Chico e as moças de ontem e de hoje
Por Fernando Peregrino*
*Secretário de Estado.
Fonte: arquivo. Publicado no Jornal do Brasil
Chico Buarque sempre foi um crítico agudo da sociedade de seu tempo. Lembro-me de sua luta contra a censura que tentava impedi-lo de cantar para os estudantes da UFF, em 1973, no auge da ditadura militar. Para combinar essa apresentação, certo dia, junto com dois colegas, fui ao seu encontro no Canecão - onde ele fazia um show com o MPB4. Na porta lateral, esperei-o para pedir que fizesse um show em Niterói para arrecadar fundos para o movimento estudantil. Era uma época de prisões e torturas. Precisávamos de recursos para custear advogados e material para nossa campanha contra a repressão política. O compositor não hesitou e marcou o dia. O ''cachê'' seria um whisky no camarim... Não deu outra, a censura apertou-nos na véspera - sob pena de fechar a faculdade - e proibiu que ''Apesar de você'' estivesse entre as músicas que seriam cantadas.
Chico entrou no palco - numa quadra de esportes adaptada como auditório - tendo na primeira fila meia dúzia de censores prontos para encerrar o show caso ele desobedecesse a ordem. Ele não se deu por vencido. Com seu violão deu os primeiros acordes da canção proibida e fez sinal para a platéia começar. Arrepios à parte, todos, como um coral ensaiado, cantaram ''Apesar de você'' acompanhados pelo sonoro silêncio do compositor com um sorriso quase infantil nos lábios. Uma corajosa e eloqüente denúncia em meio a um dos períodos mais duros da repressão.
''Hoje você é quem manda, falou tá falado, não tem discussão/ A minha gente hoje anda falando de lado e olhando pro chão/ ...Você que inventou o pecado esqueceu-se de inventar o perdão!./ Apesar de você amanha há de ser outro dia!''.
Mas por que estou lembrando esse episódio? Em recente entrevista à Folha de São Paulo, Chico não denuncia governos, mas a própria sociedade: ''Querem exterminar os pobres do Rio!'' Ele não está se referindo a aparatos. Ele se refere a algo tão sutil quanto perigoso. Ele repele os preconceitos da classe média, dos nossos moços e moças contra os pobres da favela, os pobres das ruas, os que não têm carro ou que têm carros velhos, os que vestem roupas sem grife, e por aí vai. Para mostrar como esse preconceito está se disseminando, Chico lançou a pérola: ''No meu tempo, as moças bonitas eram de esquerda, hoje são de direita''.
Não pensem que aquelas mais de duas mil pessoas que cantavam desafiando a censura na frente dos censores, sob a regência do próprio Chico, eram de militantes de esquerda, como nós. Eram simplesmente moços e moças de 20 anos que - através da música - se posicionavam ao lado da luta pela liberdade... Espontaneamente. Eram de esquerda, como disse o cantor na entrevista!
E como pensam os chamados moços e moças hoje em dia? Quando alguns deles - integrantes dessa classe média - chamam de políticos populistas os governantes que fazem políticas públicas emergenciais - como os restaurantes populares, o cheque cidadão, a farmácia popular, escola de qualidade para pobres - nada mais fazem que exalar também seu preconceito contra os pobres. Não é assim que se referem, por exemplo, ao ex-governador Leonel Brizola, ao ex-governador Garotinho e à atual governadora Rosinha Garotinho?
Não se pode dizer que o Chico apóie essa ou aquela política pública. Nem tampouco esse ou aquele governante. Mas é a mais pura verdade que os pobres já estão sendo exterminados pela incúria e pelo preconceito de segmentos da ''elite'' brasileira. Segmentos que tentam ceifar qualquer iniciativa de política pública para salvar ou redimir essa ampla maioria do povo brasileiro.
Preconceito é uma arma perigosa e tão letal quanto às armas convencionais, porque é ele que aciona o gatilho dessas últimas. Infelizmente, esse preconceito vem encontrando eco nas moças e moços, de ontem e de hoje. Mas há um poderoso antídoto: a arte e a cultura brasileira podem sensibilizar a juventude contra o preconceito que ameaça de degradação a nossa própria sociedade. E nesse particular, Chico e sua música são exemplares. Falta também parte da mídia deixar os preconceitos de lado. E quem sabe, ajudar a formação de uma juventude livre deles.
*Fernando Peregrino é secretário chefe de Gabinete da governadora do Rio de Janeiro
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