dia da instalação da Escola em 1876). Não mais o “Baile do 12”, no imenso salão do Centro Acadêmico, mas a “Festa do 12”, reunindo milhares de pessoas na Praça Tiradentes e ruas centrais da cidade, à procura de uma senha de acesso a uma das “repúblicas” ou, simplesmente, como faz a maioria, curtindo a noite quente e infernal do feriado religioso, data da Padroeira do Brasil, da descoberta da América e do encontro de Ouro Preto com a “overdose” do 12.
Ainda que as autoridades da UFOP e da Escola de Minas, ao lado dos responsáveis pelas “repúblicas”, condenem os excessos e aleguem nada ter com o afluxo de milhares de pessoas e a caotização da cidade, tanto é necessário que participem de uma solução quanto é essencial que o poder público e as representações comunitárias se associem a essa indispensável união de esforços em favor da civilidade da festa e da urbanidade do relacionamento entre cidadãos e cidade.
Em 4 de Abril, quando se celebra o aniversário da Escola de Farmácia, o fenômeno não ocorre. Ficou adstrito à festa da Escola de Minas, embora a maior parte das pessoas que se deslocam até Ouro Preto no período não tenha exata noção do que as conduz à cidade nem qual é precisamente o evento que as atrai. Declaram saber que há uma grande festa nas ruas de Ouro Preto, cujas ruas centrais ofereceriam animação e prazer.
Enfatizaram-se, no clima de mal-estar, preocupação e repúdio disseminado em Ouro Preto com relação ao 12 de Outubro, os pequenos atritos cotidianos produzidos pela desatenção das “repúblicas” para com a cidade em que se inserem. O “campus” que habitam é, na verdade, uma cidade patrimônio mundial, onde vive uma população normal, cultivando hábitos pacatos – privilégio de poucos no tumulto urbano da contemporaneidade, mas herança de que não se quer abrir mão.
Assim, é constante a sensação de desconforto de vizinhos de “repúblicas” por causa do som alto e estridente da parafernália alçada às janelas coloniais, tal como no passado sofreram os donos de galinheiros, então recorrentes nos quintais do casario, com a indelicada visita de “republicanos” famintos. Roubar galinhas, feito registrado com orgulho nas memórias de tantos ex-alunos ilustres, terá sido, certamente, menos traumático do que o sono perdido de bairros inteiros.
Entre o excesso de som e a falta de tom no 12 de Outubro, as “repúblicas” precisam firmar um novo pacto com a comunidade que as acolhe. É inimaginável que Ouro Preto possa perdê-las, recolhidos os estudantes a prédios novos no Campus do Morro do Cruzeiro. Os estudantes fazem parte do patrimônio vivo de Ouro Preto. Seria inconcebível a paisagem sem que eles a atravessassem, com as fantasias do trote, o batuque do carnaval, as brincadeiras jocosas, a alegria da vida que começa a ganhar o mundo.
Mas não é admissível que Ouro Preto permaneça submetida à balbúrdia e ao caos. Tanto quanto o trânsito de veículos que inferniza a cidade, neste começo de século, pede soluções urgentes, quanto a algazarra do som diuturno de algumas repúblicas e os excessos do 12 requerem solução que envolva a participação solidária de todos. A história das “repúblicas” deve dar início a um capítulo novo, à altura de sua legendária contribuição a Ouro Preto. Não se trata de repressão, conservadorismo ou preconceito, mas de se reconhecer a igualdade de direitos e deveres dos cidadãos. É hora da reproclamação das “repúblicas”, com um pouco mais de “ordem e progresso”.
[1] Angelo Oswaldo de Araújo Santos é Secretário de Estado da Cultura de Minas Gerais, ex-Prefeito de Ouro Preto e ex-Presidente do IPHAN.

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