FONTE: Depoimento de Paulo Speller publicado no livro JUVENTUDE E MOVIMENTO ESTUDANTIL: ONTEM E HOJE (Editora UFPE, 2008, organizado por Luís Antônio Groppo, Michel Zaidan Filho e Otávio Luiz Machado)
O Movimento Estudantil na Unb: Espaço de Resistência Contra a Ditadura Militar na Década de Sessenta.
Paulo Speller
A UnB exerceu grande poder de atração sobre a geração dos anos sessenta por suas características de inovação como universidade inserida em seu tempo, buscando a transformação do país. A invasão da universidade em outubro de 1965 e seu esvaziamento foram entendidos como estratégia da ditadura, que quis calar a sua voz independente em Brasília. O regime não aceitava que, ao lado do Palácio do Planalto, alguém pudesse questioná-lo. Aliás, a bem da verdade, o próprio presidente Juscelino Kubitschek resistiu inicialmente à idéia de uma universidade em Brasília.
Ao terminar o ensino colegial em 1965, inscrevi-me em dois vestibulares da UFMG, em Belo Horizonte – naquela época o vestibular ainda não era unificado e acontecia isoladamente em cada faculdade. Tinha dúvidas e disputava uma vaga nos cursos de psicologia e de sociologia e política, nas Faculdades de Filosofia e Ciências Humanas e de Ciências Econômicas. Aprovado nas provas eliminatórias, estava praticamente admitido na UFMG, devendo apenas prestar os exames finais. Minha decisão de abandonar tudo e ir para Brasília se deu quase por acaso, um desses acontecimentos fortuitos que, de repente, muda a vida de uma pessoa. Passou em casa um amigo, Gilson Dias, que me trouxe a notícia que lera naquele dia também quase por acaso no Diário de Notícias – era mesmo esse o nome do jornal? A UnB voltava a funcionar e estava aberto o seu vestibular. Vamos pra UnB? Pensei rapidamente, decidi que aquele era meu destino, falei com meu pai à noite, que apoiou minha decisão, e dois dias depois rumamos para Brasília, uma cidade que ainda não conhecia. Queria estudar psicologia na UnB.
O que mais incomodava os militares era a presença de uma universidade que dizia o que pensava. O modelo em si talvez não incomodasse tanto, o que se confirma pela “reforma universitária” de 1968, promovida pelo governo militar, onde a cátedra fora extinta e promovida a departamentalização, características pioneiras da UnB, no Brasil. Mais do que isso, o que se destacava na UnB, em comparação com as universidades brasileiras da época, era a concepção de uma universidade integrada, onde se estimulava a integralização dos créditos acadêmicos em outros departamentos, a realização de atividades que envolviam estudantes de todos os cursos, como por exemplo através da cultura e o estudo de idiomas. Eu mesmo tive a oportunidade de participar do coral universitário, cursei disciplinas de integração no departamento de artes, aperfeiçoei o domínio da língua inglesa e ainda participei de várias atividades de extensão. A vida universitária no campus era para valer, no Centro Olímpico, onde morei inicialmente, no Restaurante Universitário gerenciado pelo seu Aldo, no Campus Bar, vinculado à nossa FEUB (Federação dos Estudantes Universitários de Brasília), nas atividades desportivas, e por aí vai.
A repressão ao movimento estudantil pela ditadura dava-se não só nas ruas, mas também no plano formal das normas. A UNE e toda a estrutura da representação estudantil foram substituídas por uma nova rede de representação ligada ao regime, isso no plano formal. Na prática, resistimos mantendo a antiga estrutura da UNE, DCE´s e Diretórios Acadêmicos. Na UnB, mantivemos a FEUB, representação maior da universidade e do Distrito Federal, assim com os DA´s. No meu primeiro ano de UnB, em 1966, organizamos a primeira diretoria do Diretório Acadêmico do Instituto Central de Psicologia, o DAICP, do qual fui presidente. Na FEUB, compus em 1967 a diretoria encabeçada por Honestino Monteiro Guimarães, na qual assumi a diretoria de assistência estudantil, responsável pelas reivindicações de bolsas, moradia e alimentação estudantil. Além de buscarmos a retomada da conclusão das obras na universidade, enfrentávamos o desafio de construir condições de acesso e manutenção de boa parte dos estudantes oriundos de outros estados, pois a UnB exercia grande poder de atração. Para estes, buscávamos garantir bolsas e moradia. As bolsas tinham um sentido não apenas assistencialista, pois buscávamos um sentido de inserção do estudante na pesquisa, na docência, na extensão. As bolsas de monitoria, por exemplo, permitiam ao estudante uma contribuição importante nos laboratórios, ao mesmo tempo em que os integravam em equipes de docência e pesquisa sob a supervisão de professores mais qualificados. Minha própria experiência como monitor nos laboratórios de psicologia permitiu-me uma proximidade com os instrutores do departamento e com o professor Robert Norman Berryman, então diretor do ICP.
Muitos estudantes exerciam a docência nas escolas secundárias de Brasília, pois a cidade era carente de professores habilitados. Assim, à noite muitos dos que moravam na universidade e nas repúblicas e quartos alugados da Asa Norte estavam nas escolas da cidade. A moradia de estudantes e professores no campus integrava conceitualmente a proposta inovadora da UnB, o que se viabilizava através dos blocos residenciais da Colina e os pavilhões do Centro Olímpico. A administração superior da universidade resistia à ampliação desses espaços, herdados do período anterior ao golpe militar, e não foram poucas as vezes em que nos vimos obrigados a forçar a reitoria a reabri-los e ampliá-los. Foi dessa forma, com a reabertura dos pavilhões ainda de madeira do Centro Olímpico, por nós ocupados em 1966, que finalmente conseguimos a retomada de construção definitiva do CO. A ocupação de apartamentos que se mantinham fechados na Colina também levou à construção das Casinhas, projeto inovador dos cursos de arquitetura e engenharia, que viabilizou a desocupação dos apartamentos da Colina e a nossa instalação no próprio campus. Havia vários outros espaços menores no campus ocupados por estudantes, como o Inferno, as Ocas I e II, e a Casinha do Niemeyer, protótipo de concreto do que se pensava seria o embrião da moradia estudantil na UnB. O Restaurante Universitário exercia papel estratégico não só para o estudante que dispunha de recursos limitados, mas como espaço integrador de estudantes de todos os cursos, onde também muitos professores e funcionários faziam suas refeições. O RU era o espaço privilegiado de articulação de muitas ações culturais no campus, e sobretudo do movimento estudantil.
A universidade se constituía como um dos poucos espaços de contestação da ditadura militar que se mantinha relativamente livre e atuante, com interlocução permanente com o Congresso Nacional, em especial com o MDB e lideranças como o então líder da oposição na Câmara dos Deputados, Mário Covas, o Senador Matta Machado e os deputados Hélio Navarro, Gastone Righi e David Lehrer, entre outros, com os quais as lideranças universitárias mantinham interlocução. A UnB abrigava palestras e debates constantes com personalidades e docentes em Brasília, pois a cidade era privilegiada como espaço político onde a contestação da ordem autoritária era permanente. Nesse sentido, o espaço universitário da UnB propiciava a formação político-cidadã de seus estudantes em torno de uma luta que a todos congregava, quase unanimemente, contra a ditadura militar.
O espectro da invasão era permanente. De certa maneira sabíamos que a UnB seria novamente invadida policial-militarmente, dado o crescente comprometimento da UnB com a resistência à ditadura, para além de ser local de eventos de maior ou menor repercussão contra a ditadura, seja no âmbito do movimento estudantil ou em outras esferas da sociedade civil, restritamente à comunidade universitária local, regional ou nacional ou estendendo-se para além do campus. Depois da morte do estudante Edson Luís no restaurante Calabouço no Rio de Janeiro, a UnB era palco de protestos continuados contra a ditadura militar.
Experimentei a primeira invasão em junho de 1967. Lembro-me bem desse dia, recebíamos a visita de José Roberto Arantes, vice-presidente da UNE, e poucos minutos antes da invasão por policiais do Distrito Federal conversávamos os dois com Honestino nas proximidades do Setor de Transportes, perto de onde se localizavam a FEUB, a FAUnB e vários diretórios acadêmicos ainda em construções de madeira que se assemelhavam aos barracos de obras, bem em frente à APT-15 dos Correios e Telégrafos – ponto freqüente de encontro dos estudantes que moravam no campus, pois ali recebíamos nossas correspondências como posta restante. Repentinamente a “tropa” desceu da direção do CIEM, vindo da avenida L2, na Asa Norte. Roberto e Honestino desapareceram como num passe de mágica, e eu acabei detido mais tarde junto com Mauro Burlamaqui quando me dirigia ao Congresso Nacional, onde um ato de protesto se organizava. Foi também minha primeira experiência de cadeia, onde dividi uma cela reservada à detenção da tropa no BGP, no setor militar de Brasília. Ficamos “de molho” por uma semana, mas juntos mantivemos o moral alto, alimentados por protestos dos colegas na UnB e de parlamentares da oposição no Congresso Nacional.
A FEUB tinha grande respeitabilidade não somente entre estudantes, mas em toda a comunidade universitária, e legitimidade representativa na própria reitoria. Os reitores Laerte Ramos de Carvalho e Caio Benjamin Dias, ambos colocados na direção da UnB como interventores da ditadura, ainda que legitimados pelo Conselho Diretor, faziam a interlocução com a FEUB e jamais questionaram sua representatividade. Fora do campus, a FEUB era conhecida e reconhecida em seu papel político de representação dos estudantes da UnB pela imprensa, pelo Congresso Nacional e, de certa forma, pela própria sociedade brasiliense. Politicamente, considerando a tradição de resistência à ditadura, penso que seria pertinente a recuperação da sigla FEUB pelo DCE da UnB, como homenagem àqueles que lutaram em torno da entidade e principalmente à figura de Honestino, que entregou sua própria vida à luta contra a ditadura.
Honestino tinha duas características que o destacavam dos demais estudantes. Primeiro, tinha forte e sólida formação acadêmica, sabia expressar-se com clareza, era excelente estudante. O estudante universitário da época integrava uma elite muito reduzida e seleta, o que se refletia na base acadêmica que se exigia então, através do vestibular classificatório. Mas, ainda assim, Honestino se destacava, reconhecidamente, por seus colegas e professores do curso de geologia. Segundo, Honestino tinha forte sensibilidade social, não somente em suas convicções políticas de resistência ao autoritarismo da ditadura militar, mas era igualmente sensível à problemática da fome, da miséria, da concentração de renda. Muito jovem, Honestino tinha forte carisma por trás de seus óculos de lentes grossas e gozava da estima de todos na universidade. Era firme no trato com as autoridades dentro e fora da instituição, mas ao mesmo tempo era extremamente cordato, polido e educado, e assim costurava com consistência seus argumentos contra a ditadura e na defesa da universidade. Era hábil no verbo, não no grito. Seguia à risca o que o Che nos ensinaria, “hay que ser firme, pero sin perder la ternura jamás”.
O acesso à universidade brasileira na década de sessenta era restrito a uma elite bastante reduzida, que via no ensino superior um espaço de formação de seus filhos com vistas a reproduzir um modelo de nação que tem suas origens na visão patrimonialista do país, onde a concentração da posse da terra e da renda era a característica que mais se destacava. Hoje, a ampliação do acesso é uma ilusão, na medida em que a expansão da universidade se deu a partir da liberalização para a abertura de instituições privadas, cuja qualidade deixa muito a desejar, como regra geral, segundo avaliação do próprio governo federal. O desafio, portanto, está no crescimento das oportunidades de educação superior em instituições públicas, com qualidade e diversificação de cursos, modelos, que efetivamente permitam responder às demandas da sociedade brasileira.
A participação do estudante na vida universitária deve ser inerente à sua própria formação, contribuindo assim para uma visão de cidadão que traga em sua prática profissional enfoques de atuação calcados no trabalho de equipe e no respeito ao outro. São várias as formas de participação: nas entidades representativas, como centros acadêmicos e dce´s, representação nos colegiados e conselhos da instituição, inserção nas equipes docentes, de pesquisa e extensão como bolsistas de iniciação à pesquisa e à docência, voluntários em atividades diversas, atividades desportivas, além dos inúmeros movimentos culturais e artísticos que hoje existem no interior das universidades.
A universidade em si não se articulava a um projeto de país na década de sessenta, pois enquanto instituição era espaço de diversidade e no seu interior coexistiam diversos pontos de vista e, neste sentido, projetos de país. O que mobilizava os estudantes era uma luta quase consensual contra a ditadura militar, pelas liberdades democráticas, que, ainda que não fosse unânime, assim se expressava no ambiente universitário. Mas não nos iludamos: também havia dentro da universidade brasileira da década de sessenta, inclusive na UnB, muito medo da repressão, da prisão, da tortura, sobretudo entre aqueles estudantes que viviam em Brasília com suas famílias. Sócio-economicamente e culturalmente, o estudante universitário vinha das camadas médias e superiores da sociedade brasileira que em 1964 estava nas ruas do país assustada com as mobilizações sociais e sindicais, clamando por ordem, com Deus e pela família. O que se observava na UnB era um desprendimento das lideranças estudantis, geralmente vindas de outros estados, vivendo longe de suas famílias, que se entregavam mais ao movimento estudantil com maior desprendimento. Isso no plano geral, pois também tivemos grandes lideranças de Brasília, como o próprio Honestino, que vivia na cidade com sua família, na Asa Norte.
Na estrutura do movimento estudantil dos anos sessenta as executivas nacionais se organizavam por cursos, sendo o espaço onde se colocavam as discussões sobre formação profissional, assim como a interlocução com os Conselhos corporativos correspondentes. Assumi a presidência do CONEPSI, Conselho Nacional de Estudantes de Psicologia, em reunião realizada em Recife em 1967, mas a repressão ao movimento estudantil nos atingiu em cheio e nossa atuação ficou prejudicada, sobretudo depois de minha prisão em 1968 no XXX Congresso da UNE em Ibiúna.
Assumi a presidência da FEUB em agosto, depois da prisão de Honestino na grande invasão da UnB, numa rápida e tumultuada assembléia geral dos estudantes, que se realizou na rua em frente à entrada do auditório 2 Candangos, pois a reitoria impediu o acesso ao auditório. A partir de então, já com prisão preventiva decretada a pedido do encarregado do IPM sobre movimento estudantil em Brasília, liderei a FEUB na clandestinidade. Além de manifestações públicas de toda ordem, dentro e fora do campus, realizamos os preparativos para escolha de delegados e participação no XXX Congresso da UNE em Ibiúna. Como era corrente na época, alguns de nós viajaram com passagens cedidas por deputados da oposição – eu mesmo viajei com passagem em nome de Mário Covas – e, como o controle nos aeroportos era ainda muito artesanal, chegamos a São Paulo. De lá até Ibiúna, foi uma sucessão de “pontos” e senhas, dormindo no meio do caminho em algum lugar que não sou capaz de identificar, até chegarmos ao sítio de Ibiúna, onde mal cabíamos, dormindo por turnos de 4 horas, com alimentação precária e reduzida. Mal conseguimos abrir a plenária do congresso, num “anfiteatro” com degraus cavados na terra, em cima de lonas, quando ouvimos rajadas de metralhadora e gritos de “não fujam, senão passamos fogo”. Ali terminou o congresso. Uma longa marcha de cerca de sete quilômetros debaixo de chuva miúda nos levou aos ônibus que nos aguardavam para a viagem ao Presídio Tiradentes. Éramos quase 700 estudantes, mas a grande maioria seguiu viagem em ônibus especiais para os respectivos estados, onde foram recebidos por familiares previamente alertados. Ficamos no Tiradentes apenas os que tínhamos prisão decretada. De Brasília, ficamos eu e Lenine Bueno Monteiro, estudante de arquitetura, de quem me tornei amigo com a longa convivência de mais de um ano no cárcere, começando em São Paulo, de onde seguimos viagem em avião sob a custódia da Polícia Federal para o Batalhão da Polícia do Exército em Brasília, retornando novamente ao Tiradentes para o julgamento da Auditoria Militar de São Paulo. Foram quase 14 meses, entre outubro de 1968 até dezembro de 1969. Depois foi o exílio de 10 anos entre o México e Moçambique, mas esta é outra história.
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