O direito à memória, à história e aos arquivos
Por Michel Silva
“Será assim pelo menos até que, renunciando a se entregar às suas próprias tragédias com essa disposição, as sociedades consintam enfim a organizar racionalmente, com sua memória, o conhecimento de si mesmas. Só conseguirão isso lutando corpo-a-corpo com os dois principais responsáveis pelo esquecimento e pela ignorância: a negligência, que extravia os documentos; e, mais perigosa ainda, a paixão pelo sigilo – sigilo diplomático, sigilo dos negócios, sigilo das famílias que os esconde ou destrói”.
(Marc Bloch, “Apologia da História”, p. 85)
No Brasil, a chamada “abertura democrática” serviu para garantir a transição de um regime “autoritário” para um regime “democrático” que se caracterizasse pela conservação da ordem burguesa, sobre as mesmas bases de subserviência ao imperialismo, embora com uma fachada menos hostil aos movimentos de contestação. Com a lei de anistia, aprovada em 1979, se garantiu não apenas a possibilidade de os militantes da resistência contra a ditadura saírem da clandestinidade ou voltarem do exílio, mas também o perdão àqueles que perseguiram, torturaram e assassinaram milhares de trabalhadores e estudantes. Na década de 1980, apesar das grandes lutas de massas, a maior parte das organizações de esquerda não foi além da defesa da ordem republicana burguesa, que se materializava numa constituinte limitada e em processos eleitorais periódicos. Embora houvesse a possibilidade concreta de construir um governo de operários e camponeses, baseado nas organizações forjadas nas lutas cotidianas, a estratégia traçada pelas direções dos trabalhadores apontava para a defesa da ordem burguesa. Na transição de uma “ditadura” civil-militar para uma “democracia” civil-militar, uma das formas de garantir o sucesso da operação de salvamento dos implicados, diretos ou indiretos, no regime militar foi justamente a ocultação dos arquivos públicos dos órgãos de repressão e do próprio governo, que pudessem provar o genocídio praticado no Brasil.
O produto legal do processo de rearranjo do regime foi a nova Constituição (1988), que dava conta de incorporar tanto algumas reivindicações dos trabalhadores como mecanismos para garantir a sustentação da dominação burguesa. Sobre os arquivos, no Artigo 5, inciso XXXIII, fala-se que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. Ou seja, se garante a todos os brasileiros, vítimas ou não da ditadura, o direito a ter informações sobre sua própria vida ou sobre o conjunto da sociedade. Mas, com a ressalva da “segurança nacional”, coloca-se nas mãos dos sucessivos governos definir o que poderia “prejudicar” a nação.
Elaborada e aprovada em 1991, a Lei 8.159, sobre a política nacional de arquivos públicos e privados, conhecida como “lei dos arquivos”, estabeleceu regras sobre os princípios de funcionamento e de acesso dos arquivos públicos, incluindo aqueles da Ditadura Militar. Essa lei estabelecia o acesso pleno à informação e o prazo máximo de sigilo para documentos oficiais que “afetam a segurança da sociedade e do Estado”, que seria de trinta anos, prorrogáveis uma vez pelo mesmo período. Para os documentos que afetam a “intimidade da pessoa”, a lei garantia cem anos de sigilo, sem prorrogação.
Em 2002, FHC trouxe à luz o “sigilo eterno”, em nome da “segurança nacional”. Em decreto, o presidente garantiu que arquivos classificados como “ultra-secretos” poderiam ter seu sigilo “renovado indefinidamente de acordo com interesse da sociedade e do Estado”. Essa tragédia do governo do PSDB se repetiu como farsa no governo Lula. Demonstrando seu compromisso com a impunidade e a dominação burguesa, o governo do PT, partido que antes criticava a cumplicidade de FHC com os “coronéis do regime militar”, piorou aquilo que era péssimo. Em 2005, o governo Lula transformou o decreto de FHC na lei 11.111, que reafirma a possibilidade do “sigilo eterno” aos arquivos públicos. Essa lei também acrescenta a composição fixa para uma Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas, cujos membros são os chefes da Casa Civil, os chefes do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, os Ministros da Justiça, da Defesa e das Relações Exteriores, o Advogado-Geral da União, o Secretário Especial de Direitos Humanos, e chefes de missões diplomáticas. Ou seja, uma comissão do próprio governo, sem a participação de organizações de direitos humanos, de profissionais de história ou da área de arquivos, ou mesmo da OAB.
Em novembro de 2007, a OAB, por meio de uma ação de inconstitucionalida de, apontou que, entre outras coisas, a “lei dos arquivos” viola a Constituição por permitir que um decreto defina as categorias de sigilo, quando constitucionalmente se admite apenas que uma lei, e não um decreto, possa regrar o direito de receber as informações de interesse particular. Na mesma ação, a lei 11.111 foi considerada inconstitucional na íntegra.
Parte dos arquivos da ditadura foram abertos, como aqueles da polícia federal que ajudam os familiares a identificar os corpos dos parentes desaparecidos. Embora haja medidas realizadas pelo governo Lula, como a transferência de alguns documentos da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) para o Arquivo Nacional, fica cada vez mais evidente que existem arquivos das forças armadas mantidos em segredo, documentos em poder privado, além dos arquivos que foram destruídos. No geral, os arquivos abertos dão conta apenas de documentar parte das informações sobre processados e desaparecidos. Nesses arquivos, não estão os processos nem os inquéritos que descrevem prisões, torturas e mortes. Também não estão disponíveis, por exemplo, documentos que esclareçam as relações estabelecidas entre as ditaduras dos países do Cone Sul.
Movimentos de atingidos pela repressão e de familiares dos desaparecidos – sendo o mais conhecido o grupo Tortura Nunca Mais – se organizam há mais de vinte anos para pressionar pela abertura dos arquivos. Os arquivos parcialmente abertos são os principais frutos dessa mobilização. Também os estudantes de história vêm encampando essa luta, mas sem conseguir organizar uma campanha sistemática e articulada em âmbito nacional. Os esforços de unificar essas mobilizações fragmentadas, embora rendam frutos, se tornam limitados, na medida que não há uma entidade ou organização que articule os focos existentes em todo o país. O PT e a CUT, que poderiam ter articulado um amplo movimento nacional pela abertura dos arquivos, nunca colocaram essa pauta como uma de suas prioridades. Hoje certamente não farão nada, diante das medidas tomadas pelo governo Lula.
Cabe às organizações de esquerda e sindicatos a articulação de um amplo movimento nacional que, apontando para a necessidade da abertura total e irrestrita dos arquivos, denuncie a conivência dos governos “democráticos” de hoje com os ditadores de ontem. Essa palavra de ordem, contudo, precisa se concretizar na luta pela revisão da lei 8.159 e pela revogação da lei 11.111, possibilitando a elaboração de uma legislação que garanta o acesso a todos os documentos da ditadura, sejam os documentos pessoais, sejam aqueles de interesse público. Toda e qualquer comissão, seja para elaboração da legislação, seja para avaliar os documentos, precisa estar composta majoritariamente pelos movimentos de direitos humanos e pelos profissionais da área de história e arquivos. Os movimentos sociais e as organizações de esquerda, articulados com o movimento estudantil de história e entidades de profissionais da área, precisam colocar em pauta a necessidade da abertura imediata dos arquivos, não apenas como conquista democrática, mas também como direito à memória e à história, tanto do país como daqueles sujeitos que protagonizaram a resistência contra a ditadura.
Os estudantes de história e os arquivos
Não é de hoje que os arquivos da ditadura vem sendo pauta do movimento estudantil de história. No último Encontro Nacional dos Estudantes de História (ENEH), realizado em setembro de 2007, em Cuiabá, foi reafirmada resolução anterior, que, entre outros pontos, defende a abertura imediata dos arquivos, a denúncia dos responsáveis pelos crimes da ditadura e a construção de uma campanha contra a lei 11.111. Os estudantes de história vêm, cada vez mais, procurando fazer esse debate e discutir a importância da abertura dos arquivos; o tema será pautado dos próximos encontros do movimento estudantil de história, como o nacional, o da regional sul e o de Santa Catarina. Também vem sendo elaborada pela Federação do Movimento Estudantil de História (FEMEH) uma cartilha sobre o tema, a ser publicada em abril. Mas, apesar de tudo, a FEMEH ainda não impulsionou uma campanha nacional pela abertura imediata dos arquivos, nem articulou uma frente com as organizações de direitos humanos. Há apenas mobilizações fragmentadas e locais, sem que se aponte para uma campanha permanente e em âmbito nacional. Se há disposição da base dos estudantes para encampar a luta, se os encontros estudantis em todo o país vem reafirmando as resoluções do encontro nacional, não resta outro caminho a não ser a FEMEH, além de ter essa campanha como sua prioridade, articular uma luta nacional.
Por Michel Silva, graduando em História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e membro do colegiado do Memorial dos Direitos Humanos (MDH) de Santa CatarinaPublicado no Jornal Palavra Operária - março 2008www.ler-qi.org
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