sábado, 4 de outubro de 2008

Artigo Quase Memória - Por Peter Burke


COMENTÁRIO DE OTÁVIO LUIZ MACHADO:

a vagareza do Estado em abrir em definitivo os arquivos da ditadura militar brasileira só contribui para que os bisnetos das pessoas que foram perseguidas por ações de agentes do Estado conheçam apenas migalhas dessa parte da História do Brasil. A liberação de recursos públicos para entidades privadas sem compromisso com a memória (tais como a UNE e a Fundação Roberto Marinho) é o sintoma dessa apatia estatal com a questão da reconstituição histórica da luta do povo brasileiro. Muitos jovens atuais estão buscando conhecer a história de jovens que em outros tempos não aceitaram viver oprimidos. Mas a tendência ao esquecimento é mais forte do que o da lembrança.

FONTE: Folha de S. Paulo, Caderno Mais, 28 de setembro de 2008, p. 3

Artigo Quase Memória
Peter Burke


Na última geração, os europeus experimentaram um “boom de memória”, uma onda de interesse, tanto acadêmico quanto popular, pelas lembranças;não apenas memórias individuais, mas também coletivas – em outras palavras, imagens compartilhadas do passado.
A idéia central de Nora foi pedir a seus colaboradores que se concentrassem em lugares associados a memórias coletivas do passado Frances – lugares geográficos, como Versalhes ou o Panteão, mas também lugares metafóricos, como a “Enciclopédia Larousse” ou mesmo a Marselhesa”.
A série foi imitada em outros países europeus, como a Alemanha e a Itália. Poderia ou deveria ser imitada também no Brasil?
Poder-se-ia afirmar que no Brasil ou em outros lugares do Novo Mundo um empreendimento como o de Nora seria inadequado, pois, em comparação com a Europa, nas Américas um edifício é considerado antigo quando data da década de 1930, e a população de muitos países é relativamente jovem e mais voltada para o futuro do que para o passado.
Na verdade, os brasileiros parecem ainda menos preocupados com o passado do que as populações de outros países latino-americanos, especialmente a Argentina.
De todo modo, o Brasil tem seus próprios "lugares de memória". Os nomes de muitas localidades, de Iguaçu a Paraíba, têm um significado em tupi e assim nos lembram, ou deveriam lembrar, os tupinambás e outros "primeiros povos".
Cidades, pessoas
As cidades, por outro lado, muitas vezes evocam memórias da Europa. Os imigrantes tentaram recriar nas Américas um mundo conhecido, batizando suas cidades de Belém, Nova Friburgo, Nova Odessa e assim por diante.Em comparação, os escravos africanos que foram trazidos para o Brasil contra a sua vontade não tiveram a oportunidade de impor nomes familiares à paisagem estranha. No entanto tentaram a reconstrução simbólica do espaço africano nos terreiros de candomblé.
As memórias locais também são importantes. Os nomes de algumas cidades e muitas ruas se referem a líderes e acontecimentos locais -João Pessoa, avenida Nove de Julho etc. Nomes como esses foram conseqüência de iniciativas oficiais.
Um testemunho mais direto de memórias populares ou atitudes em relação ao passado vem dos nomes pessoais. Para um visitante europeu, é uma espécie de surpresa descobrir quantos brasileiros têm nomes de heróis culturais como Edison, Milton, Newton ou Washington.O único problema é descobrir se esses nomes foram escolhidos pelos pais por sua sonoridade ou por sua associação com o Reino Unido, os EUA, a ciência ou a democracia.
Um equivalente brasileiro a "Os Lugares de Memória", se fosse publicado, como espero que um dia o seja, naturalmente incluiria as comemorações oficiais de eventos como a descoberta do Brasil pelos portugueses ou a expulsão dos portugueses da Bahia em 1823.Como no caso da Europa, os locais de memória incluiriam museus e monumentos (embora os visitantes europeus possam se surpreender ao ver monumentos aos imigrantes no Brasil).
Também haveria espaço para pinturas históricas como "Independência ou Morte", de Pedro Américo, ou suas imagens da guerra contra o Paraguai.
De todo modo, os principais lugares de onde a maioria dos brasileiros extrai suas visões do passado são certamente o Carnaval e a telenovela.
Temas históricos são comuns nos enredos das escolas de samba do Rio e seus equivalentes em outras cidades - eventos como a descoberta do Brasil ou a abolição da escravatura e indivíduos como Zumbi ou o imperador d. Pedro 2º.
Quanto às telenovelas, pense-se no sucesso de "A Escrava Isaura" em 1976 e novamente em 2004; e de "Sinhá Moça" em 1986 e também 20 anos depois, assim como novelas relacionadas à história mais recente, de "Éramos Seis" (1994) a "Terra Nostra" (1999).


Novelas e Carnaval


Com um pouco de exagero, poderíamos compararas visões do passado brasileiro apresentadas nesses dois meios de comunicação.
A visão carnavalesca tende a ser crítica e a apresentar o ponto de vista do escravo. Por exemplo,em 1988, centenário da abolição da escravidão, o tema da Mangueira foi "Cem Anos de Liberdade - Realidade
do ou Ilusão?".
As novelas, por sua vez, geralmente apresentam uma visão de harmonia social – embora Ias apareçam os fazendeiros e capatazes cruéis, os protagonistas (em geral brancos ou mestiços) são generosos e idealistas.
Em suma, poder-se-ia dizer que o Brasil tem o que poderíamos chamar de um "regime de memória" próprio. Em contraste com a França e outras partes da Europa, há menos preocupação com o passado, e os lugares associados às memórias também são diferentes.
O contraste entre o regime Ta de memória do Brasil e o de seus vizinhos hispano-americanos não é menos notável. As estátuas eqüestres de líderes como Bolívar, San Martín e Artigas não são muito presentes no Brasil (com exceção do Rio Grande do Sul, pelo menos), uma lembrança de que o Brasil a conquistou a independência por meios mais pacíficos do que a América espanhola.
Uma estátua foi oferecida a dom Pedro 2° depois da Guerra do Paraguai, o imperador a recusou, enquanto o marechal Deodoro teve de esperar até 1937 e as políticas de comemoração do regime Vargas para que sua estátua eqüestre fosse erguida no Rio.
Outro contraste entre o Brasil e seus vizinhos, especialmente a Argentina, o Chile e o Peru, se refere às memórias recentes de regimes autoritários e às pessoas “desaparecidas".
O Brasil não tem equivalente as à Comissão da Verdade chilena -embora uma equipe de pesquisadores patrocinada pelo cardeal Paulo Evaristo Arns, ex-arcebispo de São Paulo, tenha publicado ''Brasil, Nunca Mais", um relato dos abusos aos direitos humanos durante a ditadura militar.
Até agora a anistia e a amnésia - conceitos associados predominaram. Essa situação vai mudar em um futuro próximo ou o regime de memória do Brasil continuará original?


Peter Burke é historiador inglês, autor de “O que é História Cultural?” (Ed. Zahar). Escreve na seção “Autores”, do Mais.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.








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