sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Texto: 1968: a experiência de um movimento nacional, por Nilton Santos

Título: 1968: a experiência de um movimento nacional

Autor: Nilton Bahlis dos Santos – Vice-presidente da UNE em 1967/1968, Organizador do livro “História da UNE”, publicado em 1980 pela Editora Livramento[1].

Cientista da Informação e Pesquisador da FIOCRUZ, especializado em sistemas complexos e na Internet
Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/2353934077824449
Blog Pessoal: http://nilton-santos.spaces.live.com/
Email: nilton-santos@clubedofuturo.org.br

Introdução:

Pouco se sabe sobre a experiência da UNE de 1968. Os depoimentos sobre o ano mais importante do movimento estudantil brasileiro, em geral fazem referências de algumas manifestações regionais que ganharam grande significado, em particular a passeata dos 100.000 no Rio e as manifestações de São Paulo. A importância dessas mobilizações é inegável, visto a concentração de Universidades nestes dois estados e o grande número de estudantes existentes. Mas o que talvez tenha sido mais importante para a sobrevivência quase exclusiva na memória social é o papel político destes estados e a existência neles de uma imprensa de caráter “nacional” que de certa forma lhe deu espaço e divulgação. Ao contrário, são desconhecidas, por outro lado, importantes manifestações regionais como a mobilização massiva dos estudantes secundaristas baianos, em 1967, que de certa forma foi a “escola” de onde a diretoria da UNE e as entidades regionais tiraram as experiências que impulsionaram para a generalização das mobilizações nacionalmente. Também são praticamente desconhecidas as manifestações estudantis de Minas Gerais que foram importantes atores na reorganização da UNE mantendo erguidas as bandeiras da UNE no pós 64 e onde a repressão foi feroz. Do mesmo modo mobilizações importantes ocorreram em Curitiba, Fortaleza, Recife e Rio Grande do Sul, Pará, por exemplo, para citar apenas algumas, que praticamente não aparecem e não são comentadas (ou o são apenas rapidamente) nos livros e publicações que falam da UNE de 1968. Não se fala também da ação organizada da UNE e de sua diretoria, que foi decisiva na extensão das mobilizações a todo país e em sua coordenação. Neste artigo, falamos um pouco sobre isto. Nossa intenção é apontar alguns elementos e pistas para várias iniciativas de pesquisadores que procuram recompor a experiência do movimento estudantil em todas suas cores.



1968: a experiência de um movimento nacional

Pouco se sabe sobre a experiência da UNE de 1968. Os depoimentos sobre o ano mais importante do movimento estudantil brasileiro, em geral fazem referências de algumas manifestações regionais que ganharam grande significado, em particular a passeata dos 100.000 no Rio e as manifestações de São Paulo. A importância dessas mobilizações é inegável, visto a concentração de Universidades nestes dois estados e o grande número de estudantes existentes. Mas o que talvez tenha sido mais importante para a sobrevivência quase exclusiva na memória social é o papel político destes estados e a existência neles de uma imprensa de caráter “nacional” que de certa forma lhe deu espaço e divulgação. Ao contrário, são desconhecidas, por outro lado, importantes manifestações regionais como a mobilização massiva dos estudantes secundaristas baianos, em 1967, que de certa forma foi a “escola” de onde a diretoria da UNE e as entidades regionais tiraram as experiências que impulsionaram para a generalização das mobilizações nacionalmente. Também são praticamente desconhecidas as manifestações estudantis de Minas Gerais que foram importantes atores na reorganização da UNE mantendo erguidas as bandeiras da UNE no pós 64 e onde a repressão foi feroz. Do mesmo modo mobilizações importantes ocorreram em Curitiba, Fortaleza, Recife e Rio Grande do Sul, Pará, por exemplo, para citar apenas algumas, que praticamente não aparecem e não são comentadas (ou o são apenas rapidamente) nos livros e publicações que falam da UNE de 1968. Não se fala também da ação organizada da UNE e de sua diretoria, que foi decisiva na extensão das mobilizações a todo país e em sua coordenação. Neste artigo, falamos um pouco sobre isto.

Diversos fatores estão na origem das manifestações estudantis de 68 no Brasil.

É inegável que elas parte de um fenômeno de abrangência mundial já que foram simultâneas às mobilizações estudantis na França, no México, nos EUA, na Alemanha e no Japão, para citar apenas algumas das mais importantes.

Alguns fatores contribuíram para elas ocorressem. Por um lado elas estão relacionadas a uma certa fatiga, que começava a se sentir, do processo do crescimento econômico do pós-guerra. Este crescimento tinha criado uma realidade econômica nova, mas se mostrava incapaz de promover uma distribuição de renda e resolver problemas sociais, frustrando as expectativas que tinha gerado. Por outro lado, a “revolta estudantil”, como chegou a se chamar, era estimulada pela emergência de novas alternativas de esquerda em escala internacional, estimuladas pela vitória e consolidação da revolução cubana e pelo sucessos da luta revolucionária no Vietnam e na Indochina, além da criação da Organização Latinoamericana de Solidariedade (OLAS) com sua bandeira de “criar um, dois, três Vietnãs...”

Estes fatores encontraram uma massa estudantil em crescente em número (pela ampliação do número de universidades e escolas) e desapontada com a educação em crise e com uma sociedade “moralmente enferma”.

A educação tradicional, em geral, e a universidade arcaica com chamávamos na época, não era capaz de responder nem mesmo as necessidades de formação técnica de mão de obra colocada pelo capitalismo em desenvolvimento, muito menos satisfazer os objetivos humanistas e sociais que se esperava da educação.

Por outro lado o desenvolvimento dos meios de comunicação e a concentração urbana tornavam visíveis a “dupla moral” da sociedade, onde se pregava uma moral que já não era praticada. A sociedade capitalista com sua incitação aos “prazeres” do consumo, a liberdade individual, entrava em contradição com a moral conservadora. Se a contradição não era percebida para os mais velhos habituados a esta dupla moral, para os jovens não tinha nenhum sentido este tipo de hipocrisia. Isto os levava a desconsiderar ambas e constituir sua própria moral, dando espaço praticamente por toda a parte para as minorias mais diversas, para o “direito a experiência”, para bandeiras contra qualquer tipo de opressão (“é proibido proibir”) e por liberdade sexual.

Do ponto de vista particular em nosso país, passávamos um momento onde a pequeno-burguesia em particular, começava a manifestar timidamente seu descontentamento estimulado por um movimento estudantil cuja vanguarda centrava suas ações em manifestações políticas de rua desafiando a Ditadura. Isto abria uma discussão das classes dominantes e inclusive dentro dos militares sobre dois possíveis caminhos: o de buscar a institucionalização da Ditadura abrindo alguns canais democráticos (redução da Censura, maior espaço para o jogo político, etc.) para tentar atrair e neutralizar as camadas médias; ou endurecer...

Foi neste ambiente que se processou a mobilização estudantil de 1968 no Brasil. As condições eram favoráveis as mobilizações. Mas faltava uma variável capaz de favorecer a sincronização das iniciativas estimuladas por este ambiente, e a sua construção como um movimento nacional. E esta variável, apesar de todas divergências que existiam entre as lideranças, foi sua capacidade de estabelecimento de uma unidade de ação na prática. E para isto a UNE e suas estruturas de organização (Executiva Nacional, Congresso, Conselhos, UEEs, DCEs e Grupos de Trabalho) tiveram um papel fundamental.

A Une antes de 68

Uma intensa luta política e ideológica se desenvolveu na vanguarda estudantil no período posterior ao golpe de 1964. Nesta luta política esta vanguarda colocou em cheque a chamada “esquerda reformista” como era então caracterizada a política do PCB e formou o que passou a ser chamada de “esquerda revolucionária”.

No período imediato posterior a 1964 a hegemonia da Ação Popular, com seu “Movimento contra a Ditadura” (MCD), era inconteste. Nesta época, até pela grande repressão, mas principalmente pelo privilégio quase exclusivo dado as ações políticas de rua, a mobilização era praticamente de setores de vanguarda. Na oposição a esta posição se encontrava principalmente o PCB que propunha o privilégio quase exclusivo das lutas específicas estudantis. A Política Operária e o Partido Comunista do Brasil, na luta política contra o “reformismo” do “Partidão”, terminavam por se aliar a AP.

Em 1966/1967 começa uma modificação da correlação de forças com a luta interna dentro do PCB que termina por levar a ruptura dos setores mais importantes de suas bases estudantis, particularmente em São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, influenciados pelo surgimento internacional de uma esquerda revolucionária formada sob o impacto da revolução cubana, do Vietnam e da OLAS, e no país pela Política Operária, PC do B e pela AP. Nesse período as mobilizações são basicamente de vanguarda e co raras exceções não passam de algumas centenas de estudantes os que fazem passeatas, sempre reprimidas, e confrontam a repressão

Em agosto de 1967, se realiza em um convento de padres na cidade de Valinhos, Estado de São Paulo, o 29o Congresso da UNE. A diretoria eleita foi uma composição de esquerda revolucionária, com presidente e 3 diretores da AP, 3 diretores da Política Operária (PO) e 3 das Dissidências Internas Regionais (DIs) do PCB (1 do RJ, 1 de SP e 1 do RS).

No Congresso foi aprovada a “Carta Política da UNE”, dedicada a uma análise da situação internacional, da situação nacional e ao estabelecimento de um programa geral. A modificação que o XXIX Congresso provocou foi o resgate da bandeira das lutas específicas, tentando retirá-las daqueles que procuravam dar-lhes um conteúdo legalista e reformista.

“Era necessário lutar também contra aqueles que diziam que a ‘luta específica é reformista e a luta política é revolucionária’. Era necessário compreender que tanto a luta política quanto a específica poderiam ter uma condução reformista ou revolucionária. E o Congresso procura então representar uma alternativa de condução das lutas específicas, de modo da vinculá-las a uma luta política contra a Ditadura Militar” (História da UNE, 1980: 66-70)”.

Os eleitos para a nova diretoria foram como presidente Luiz Gonzaga Travassos da Rosa (AP-SP), e como vices Nilton Bahlis dos Santos (DI - Rio Grande do Sul) José Roberto Arantes de Almeida (DI - São Paulo), Luís Raul Machado (AP - RJ), Jacques Zajdsznajder (DI - Rio), José Carlos Mata-Machado (AP - Minas Gerais), José Carlos Moreira (AP - Pernambuco), Peri (PO - Bahia), Jari Cardoso (São Paulo) e Edson (Minas Gerais). Como já foi dito, “um presidente e nove vices, um grupo de dez pessoas que passou a utilizar nomes frios, dirigentes de uma entidade sem sede, sem patrimônio, sem arquivos e sem infra-estrutura, a não ser aquela das entidades estaduais” (Sanfelice, José Luís. Movimento Estudantil: a UNE na resistência ao golpe de 64. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1986).
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Ainda em Valinhos, foi feita uma rápida reunião de articulação da Diretoria, e se decidiu que os novos diretores se dividiriam e iriam “levar as decisões do 29º Congresso às bases estudantis de todo o país”. Depois de passar um mês, dando informes sobre as decisões do 29.o Congresso em reuniões mais ou menos massivas nas principais universidades do país, os 10 diretores se encontraram em sua primeira reunião, durante dois dias no Rio de Janeiro, para organizar a diretoria e planejar a sua ação na gestão que se iniciava.

Apesar das divergências de posições políticas e de que o deslocamento dos diretores se dava em grande parte por iniciativa de suas tendências estudantis, a direção da UNE de 1967/1968 conseguiu na maior parte da gestão de maneira coordenada e com decisões tomada por decisão da maioria.

Já nos primeiros meses, quando seus diretores ainda se apresentavam pelo país, esta diretoria viveu sua primeira grande experiência de mobilização de massas. E elas aconteceram na Bahia, onde estudantes secundaristas começaram uma luta contra a Lei Orgânica. Uma intensa agitação começou a se desenvolver praticamente em todas as escolas. Esta mobilização de milhares de estudantes foi ganhando as ruas dos bairros e da cidade, e luta que começara em torno de questões tipicamente estudantis foi ganhando um conteúdo político a partir de sua própria dinâmica no confronto com a política educacional e a repressão da Ditadura.

A preparação das mobilizações de 1968

Apesar das mobilizações secundaristas na Bahia não terem sido convocadas pela UNE, dois de seus diretores (Luis Raul e Peri) terminaram por participar na liderança do movimento. A experiência destas mobilizações foi intensamente discutida na direção da UNE e entre as lideranças estudantis, nas discussões de preparação do Conselho Nacional da entidade que se realizou em fevereiro de 1968, com representantes de UEEs e DCEs.

A Ditadura Militar estava dando sua resposta a crise da Universidade, que não respondia as necessidades de formação de mão de obra para o mercado. Com o Acordo Mec-Usaid, ela propunha a privatização da Universidade. Para criar uma opinião favorável a aceitação de sua política a Ditadura corta verbas do ensino, aprofundando a crise e praticamente levando o sistema educacional à falência, começa a cobrar Anuidade dos estudantes (inicialmente de caráter simbólico para criar o hábito) e restringe as vagas nos vestibulares criando a figura dos excedentes (que passavam no vestibular mais não tinham vaga).

A UNE também oferece sua resposta. A experiência da Bahia mostrava na prática que se manifestando, de forma independente, na luta por suas reivindicações, os estudantes podiam assumir uma dinâmica de luta contra a política educacional do governo que se desdobrava em uma luta política contra a Ditadura e a repressão.

O Conselho da UNE de início de 68 define assim, como centro da mobilização, a luta contra a política educacional do Governo e contra o Acordo Mec-Usaid, Suas resoluções apontava o caminho das luta por reivindicações específicas centradas em 3 bandeiras: Mais Vagas, Mais Verbas para a Universidade, e contra as Anuidades. Por outro lado define a necessidade de uma estruturação e massificação do movimento estudantil em torno de suas entidades e em Grupos de Trabalhos (GTs) como organizações de base para a mobilização dentro das Universidades e nas lutas de rua, permitindo mantê-las apesar da repressão com processos de dispersão e reagrupamento.

Esta estratégia, nos meses seguintes, leva a um processo de sincronização do movimento, favorecendo que as entidades estudantis ganhem um caráter massivo, e que se crie um ambiente de intensa agitação nas universidades. A intensificação das mobilizações, em graus e ritmos diversos, se desenvolve então em todo o país, com picos ora numa ou em outra região. As mobilizações estudantis que explodiam por toda a parte no mundo, nesta mesma época, vêm ainda estimular o seu desenvolvimento.

Mas este crescimento começa a colocar novos problemas. A radicalização política do movimento estudantil, atuando de forma independente e atraindo camadas da pequena burguesia, começa a chegar em um impasse, já que ele não tinha capacidade de derrotar a Ditadura. O movimento estudantil atraindo professores e funcionários, reivindicando a autonomia universitária e criando comissões paritárias de estudantes, professores e funcionários, disputa o poder dentro da Universidade. Por outro lado o crescimento das mobilizações em muitos lugares consegue conquistar as ruas e neutralizar a repressão, que fica acompanhando a distância e apenas intervindo às vezes, quando a manifestação já estava se dispersando.

Mas o movimento estudantil não tem condições de impor sua vontade. Nestas condições reaparecem com força as divergências entre as diferentes alternativas das tendências: alguns apontam o caminho da radicalização das lutas de rua contra a Ditadura, com a expectativa de acumular forças para derrubá-la; outros apontam o caminho da violência armada de vanguarda ou de massas; outros ainda propõem a radicalização da luta disputando o poder dentro da Universidade e buscando contribuir para uma embrionária reorganização das lutas operárias que começavam a se manifestar nas Greves de Osasco e Contagem e na organização das oposições sindicais. Do mesmo modo, do outro lado, aparecem divergências no interior do bloco de poder: liberalizar ou endurecer.

Enquanto ainda se desenvolviam manifestações em diversas regiões do país, a diretoria da Une em meados do ano de 68, se reúne para organizar o XXX.o Congresso e coloca nele as esperanças de resposta para a continuidade do movimento e de reorganização de sua Unidade.

O Congresso da Une

O XXXo Congresso da Une foi concebido em quatro fases:

1) Debate nas escolas e eleição dos Delegados diretamente na Base;
2) Congressos Regionais de amadurecimento das discussões;
3) Congresso Nacional fechado realizado em São Paulo;
4) Apresentação das Resoluções às Bases.

A estrutura do congresso demonstra já uma mudança em relação aos congressos anteriores realizados na clandestinidade. O que se pretende agora é consolidar a UNE enquanto uma representação estudantil de caráter massivo com a base estudantil participando diretamente nasdiscussões das teses apresentadas ao congresso e nas decisões.

A orientação da diretoria da UNE era de, onde fosse possível, organizar a discussão das propostas políticas do congresso em assembléias abertas e massivas nas Universidade, e escolher os delegados com representação proporcional a participação e posicionamentos. Onde isto não era possível se deveria no mínimo se eleger os delegados em reuniões fechadas e nos GTs, organização da vanguarda estudantil nas escolas.

Esta concepção aprovada unanimemente pela diretoria refletia a compreensão que a UNE entrava em uma nova fase onde ela não era mais o “prêmio” de uma disputa e negociações entre tendências de caráter político-partidário, mas uma entidade realmente de massa apesar colocada na ilegalidade pela Ditadura.

Julgávamos que com as mobilizações massivas de 68 criáramos as condições para dar este passo e que ainda que realizássemos a fase de reunião nacional fechada, poderíamos garantir a representatividade dos estudantes nas fases anteriores. O que não compreendemos naquele momento e só percebemos com a dinâmica do congresso, é que a UNE já não cabia mais em um Congresso fechado. Que o número de delegados, conhecidos e eleitos abertamente, com a representatividade que ganharia o congresso cresceria tanto que não seria mais possível manter qualquer caráter conspirativo.

Os diretores tinham ido para as bases para organizar o congresso junto com as entidades locais e de base; as assembléias e debates se multiplicavam e de repente o número de delegados já passava de 800. Algumas discussões ainda são feitas entre diretores sobre a possibilidade de fazermos a fase do congresso nacional aberta, no CRUSP. Mas a engrenagem já estava em marcha e dificilmente conseguiríamos consenso para uma mudança de rumo. Se tentássemos poderíamos quebrar a entidade...

... e nos reunimos no Congresso com a esperança de que a Ditadura não encontrasse um consenso para reprimi-lo e prender um número tão grande de lideranças estudantis.

A queda do congresso e as repercussões da prisão de quase 1000 lideranças estudantis mostravam o impasse da co-relação de forças apresentava. As manifestações dos delegados dentro da prisão (que fizeram greve de fome para quebrar a incomunicabilidade), dos estudantes que explodiram em manifestações por todos o país, e a mobilização de outros setores populares ajudaram a apressar a libertação de quase todos os presos de Ibiúna. A ditadura manteve presos apenas menos de uma centena de estudantes, àqueles mais evidentes, lideranças regionais como Vladimir Palmeira, José Dirceu, Jean Marc entre outros e os diretores nacionais da entidade.

Escaparam, graças a fuga e uso de identidades falsas apenas três diretores da UNE: o Luis Raul, o Arantes e eu. Por acaso de três posições diferentes e na reunião de diretoria, foram apresentadas três propostas de como eleger a nova diretoria. O Luis Raul propunha um novo congresso clandestino com a mesma configuração de antigamente; o Arantes propunha eleger a diretoria em congressos regionais e somar os votos nacionalmente; e eu, propunha uma “fuite en avant” (fuga para a frente), um processo de eleição direta nas escolas o que colocaria a defesa da UNE diretamente nas mãos da base estudantil e obrigaria a repressão a se dispersar.

As propostas decorriam de posições políticas e avaliações diferentes do quadro político que se apresentava na vida do país. A corrente do Arantes começava a ver a possibilidade de responder ao endurecimento do regime militar pela luta armada; a minha tendência julgava ser possível oferecer uma resposta pelo aprofundamento da organização e representatividade do movimento
[2], para manter as mobilizações mesmo com um endurecimento do regime, e acumulando forças para desdobramentos futuros; por último, para a corrente do Luis Raul, o movimento estudantil devia continuar ido as ruas e continuar golpeando a Ditadura, apoiando-se na pequena burguesia.

O Conselho da UNE, chamado a tomar a decisão sobre isto, deliberou pela posição de Arantes. E quase na clandestinidade, sem representatividade e conhecimento dos estudantes, foi eleita uma nova diretoria, praticamente desmantelada e dizimada pela repressão em pouco tempo.

Aqueles estudantes que se mobilizaram por toda à parte levantando suas bandeiras específicas, disputando o poder no interior da Universidade, indo as ruas por suas lutas específicas e garantindo sua mobilização apesar da repressão da Ditadura, não conseguiam garantir a sobrevivência orgânica de suas entidades. Mas aquelas mobilizações permaneceram na história do país e na memória de sua vanguarda até serem retomadas quase uma década depois. Significaram também a formação, a educação política e a experiência de organização de uma geração de brasileiros que continuaram lutando de várias formas na clandestinidade e que depois ofereceram sua experiência para a reorganização das lutas e a democracia no país.


[1] Quando Otávio Luiz Machado me convidou a escrever este artigo ele me perguntou sobre o livro História da UNE. Comentei que não via importância neste livro, apesar de ter conseguido depoimentos de vários dirigentes da década de 60. Apesar dele ter uma tiragem de 3000 exemplares, pensava que pouco impacto ele tivera já que não via referências ao livro nas notícias e artigos sobre 68 que eu tomava conhecimento. Posteriormente a sua pergunta, fiz uma pesquisa na Internet e descobri que vários pesquisadores e livros sobre a UNE fazem referência ao livro, já que ele é um dos poucos documentos que traziam depoimentos de dirigentes de várias gestões da UNE em uma época que eles não davam entrevistas em jornais e televisão. Mudei então de opinião: acho que ele cumpriu seu papel.
O livro sobre a UNE foi uma das formas de colaboração que estabeleci com as diretorias que reorganizaram a UNE nos anos 1979/1982 a partir de uma solicitação, aos ex- Diretores da entidade que estavam no exílio, feita por Rui César em um Congresso da Anistia realizado em Roma no início de 1978. Ele solicitou que voltássemos para ajudar na reorganização da entidade e eu retornei às vésperas da eleição da Diretoria da UNE, no final de 1979.
Fiz então inúmeras palestras e percorri, com lideranças da época, salas de aula falando da História do Movimento Estudantil e da UNE. Estas atividades me levaram a organização do livro em colaboração com a entidade.
Na época participei também da ocupação simbólica do prédio da UNE como resposta às ameaças do Governo de reprimir as eleições da diretoria da entidade. Era um pouco a mistura de duas épocas. Após as eleições participei da primeira reunião da nova diretoria e propus que ocupassem definitivamente o prédio da entidade. Os diretores me ouviram e ficaram de discutir o assunto. Minha idéia era que a diretoria e um grupo de estudantes ocupassem e se entrincheirassem no prédio chamando os estudantes para se incorporar e garantir a ocupação.
Esperava que isto acontecesse a qualquer momento. Passaram-se, no entanto alguns meses e não tive retorno da proposta ou percebi qualquer movimentação com este objetivo até o momento quando os jornais estamparam notícias que os estudantes reunidos em um conselho da UNE na Bahia tinham decidido retomar o prédio da entidade. Alguns dias depois a polícia ocupou o prédio e o mais rapidamente possível começou a demolição.
[2] Minha tendência se chamava Universidade Crítica e o fato de ser sua principal levava o pessoal de outras tendências a brincar me chamando de “Reitor da Universidade Crítica”.
A Universidade Crítica se constituiu como tendência formal no bojo de alguns movimentos estudantis de 1968 no Brasil que propunham a organização de comissões paritárias de estudantes, funcionários e Professores para disputar poder no interior da Universidade e desenvolver uma crítica ao conteúdo de ensino. Sofríamos, também, uma certa influência dos movimentos estudantis de maio na França que contestavam o próprio sistema educacional e da Universidade Crítica de Berlim que colocavam sobre crítica, paradigmas da ciência e da sociedade capitalista industrial.

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