FONTE: http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/dezembro2008/ju418_pag04.php
Campinas, 1º a 14 de dezembro de 2008 – ANO XXIII – Nº 418
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A UNE "teórica" e os "anos de chumbo"
A UNE "teórica" e os "anos de chumbo"
Livro resgata estudos que orientaram práticas da entidade estudantil na década de 60
CARMO GALLO NETTO
Terminados a graduação em Filosofia e o mestrado em Filosofia da Educação, ambos na PUC-São Paulo, o professor José Luís Sanfelice iniciou no começo dos anos 80, na mesma universidade, o doutorado em educação. Tendo vivenciado grande parte dos acontecimentos dos “anos de chumbo”, que permearam as décadas de 60 e 70, sentia-se então em condições de analisar uma fase do movimento estudantil liderado pela União Nacional dos Estudantes (UNE). Um certo distanciamento e a distensão política colaboraram.
“O doutorado veio a calhar na definição de um projeto de pesquisa que me possibilitaria estudar o movimento estudantil principalmente nos anos 60. E o fiz a partir da visão que a UNE tinha do próprio movimento, revelada através dos estudos que produziu e de ações que desencadeou”, afirma o docente.
Na ocasião, a tese foi publicada em três edições sucessivas da revista Reflexão, editada pela PUC-Campinas, o que atraiu a atenção das então associadas Editora Cortes/Autores Associados e levou à publicação do livro Movimento Estudantil – a UNE na resistência ao golpe de 1964, em 1986. Esgotada, a obra esteve fora do mercado durante mais de dez anos. Atendendo a insistentes solicitações e às injunções de um novo momento que se delineia na juventude brasileira, Sanfelice – que pertence ao Grupo de Estudos e Pesquisas, Historia, Sociedade e Educação no Brasil, da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, onde é professor – resolveu relançar o livro, atualizando o prefácio, acrescentando um posfácio e uma bibliografia recomendada, que pretende contribuir para o entendimento dos movimentos estudantis e as propostas educacionais da época.
Sanfelice lembra também de acontecimento insólito, que levou o livro à primeira página de um dos principais jornais do País e definitivamente apressou a reedição. No resgate da publicação, o autor revela algumas surpresas, entre as quais o fato de um grupo de alunas irromper na sua sala durante a entrevista na ânsia de adquirir a obra.
Jornal da Unicamp O que o levou no início dos anos 80 a adotar o tema na sua tese de doutorado?José Luís Sanfelice – Havia várias razões subjetivas que me despertaram o interesse pelo estudo do movimento estudantil. Mesmo não tendo pertencido aos quadros dirigentes, participei ativamente de manifestações, passeatas, protestos e de muita discussão em que os estudantes estavam envolvidos naquele período. À medida que me distanciava dos fatos, adquiria condições de maior entendimento e compreensão do que tinha ocorrido com a nossa geração de estudantes e professores universitários, e com os movimentos da época. Fui levado ao trabalho porque, então, com um certo distanciamento, queria entender o processo. Além disso, começava-se a respirar certos ares de liberdade.
JU – Por que o recorte centrado nas ações da UNE?Sanfelice – Queria inicialmente entender a visão que a UNE tinha do próprio movimento. Hoje isto está mais claro para mim, pois acabei abrindo um espaço, através da pesquisa, para dar voz à UNE, uma voz reprimida, perseguida, extremamente desarticulada pela repressão.
JU – Como isso foi feito?Sanfelice – Juntei documentos, pesquisei sobre os congressos da UNE mesmo na fase mais clandestina para saber o que a entidade pensava daquele processo, da universidade, dos estudantes, das suas alianças com movimentos sociais mais progressistas, em especial do movimento operário, que era uma preocupação permanente de seus quadros dirigentes. Para isso usei essencialmente os documentos produzidos pela própria UNE e deparei-me com idéias muito estruturadas. Cheguei a me surpreender e até hoje me surpreendo porque, embora eu tivesse vivido o processo, como estudante não tinha a visão que os documentos refletem daquele momento. O estudo me revelava um grupo de estudantes intelectualmente privilegiados, que detinham a liderança do movimento estudantil e com hegemonia dentro da entidade.JU – Qual a origem desses estudantes?Sanfelice – Um grande grupo tinha vínculos com a Igreja Católica, provinha da Juventude Universitária Católica (JUC), da Ação Popular (AP), que era o braço mais político dessa corrente, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o “Partidão”, que também se tornou importante nesse processo, e mais à frente grupos dissidentes mais à esquerda, como o PC do B e muitos outros mais radicais. Esses grupos se manifestavam através dos congressos da UNE em que as teses eram debatidas e levavam à elaboração de documentos de análise da conjuntura histórica nacional, da relação dessa história com o que os estudantes denominavam imperialismo. Decorrentes dessas análises, surgiam plataformas de lutas, estruturavam-se ações e determinavam-se tarefas mais imediatas. Surpreendi-me diante da constatação de que muito pouco disso chegara à grande massa estudantil.
JU – Não existiam estudos nessa direção?Sanfelice – É bom lembrar que quando iniciei a pesquisa isso tudo era de difícil acesso e ainda havia o receio de tocar na temática, de mexer com as fontes necessárias, pois se começava a sair dos “anos de chumbo” e por isso a pesquisa tinha um certo caráter de inusitado. Na época, eu encontrei – e acabei citando – referências de pesquisadores que abordaram os jovens – mais do ponto de vista sociológico ou de um movimento estudantil genérico.
Entretanto, o foco centrado na UNE, para descobrir-lhe o pensamento teórico, o que pensavam suas lideranças e que propostas efetivamente tinham, isso acho que foi razoavelmente novo naquelas circunstâncias. Posteriormente, surgiram bons livros que passaram a utilizar o meu como referência para acrescentar outros elementos. Ative-me particularmente à década de 60 e muita gente deu seqüência aos estudos a partir de 70.
JU – Qual a origem dos documentos examinados?Sanfelice – Consegui de ex-militantes documentos produzidos na UNE que circularam no movimento estudantil, mas não eram encontrados em bibliotecas. Além disso, a USP já começava a ter algum material no Centro de Estudos de Cultura do Brasil, resultantes principalmente dos congressos da UNE, que analisava a reforma universitária. Com isso consegui de alguma forma recuperar o caminho percorrido pela UNE do finalzinho dos anos 50 até o final dos anos 60.
JU – Por que esse período?Sanfelice – Foi uma época em que a UNE se altera profundamente, deixa de estar atrelada ao poder, entra na discussão das reformas de base, assume a bandeira da reforma universitária, engaja-se nos movimentos populares de alfabetização de adultos e cria a UNE volante para difusão cultural pelo Brasil. É a UNE que eu considero de resistência ao golpe. Que já se posicionara ao assumir a luta pela legalidade junto com Leonel Brizola – por ocasião da renúncia de Jânio Quadros e posse de Jango; que na época do plebiscito defendera a volta do presidencialismo em lugar do parlamentarismo que Jango tivera que engolir para ser empossado; que chega aos expressivos movimentos de 1968 e 1969 com as grandes passeatas, agora já durante a ditadura militar que sucedeu à queda de Jango. Essas ações não são gratuitas, já que por trás delas tem uma leitura da realidade e uma produção teórica que explica as posições assumidas.
JU – Houve surpresas?Sanfelice – Do ponto de vista do material com que trabalhei, a surpresa mais relevante deu-se em relação à qualidade teórica das análises, sem qualquer julgamento de valores. São análises relativamente extensas e profundas e pertinentes como ponto de vista da UNE em relação àquela conjuntura. Outra surpresa foi constatar o grande distanciamento entre essa produção teórica e o movimento da massa estudantil. Eu tinha sido estudante naquele contexto e não tive acesso a esses documentos, o que sugere uma produção elitizada.
JU – De onde vinha essa maturidade?Sanfelice – O grupo dirigente era constituído de lideres estudantis, intelectuais que se tornaram elite da UNE e do movimento por ela liderado. A minha explicação, ainda que parcial e genérica, é que se tem primeiro uma influência da perspectiva religiosa católica, progressista, no sentido de responsabilidade social, justiça, que revelava um catolicismo já um tanto avançado para a época. Fica claro também que as perspectivas do pensamento socialista vão se difundindo cada vez mais, seja por causa de revolução cubana, com as figuras emblemáticas de Fidel Castro e Che Guevara, seja porque o PC adquiriu status um tanto diferenciado dentro das condições da época, seja pelas matrizes teóricas representadas pelo marxismo, fosse leninista ou da revolução chinesa. Não se tem uma matriz limpa, clara. Tanto que as tendências levam cada vez mais à divisão do movimento que se fraciona em grupos muito pequenos.
JU – Como sua tese foi recebida à época?Sanfelice – A pergunta me remete à sessão publica da defesa da tese que se realizou no anfiteatro da PUC-SP com a presença de um público além do esperado, porque, para a época, o tema despertava particulares atenções. O clima que permeou a defesa foi tenso porque a banca examinadora se revelou disposta a acertar contas com o movimento estudantil, por uma razão simples: a maioria daqueles doutores de alguma forma tinha passado por ele.
A defesa foi extremamente demorada e o que mais se cobrou de mim é que eu fizesse um julgamento do movimento estudantil. Afinal, eles esperavam que as contas fossem acertadas por mim, o que me neguei a fazer. De uma examinadora ouvi uma frase que me marcou: “Desça do muro e tome partido”. Ela esperava que eu dissesse se a UNE acertou ou errou. Outro examinador argumentou que eu quisera fazer uma elegia da UNE, apesar de eu ter deixado bem claros meus propósitos na apresentação do trabalho.
JU – A que público se destina esta nova edição?Sanfelice – O tema suscita hoje interesse no meio acadêmico e no meio estudantil universitário. Você presenciou alunas entrando aqui à procura do livro. Está renascendo o interesse acadêmico pelo movimento estudantil. Nos últimos anos tem crescido o interesse pelo movimento estudantil depois de um período em que foi esquecido. Talvez a revitalização do tema tenha vindo no bojo do movimento dos caras pintadas, por ocasião da queda de Collor. Existe a idéia generalizada de que os estudantes não são politizados, não participam de nada, mas repentinamente começa um processo de ocupação de universidades, de denúncias por parte dos estudantes.
Alguma coisa mudou e talvez não se tenha conseguido entender ainda o que mudou e para que direção se encaminha a mudança. Entendo que o livro passou a ser uma referência para quem trabalha com história e constitui um documento que precisa ser socializado pelas razões apontadas. Deixo claro nesta nova edição que não se devem criar mitos sobre a UNE, sobre o movimento estudantil, sobre o livro, porque ele constitui apenas um registro intencional e tem seus limites, embora também tenha seus alcances. A idéia é socializar ao máximo um trabalho para quem tenha interesse e queira conhecer a história, para entender inclusive mudanças que ocorreram em uma época.
JU – Quais a mudanças introduzidas na nova edição?Sanfelice – No prefácio, acrescento as razões que me levaram à decisão de reeditar a obra e esclareço algumas observações que ao longo dos anos foram feitas sobre o trabalho. O posfácio, que não existia, constitui uma contribuição a uma linha de estudo acadêmico que é a da história do livro. Ao final, recomendo uma bibliografia produzida depois da publicação do meu livro para que o leitor possa ir além e tenha contato com outras abordagens que o tema suscitou ao longo de tempo. Excluí da nova edição os documentos originais de consulta como forma de diminuir o volume e baratear o custo. Hoje eles podem facilmente ser encontrados na Internet, inclusive no site da editora. Na época da primeira publicação não existiam essas facilidades e o acesso aos documentos era muito difícil.
JU – O que o senhor espera com o relançamento do livro?Sanfelice – A idéia é trazer uma contribuição da história da educação no Brasil e facilitar aos interessados os caminhos que levam a conhecê-la, porque para os universitários de hoje as ocorrências dessa época estão muito distantes. O livro é uma forma de ajudar, facilitar, aproximar o conhecimento histórico das novas gerações, utilizando o recorte da história da educação e o movimento estudantil, porque a UNE se mobilizou para a reforma universitária que acabou ocorrendo. Em 1968 foi publicada também uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Essas reformas atendiam de certa forma algumas reivindicações dos estudantes, embora isso não fosse admitido pelo poder constituído.
Incidente trouxe livro à berlinda
“Livro xerocado recebe voz de prisão”. Com esse título, o jornal O Estado de S. Paulo publicou chamada de primeira página sobre ocorrência policial envolvendo o livro Movimento Estudantil – A UNE na Resistência ao Golpe de 64, do professor José Luís Sanfelice. A matéria dava conta de que, depois de muito procurar o livro esgotado há dez anos, seguindo recomendação do próprio autor, uma estudante retirou o único exemplar da biblioteca de sua universidade para fazer copia xerográfica. Flagrada por um policial, teve o livro apreendido em um distrito policial da sua cidade. Embora Sanfelice tenha deposto no distrito policial, até hoje, um ano e meio depois, o processo não foi encerrado. Sanfelice diz que “por um incidente ou acidente o livro mereceu uma divulgação que jamais”. O incidente, que foi tratado de forma sensacionalista e oportunista por parte da mídia, que passou a fazer ilações com base no fato da obra citar pessoas que depois alcançaram prestígio na vida política nacional. No posfácio, o autor trata com detalhes do episódio.
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