sexta-feira, 21 de setembro de 2007

REMEMOREX - Uma Rebeldia Necessária, por Ary Costa Pinto e Marianna Francisca Martins Monteiro

REMEMOREX - Uma Rebeldia Necessária

Ary Costa Pinto: é Jornalista. Foi pesquisador do Divisão de Iconografia e Museus do Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura Municipal de São Paulo, também integrou a equipe do Centro Ecumênico de Documentação e Informação atuando no Programa História do Movimento Operário no ABC. Desenvolveu pesquisa sobre edição de livros didáticos para cursos de requalificação profissional na equipe do Programa Integrar coordenado pela professora Maria Nilde Mascelani na PUC.. Foi um dos editores de Apesar de Tudo-UNE REVISTA, quando cursava História na FFLCH-USP.

Marianna Francisca Martins Monteiro: é professora do Instituto de Artes da Unesp, Autora de Noverre: Cartas sobre a Dança- Natureza e Artifício no Balé de Ação, publicado pela Edusp, em 1998. Dedica-se à pesquisa na área de dança, teatro e antropologia da performance. Foi uma das editoras de Memorex: Apesar de Tudo- UNE REVISTA, quando cursava Ciências Sociais na USP.


Foi com enorme satisfação que atendemos ao convite do professor Otávio Luiz Machado, pesquisador da história do movimento estudantil brasileiro, para reeditar, por meio eletrônico, o trabalho Elementos para uma História da UNE, publicado pela primeira vez em 1978, através da Edições Guaraná e do DCE- Livre Alexandre Vanuchi Leme, da Universidade de São Paulo, trabalho esse que sucessivas gerações de estudantes e pesquisadores denominaram Memorex[1].
Decorridos 30 anos daquela experiência, vimos neste convite a oportunidade de rebater algumas imprecisões que observamos em resenhas antigas e recentes sobre esse trabalho. Entre elas, há algumas de viés nitidamente ideológico, recheadas do pior defeito da história social: o anacronismo. Outras, foram elaboradas por mentes indolentes que sequer leram o texto em questão ou o fizeram com pouca atenção e cujo propósito não parece ser esclarecer, mas sim ocultar ou escamotear fatos.
A rigor, desde que foi publicado, durante a ditadura militar que infelicitava a nação, o trabalho gerou impaciência em correntes antidemocráticas tendo sido, inclusive, objeto de inquérito militar, instaurado em 20 de setembro de 1978 pela Aeronáutica, que determinou pedido de busca dos seus editores (ver fac-símile).
A primeira estultice publicada a respeito apareceu no livro O que é movimento estudantil da coleção Primeiros Passos, da Editora Brasiliense, onde o autor, Antonio Mendes Jr, o saudoso “Paxá”, ao fazer indicações bibliográficas, considera o Memorex leitura obrigatória, mas faz a injusta ressalva de que a publicação traz muitos trechos copiados da obra O Poder Jovem de José Arthur Poerner, durante muitos anos a mais respeitada sobre o tema. Contudo, nunca apontou qual trecho foi copiado. A bem da verdade, o grupo que elaborou o trabalho pouco escreveu, pois é uma coletânea de documentos, em sua maior parte da própria UNE, que ali aparecem ordenados cronologicamente, constituindo-se na fase de documentação da pesquisa, sugestivamente intitulada por isso de Elementos para uma História da UNE.
Inspirados numa metodologia historiográfica, a maioria senão a totalidade do grupo formado por adolescentes e recém-adolescentes, realizou um mergulho na metodologia da pesquisa a partir de documentos. Pela primeira vez, esses universitários e secundaristas freqüentaram a Biblioteca Mário de Andrade de São Paulo e, depois, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e compreenderam na prática a diferença entre fontes primárias e fontes secundárias numa pesquisa. Pela primeira vez, o estudo da história foi vivenciado por aqueles estudantes como um processo de descoberta e elaboração de fontes documentais e não apenas digestão de trabalhos interpretativos ou de pesquisa realizados por outros. O lema que fizemos questão de estampar nas páginas da publicação - aprender é produzir - retratava a nossa opção metodológica, nossa forma de fazer, e apontava para um projeto pedagógico, para uma “paidéia”, próxima de Paulo Freire.
Esse é o aspecto original da realização do Apesar de Tudo- UNE REVISTA, Elementos para uma História da UNE, o de ter se constituído como processo educacional, como uma experiência pilôto realizada por um grupo de estudantes, em 1978, passível de ser multiplicada em numerosos outros âmbitos. Por traz de uma pedagogia, como se sabe, há sempre uma visão de mundo, uma política, por isso o Memorex também foi militância estudantil, definição de posição ideológica e colaboração com a reconstrução dos órgãos nacionais e locais de representação estudantil.
Ligações familiares, escolares, antigos relacionamentos que se reencontraram na USP, todo tipo de circunstância corrobora para o encontro entre essas pessoas numa convivência cheia de inquietações. Longe de terem se conhecido no movimento estudantil, os componentes desse grupo se encontravam num apartamento em São Paulo, onde moravam três dos editores de Memorex. Tinham, eventualmente, alguma experiência no movimento secundarista e no movimento estudantil universitário, mas jamais haviam militado juntos. A equipe de Memorex revelava maiores afinidades com as fileiras da contra-cultura, do Rock and Roll que, às vezes unia mais que o movimento estudantil. Havia também um claro posicionamento desses jovens contra a ditadura militar. A consciência política do grupo era bem elaborada e definia-se com clareza pela luta contra a ditadura, percebendo o movimento estudantil como uma vanguarda cultural, artística, filosófica e científica. Atribuía, além disso, ao conhecimento da historia a potencialidade de lançar as bases de um entendimento político a partir do qual as forcas sociais poderiam construir sólidas e representativas organizações.
Pensávamos nesse âmbito alargado dos grandes rumos políticos, mas constituíamos apenas um grupo de amigos, conhecidos, cidadãos pensantes, reunidos num apartamento. Se analisarmos as origens familiares desse grupo vamos encontrar uma presença significativa de filhos de ex-militantes comunistas. Não era por acaso! A originalidade e especificidade de Memorex se dá nessa tensão entre a militância política tradicional e a militância contra-cultural. Dentro da contra-cultura, convém ressaltar que os elementos mais velhos do grupo tinham um envolvimento significativo com a imprensa alternativa: Bondinho, EX, Revista Versus, Jornal Nós Mulheres; com a militância feminista e com a ala mais contra-cultural do Teatro Oficina. Entre os secundaristas do grupo, Arnaldo editava uma publicação de poesias e textos, A Mais, que circulava no Colégio Equipe. Essas foram referências importantes na definição e escolha da linguagem do Memorex.
A Edições Guaraná constituía o que hoje chamamos de uma equipe multidisciplinar voltada para o resgate da tradição editorial e gráfica do movimento estudantil. Era a tradição iniciada pelo artista gráfico Rogério Duarte, por Ferreira Gullar e Arnaldo Jabor na revista Movimento da UNE, no início dos anos 60, que nos interessava resgatar. Em grande parte porque avaliávamos como muito tímida a imprensa estudantil que se praticava e procurávamos romper com essa timidez, como pode ser observado nos “slogans” ou palavras de ordem que adotamos e que podem ser vistas na publicação: “Edições Guaraná, contra o mofo e a timidez”; “Experimentar não esclerosar”, entre outras.
A não apreensão do caráter experimental da publicação Apesar de Tudo- UNE REVISTA, leva alguns pesquisadores a escrever sandices, como foi o caso de Angélica Muller, em comunicação científica apresentada no XXIV Simpósio Nacional de História ANPUH[2], que contém as reflexões de um capítulo de sua tese integralmente dedicado à análise de Memorex. Nessa comunicação, a historiadora afirma que grande parte dos textos do Memorex não trazem referências de origem, ou autoria, reclama da falta de informação sobre os editores de Memorex.
A autora parece estar bem preocupada com os usos políticos da história e até mesmo surpresa com o impulso dos conhecimentos teóricos, mas pouco se pergunta a respeito do “mistério” do expediente de Memorex e parece não se dar conta das inúmeras referências que acompanham a maior parte da documentação publicada.
Um pesquisador atento não deixaria de visualizar o expediente da publicação, na página referente aos anos 61/62, gestão Aldo Arantes, onde se lê: “ EXPEDIENTE: Apesar de Tudo- UNE REVISTA, uma realização conjunta de Edições Guaraná e DCE –Livre Alexandre Vanuchi Leme, listando em seguida, por ordem alfabética, seus treze editores sem estabelecer qualquer hierarquia entre eles. Revela, assim, que assumíamos a autoria da publicação, mas tínhamos prudência frente aos rigores com que o regime militar tratava os estudantes, jornalistas, artistas e intelectuais.
Esse mesmo pesquisador, se estivesse interessado em esclarecer quem era o grupo que assinava o trabalho, por meio da internet, logo teria em mãos o telefone de alguém e, rapidamente, chegaria aos sobreviventes, que poderiam explicar muita coisa e talvez responder algumas de suas perguntas. Ficaria sabendo que o Arnaldo que aparece sem sobrenome é o Antunes, nosso querido poeta. Talvez o pesquisador também se comprazesse em saber que o artista que tanto admiramos, Nuno Ramos, também se matava no “ past up “, além de digitar e revisar textos.
O interessante é que nenhum deles se tornou político ou mesmo aprofundou sua relação com o movimento estudantil. O caráter progressista e político da produção artística e intelectual de muitos dos elementos do grupo em fase posterior só confirma, no entanto, o ponto inicial do grupo que nos anos 70 se reuniu em torno de uma militância fora dos parâmetros da esquerda tradicional, interessado na renovação das linguagens artísticas, sem jamais abandonar o viés político. Esse viés político, ao ser alimentado, expressava a recusa em separar a grande política, do partido, do Estado, dos órgãos nacionais, da pequena política contra–cultural do quarteirão, dos comitês, dos cine-clubes, dos teatros de periferia, da imprensa nanica, da literatura de mimeógrafo.
Depois de concebido e diagramado Memorex, passamos a buscar apoio para sua impressão. Acreditávamos, que o nosso caráter de grupo independente e o sentido de coletânea de documentos que conferimos humildemente a nossa obra, haveria de facilitar a obtenção desse apoio e de algum recurso financeiro. Como a publicação estava pronta circulávamos a fotocópia de um “boneco” já paginado e tentávamos convencer a diretoria do DCE, dos centros acadêmicos a apoiar a edição de Memorex.
Definitivamente, o Memorex não foi gestado no interior do DCE- Alexandre Vanuchi Leme. Na capa da publicação, credita-se com clareza o DCE e a Edições Guaraná, no meio da publicação aparece o crédito horizontal da Edição Guaraná. A análise desses dois dados deveria no mínimo suscitar algumas questões: Quem é o sujeito da enunciação? O que seria Edições Guaraná. Por que haveria o DCE de trabalhar com a Edições Guaraná?
Aspecto importante em qualquer análise de discurso é a definição do sujeito da enunciação. E nesse item Angélica Müller cochila. Para ela esse sujeito é o DCE da USP, ignora solenemente a Edições Guaraná, os autores do trabalho.Talvez, seja hoje difícil acreditar que o Brasil já tenha sido governado por forças que não hesitavam em recorrer à truculência para impedir que a juventude brasileira pudesse investigar, descrever e analisar seu passado. E, no entanto, essas forças existem e hoje se apresentam com novos simulacros e astúcias, mas com o mesmo objetivo: impedir que a nossa juventude tenha acesso ao seu passado e possa escolher livremente o que lembrar e preservar.
Nos anos 70, na Universidade São Paulo, ao lado das intensas atividades políticas, existiam muitas articulações com propósitos artísticos e culturais como os grupos de teatro da Politécnica, da Faculdade de História, da Ciências Sociais, como o jornal mural A Ponte, a revista Balão e ainda grupos que se reuniam por interesse em fotografia, música, cinema. Nem sempre seus membros estavam diretamente envolvidos com as atividades políticas. Tal era o caso da Edições Guaraná que reuniu estudantes de História, das Comunicações, das Ciências Sociais, além de secundaristas e vestibulandos.
Cabe ainda reafirmar que não tínhamos o perfil do estudante militante. Éramos jovens democratas interessados no fim do regime militar, cuja intolerância nos impedia de exercer os mais banais direitos civis. É importante lembrar que naquele momento os movimentos culturais juvenis mostravam grande vitalidade com um grande número de iniciativas, como as da poesia de mimeógrafo, entre outras do chamado movimento undergroud. É no contexto desta rebeldia juvenil, coletiva e universitária que a Edições Guaraná precisa ser entendida. Nesse sentido, o fato de eventualmente algum de seus membros ter ou não copiado trechos de O Poder Jovem não tem qualquer relevância. O mais importante foi que conseguimos reunir um grupo de jovens de diferentes faixas etárias para analisar um tema espinhoso e realizar um produto que um vasto grupo social estava desejando.
Com “grande perspicácia”, a mesma historiadora observa que as páginas da publicação não são numeradas. De fato, não há numeração de página no Memorex. Tivemos, na ocasião, um entendimento que os anos da cronologia seriam suficiente para estabelecer seqüência e localização, até porque, se não nos falha a memória, não havia mais números em nosso estoque de “letra set”, e muito menos fôlego financeiro para adquirí-las. De fato, a ignorância a respeito das condições e o contexto em que foi produzido o Memorex, acarreta uma serie de avaliações equivocadas.
Angélica Muller, em sua comunicação, também afirma que a publicação é de 1979 quando é, de fato, de 1978. Essa imprecisão na datação faz grande diferença na apreensão da conjuntura em que o trabalho veio à luz. Em 1978, a ditadura ainda agia com muita truculência, sem falar que a Edições Guaraná se adiantara em relação aos dirigentes estudantis na iniciativa de elaborar uma historia da UNE. Para completar, Müller reivindica para si o estabelecimento da data da criação da UNE em 1938, parecendo não perceber que o Memorex estampa em letras garrafais: “1938 – O Segundo Congresso. A separação da CEB dos estudantes ou a formação da verdadeira UNE.”
A elaboração da revista Apesar de Tudo – UNE REVISTA (Memorex) acolhia e incentivava a colaboração de todos e isto trouxe como conseqüência uma variação de aprofundamento em cada período pesquisado. Entretanto, é preciso registrar que a maior dificuldade estava em encontrar a documentação e, sobretudo, mexer com um tema tabu, já que não é possível ignorar que a UNE colocava-se, desde as primeiras horas, como uma das principais adversárias do regime. Nosso desafio era olhar para o passado e construir formas participativas de resgate e interpretação. Só nos interessava produzir pesquisa que refletisse aquele momento de interesse coletivo pela UNE.
Já havíamos dado grandes passos na obtenção de documentos e depoimentos quando foi criada a Comissão Pró UNE, que entre outras resoluções decidiu que era necessário elaborar um histórico da entidade que se pretendia reorganizar. Nós da Edições Guaraná acreditávamos poder contribuir para a UNE e para o movimento estudantil divulgando uma sistemática de trabalho, uma metodologia que em si propiciava a mobilização, a conscientização e a organização dos estudantes: propúnhamos que o Memorex se tornasse brinde de recepção de calouros, acompanhado de eventos, discussões palestras... tratava-se de criar com a publicação um instrumento de mobilização.
O que se concretizou foi uma fecunda parceria entre a Edições Guaraná e o DCE que fez a compra antecipada de parte da tiragem, viabilizando o custeio da impressão e dos fotolitos da publicação. Até então havíamos trabalhado por conta própria, financiando os gastos com a pesquisa, a composição de textos, o material da arte final etc. A diretoria do DCE da USP que tinha conhecimento de que estávamos trabalhando nessa pesquisa procurou-nos com o propósito de fazermos essa parceria. Quando apresentamos as artes finais eles aprovaram e prontamente foram enviadas para a gráfica. Em poucos dias a revista entrou em circulação e em menos de dois meses sua tiragem de 10 000 exemplares havia se esgotado. Os estudantes exibiam grande carinho e orgulho por aquela realização. Entretanto, os órgãos de segurança entraram em ação para impedir sua circulação. Felizmente, a rapidez de sua distribuição frustrou qualquer efeito neste sentido.
O período compreendido entre o Congresso de Ibiúna e 1978 não foi objeto de nossa pesquisa, em parte porque não nos encontrávamos muito afastados dele. E também porque a ação dos dirigentes da UNE na dura condição de clandestinidade impedia que se produzissem muitos documentos oficiais escritos e no momento em que realizamos nosso trabalho seria quase impossível tentar resgatá-los.
A contribuição que buscávamos dar era: 1) revelar a institucionalidade da UNE que o regime militar destruiu e isto significava apontar para a existência de um legado documental da entidade; 2) destacar a significativa contribuição cultural que emergiu no interior da entidade ao longo de sua história; 3) mostrar a UNE como ambiente de reflexão dos problemas nacionais; 4) mostrar a entidade como geradora de mobilizações em defesa de projetos de interesse nacional; 5) mostrar a entidade como propulsora de renovações estéticas.
Hoje, depois de constatar que passados tantos anos os estudantes brasileiros continuam a demonstrar grande carinho pelo Memorex, Apesar de Tudo- UNE REVISTA, não temos dúvida em afirmar, lembrando o grande poeta Paulo Leminski: ...“Valeu ter encharcado a cara de suor. Valeu!”

[1] A publicação tem um título múltiplo: Apesar de Tudo – UNE REVISTA, Elementos para uma Historia da UNE e, finalmente, Memorex, nome do remédio cuja embalagem compõe a ilustração da capa.
[2] Angélica Müller. “Os Usos Políticos do Passado: A Construção da História da União Nacional dos Estudantes na sua Reconstrução (1976-1979)” In Anais do XXIV Simpósio Nacional de História- 2007, Associação Nacional de História – ANPUH. http://snh2007.anpuh.org/resources/content/anais/Ang%E9lica%20M%FCller.pdf. Acessado em 12/09/2007.

Nenhum comentário: