terça-feira, 26 de agosto de 2008

Discurso do ministro Paulo Vannuchi

FONTE: http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh/.arquivos/.extfiles/discurso_renaissance.pdf

Discurso do ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial
dos Direitos Humanos da Presidência da República
(SEDH/PR), no seminário internacional “Direito à Memória e à
Verdade”,
ao apresentar o juiz espanhol Baltasar Garzón, no
teatro do Hotel Renaissance em São Paulo, 18/08/08.
Começo reforçando os agradecimentos a esses palestrantes
tão reconhecidos, diversificados. Eu fico feliz de tornar a ver
essa junção de tantas figuras históricas na defesa dos direitos
humanos no nosso país: estudantes, militantes dos direitos
humanos, familiares de mortos e desaparecidos, o fórum de
ex-presos políticos, juízes – uma quantidade muito expressiva
de juízes-, procuradores, advogados, colegas jornalistas.
Agradecimentos especialíssimos ao doutor Baltasar Garzón,
que se dispôs, depois de um convite nosso, a atravessar o
Atlântico para vir ajudar o Brasil nesse momento de
desbloqueio, de retomada de temas que estão há muitos anos
por serem devidamente processados.
O meu agradecimento à Caixa Econômica Federal, peço uma
transmissão de abraço à querida companheira Maria
Fernanda Coelho, presidente da Caixa, que eu já conhecia da
militância sindical.
À Unesp (Universidade Estadual Paulista), a importância de
ter uma universidade como parceira nesse evento para sair
daqui com a responsabilidade de transformar isso em novos
programas de debates, seminários e pesquisas. A Unesp, que
vem desempenhando papel tão importante desde o seu
trabalho editorial e que tem sido responsável pela divulgação
de livros que outras editoras comerciais não têm interesse em
divulgar. Eu sou estudioso de Bobbio e metade dos títulos de
Bobbio no Brasil deve ser produção da Unesp. A Unesp
realizou em Marília, este ano, foi a primeira universidade a
fazer isso, uma Semana dos Direitos Humanos.
E à CartaCapital, na figura histórica do Mino Carta. Não
haveria nenhum outro parceiro mais legítimo na imprensa,
pelo trabalho corajoso que a revista vem fazendo. Há pouco
tempo ela fez uma matéria de um torturador na capa que
estava escondido em Presidente Prudente.
Hoje, no almoço com o Mino, que para quem não conhece é
fundador de várias importantes publicações brasileiras,
lembrávamos a matéria da Veja. A Veja fez uma matéria
importante, também com Raimundo Pereira, Bernardo
Kucinski, sobre a morte de Chael Charles Schreier, no terrível
período Garrastazu. Mino me contou sobre os três dias de
interrogatório pelo delegado Sérgio Fleury, que o submeteu a
isso depois da morte de Câmara Ferreira.
Eu também tinha planejado, antes, quando o convite foi feito,
que a minha apresentação seria muito breve como as demais;
um agradecimento. Mas eu fiquei ciente de que preciso dizer
algumas palavras sobre esse clima, essa tensão, das duas
últimas semanas, desde o episódio da Audiência Pública no
Ministério da Justiça, situando o contexto. E o contexto mais
geral é que esse nosso evento é parte da celebração dos 60
Anos da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”.
Aquele documento de três páginas, o único programa político
que a humanidade foi capaz de aprovar até hoje, tenta
desenhar como deverá ser o mundo sem guerras, um mundo
reconciliado, quando garantidos os pressupostos da Justiça,
da Igualdade, da Liberdade e da Democracia, fundamentais à
paz. Estes 60 anos também coincidem com vários outros
aniversários. Em 2008, se completam os 120 anos da Lei
Áurea e da abolição inconclusa; 40 anos das lutas de 68; 20
anos da Constituição Cidadã; 10 anos da prisão de Augusto
Pinochet em Londres.
Este ano, em 25 de janeiro, o presidente Lula me convidou
para acompanhá-lo ao Rio de Janeiro, num evento em que,
pela terceira vez consecutiva, ele visitava a comunidade
judaica no dia que as Nações Unidas instituíram para celebrar
o Holocausto. Nesse evento, o presidente convocou o Brasil
para um mutirão nacional de debate e celebração dos 60
Anos e de atualização do nosso Programa Nacional dos
Direitos Humanos (PNDH).
O Brasil tem um Programa Nacional desde 1996, o titular era
o José Gregori, tem uma segunda versão 2002, o titular era o
Paulo Sérgio Pinheiro. Em Direitos Humanos, o Brasil cuida,
como deve fazer, de assegurar políticas de continuidade, de
Estado, que resistem à saudável e desejável alternância de
partidos no poder. Nesse sentido, caminhamos agora para o
terceiro PNDH e o tema do “Direito à Memória e à Verdade”,
que estava presente na outras versões, continuará presente.
Estamos cumprindo uma das determinações do presidente
Lula. O convite ao doutor Baltasar Garzón foi feito em maio,
na 12ª Reunião de Autoridades em Direitos Humanos e
Chancelarias do Mercosul e Associados, uma articulação que
vem desde 2004, e realiza duas reuniões por semestre,
sempre no país que tem a presidência pró-tempore do
Mercosul. Incorpora todos os países da América do Sul,
menos a Guiana e o Suriname. É um fórum de dois ou três
dias para conhecer, intercambiar e homogeneizar as
legislações sobre criança e adolescente, sobre direitos do
idoso, direitos da pessoa com deficiência, as múltiplas facetas
dos Direitos Humanos.
É muito importante que nós, militantes dessa causa específica
dos Direitos Humanos, reconheçamos a importância de
apoiarmos e nos solidarizarmos com todas as demais lutas
que compõem o cumprimento dessa rota de reconstrução
nacional e planetária na busca incansável da paz.
Ali [na reunião do Mercosul], o meu colega argentino Eduardo
Luis Duhalde trouxe o Baltasar Garzón para a abertura e
aproveitamos a chance, era maio, e rapidamente fizemos o
convite, prontamente aceito por ele. Depois, definimos essas
datas e a visita acontece nesse momento de tensão que eu
mencionei. Eu quero dizer algumas poucas palavras sobre
ela, ajudando meus colegas jornalistas a recomporem melhor
o conteúdo preciso do que vem sendo debatido e do que deve
ser debatido.
Na Audiência de 31 de julho, no Ministério da Justiça, nem o
ministro Tarso Genro nem eu propusemos revisão da Lei da
Anistia. Quando tentamos explicar isso, fomos tratados como
“recuantes”. Nos atribuem um ataque que não fizemos para
depois atribuir também um recuo.
O que dissemos é que não havia definição de que a Lei de
Anistia, de 1979, e sobretudo aquela capciosa palavra
“conexos”, tinha poder para encobrir as violações
sistemáticas dos Direitos Humanos: as torturas, os
assassinatos, as decapitações, os esquartejamentos, as
violações sexuais, estupros e a ocultação de cadáveres – que
é um crime continuado.
Quem ocultava cadáveres no final de agosto, dia da anistia de
79, reincidiu no crime no dia seguinte. Porque essas pessoas
sabem onde estão enterrados, onde podem ser procurados.
Discutíamos, também em concordância, que a decisão
caberia obviamente ao Judiciário - porque é o judiciário
espanhol que inclui um titã, um ícone, como Baltasar Garzón.
É o Judiciário chileno, argentino, uruguaio e até o paraguaio
que começam a tomar decisões firmes.
Daí a importância, a minha saudação, ao expressivo
comparecimento de integrantes do Judiciário ao nosso
evento, que saem daqui compromissados com o
prosseguimento da sua ação independente, de vigilância e
cobrança do Estado e sensibilização para ampliar entre seus
colegas os que compreendem a importância de levar adiante
esse tema.
Sobre a idéia de revanchismo, quando, em 29 de agosto do
ano passado, lançamos etse livro [“Direito à Memória e à
Verdade”], em Brasília, que eu vou passar às mãos do juiz
Baltasar Garzón, incluímos uma página de apresentação
assinada pelo Marco Antônio Barbosa, presidente da
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, e
por mim. Nós podíamos ter dito que se tratava de retomar
urgentemente a idéia de punição. Mas a nossa opção foi
trabalhar com a idéia de “Direito à Memória e à Verdade”:
abrir todos os arquivos, apresentar todas as informações,
localizar os corpos, restos mortais, de aproximadamente 140
brasileiros, cujas famílias não tiveram ainda assegurado esse
direito sagrado e milenar de enterrar seus mortos.
Os povos mais sanguinários da história da humanidade
interrompiam suas guerras para algumas horas de trocas de
cadáveres. Para que cada grupo, cada tribo, cada nação
fizesse seu ritual funeral que encerra, no plano simbólico, o
ciclo da vida. Nós estamos de acordo também com a idéia de
que não temos que ficar voltados ao passado. O que nós
discutimos aqui, hoje, é o futuro do Brasil. É o Brasil que
queremos construir. Um Brasil maduro, democrático, de
instituições consistentes e sólidas porque teve coragem de
mergulhar profundamente. Como a Alemanha teve coragem
de mergulhar no regime nazista, como a Espanha teve
coragem de repassar os horrores da Guerra Civil. Ou se nós
vamos tentar o caminho pueril, infantil, imaturo de jogar uma
pedra sobre o passado sem processá-lo, sem debatê-lo.
Falta divulgar melhor na imprensa aspectos como o fato de
que a discussão é do Judiciário. Mas ele já tem pelo menos
uma decisão absolutamente concluída: a sentença federal,
que começou com a juíza Solange Salgado, sobre o Araguaia,
transitou em julgado e não tem mais recursos possíveis. Ela
determina que a União apresente, num prazo de 120 dias,
todos os documentos sobre o Araguaia e a localização dos
restos mortais.
O mundo projetado pelos Direitos Humanos é o mundo da
paz. Está no preâmbulo da “Declaração Universal dos Direitos
Humanos”, que inclusive diz: “Para que os povos não sejam
novamente impelidos à rebelião”, aquela rebelião que é
biblicamente assegurada, que no pensamento liberal de John
Locke sempre foi sustentada como Direito de Revolta contra
as tiranias existentes, por São Tomás de Aquino, pelos
fundadores da democracia norte-americana. Os EUA
nasceram de uma luta armada contra o domínio colonial
inglês.
Se nós projetamos o mundo da paz e temos um mundo de
guerra, é preciso trabalhar o tema da reconciliação sem
preconceito. Mãos estendidas. Queremos sim reconciliação.
Mas não nos peçam a reconciliação sem a verdade. Não nos
peçam a reconciliação dizendo que Vladimir Herzog cometeu
suicídio porque entrou em depressão. Ele foi preso e morto
sob tortura no DOI-CODI. Rubens Paiva não abandonou a
família porque enlouqueceu, nem Honestino Guimarães,
Olavo Hansen, Stuart Angel Jones. Nós poderíamos ir muito
longe nessa lista de pessoas muito queridas - e amigos meus,
colegas de classe, de residência, um primo meu. A lista é
muito grande.
A reconciliação só pode ser pensada após um processo de
profunda, ampla e ilimitada verificação de tudo que ocorreu,
com nomes, datas, localização dos corpos ou pelo menos a
narrativa [de seu desaparecimento]: Rubens Paiva foi atirado
de helicóptero sobre a Baía de Guanabara e, por isso, não é
mais possível encontrar o corpo. Que haja uma narrativa: “Na
noite tal, o helicóptero tal, pilotado por tais oficiais, levou o
corpo de Rubens Paiva, ou Rubens Paiva vivo, e o atirou sob
alguma localidade”.
Não se pense em encerrar esse debate sem trabalhar
profundamente essa discussão. Qualquer idéia de
reconciliação, como na África do Sul, passou pela verdade.
Se Mandela ficou 27 anos preso, humilhado, torturado,
ameaçado de morte o tempo todo e ofereceu esse sofrimento
à reconciliação nacional com a verdade, aqui no Brasil todos
nós estaremos dispostos a essa maturidade reconhecida.
Mas não à idéia do recalque. Eu sou casado com uma
psicanalista, minha mulher e o nosso círculo de amigos
trabalham muito freqüentemente o tema “retorno do
recalcado”. Tudo o que é recalcado, não é processado
analiticamente, volta sempre.
Hoje, recebemos um grande juiz espanhol. E que direito teria
a Espanha de decidir que não se discute mais a morte de
Frederico Garcia Lorca, o nosso poeta do Verde que te quiero
verde, verdes ramas, verdes vientos, el barco sobre la mar y
el caballo en la montaña”. O mundo tem direito de saber
quem matou Garcia Lorca, por que matou, em que dia, por
qual razão. Se era por ser republicano, por ser homessexual,
por ser poeta.
Os crimes e a violência do Brasil são da humanidade. O fato
histórico de Luis Baltasar Garzón ter conseguido reter
Pinochet, por um bom tempo, em Londres, é grande anúncio
de processos que seguirão adiante. Porque os povos não
podem mais conviver com a idéia de que, por exemplo, em 30
de abril de 81, dois oficiais do DOI-CODI (Destacamento de
Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa
Interna), do Rio de Janeiro, foram ao show de Chico Buarque,
porque adoravam o Chico, e alguém fez a maldade de colocar
uma bomba no colo dos dois. Houve um inquérito policial
militar que oficializou [essa versão] no Brasil. Como construir
uma nação democrática se nós suportarmos isso, deixar as
coisas do passado com o argumento de que o “passado
passado é”, com o falso argumento de que estamos
preocupados com o retrovisor?
Eu disse à imprensa e quero repetir agora: o secretário dos
Direitos Humanos de qualquer governo, de qualquer partido,
de qualquer país do mundo, deixará de ser secretário dos
Direitos Humanos se prevalecer a idéia de que esse debate
não deve ser feito, de que o tema da tortura não deve ser
debatido.
Eu passo a palavra ao querido convidado, a quem
convidamos para vir ajudar o Brasil nesse debate. Esse
debate quer trazer luz. É desbloquear, é convidar os colegas
da imprensa, aqui, a nos ajudarem a convencer os próprios
editorialistas de que não se faz jurisprudência pelos editoriais.
São os tribunais que definem jurisprudência. Eles é que
deverão discutir isso em última instância e não como
acontece agora, em que, de novo, o debate é interditado por
alguns interesses privados que têm os seus veículos de
imprensa. Esse debate tem que ser feito conjuntamente.
Garzón é um grande ícone do chamado Direito Internacional
dos Direitos Humanos. Ele vem nos esclarecer. Ele talvez não
discuta o que nós podemos saber, através de uma pesquisa
de 10 ou 15 minutos na internet. A história dele fica muito
fortalecida com o episódio Pinochet, mas Baltasar Garzón é
um magistrado e segue trabalhando temas muito
diversificados. As indagações vão ao ponto de questionar se
o sistema internacional dos Direitos Humanos permite acionar
George Bush pelas torturas em Guantánamo. Se permite
acionar Henri Kissinger pela Operação Condor, Berlusconi.
E para que um evento no Clube Militar, na próxima vez, não o
chame de simpatizante das FARC (Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia), como eu fui chamado, e não
sou. Podia ser, mas não sou simpatizante. O que eu fiz foi
defender os Direitos Humanos de um sacerdote preso e fiz
porque sou secretário dos Direitos Humanos. Sou de uma
família profundamente católica, fui preso político e sei o que é
a vida na cadeia e o direito de qualquer preso ter livros, ter
banho de sol, ter uma metragem [de cela] estabelecida por
padrões internacionais.
E se ocorrer outro evento no Clube Militar, para que não
chamem Baltasar Garzón de simpatizante das Farc, eu
preciso informar que o seu trabalho envolve o combate às
drogas, o combate ao crime financeiro - envolvendo o
presidente do Atlético de Madrid -, os esquadrões da morte
GAL, o enfrentamento do próprio terrorismo basco.
Eu passo a palavra ao nosso querido convidado, reiterando
que a sua visita é a oportunidade de abrir no Brasil um
caminho de mais luz, porque a democracia é o regime da luz.
Os torturadores, assim como os vampiros, querem escuridão,
sombra. A democracia tem que mostrar, tem que revelar. Eu
passo a palavra lembrando as palavras finais de Goethe, que
repetiu esse anseio secular da idéia democrática. Nós
queremos “luz, luz, mais luz”.
Muito obrigado.

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