FONTE: Jornal Valor Economico, 27 Nov 2008
Livro detalha extermínio de opositores do regime
Maria Inês Nassif, de São Paulo
27/11/2008
O agente secreto do Centro de Informações do Exército não era nenhum neófito em tortura ou execuções, mas o que viu naquele mês de março de 1974, no "aparelho" que os órgãos de segurança da ditadura mantinham em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, foi demais até para ele. Carioca era um dos três integrantes da equipe que conduziu David Capistrano da Costa, dirigente do Partido Comunista Brasileiro (PCB), preso quando tentava entrar no país por Uruguaiana, de Porto Alegre para São Paulo, na Operação Bandeirantes (Oban), o centro de torturas da rua Tutóia; e depois para o Rio. Em Petrópolis, a equipe local fazia o "serviço" no quintal e um de seus integrantes chamou o agente do CIE quando "terminou". "Ei, Carioca. Venha aqui fora, o trabalho tá quase pronto". Carioca foi conduzido a um cômodo isolado, nos fundos, e passou a vista pelo ambiente. Demorou um pouco para entender o que acontecera. Tinha sangue para todo lado, mas não via o corpo. "Chocado, sem articular uma só palavra, o estômago engulhado, percebeu que as partes, amontoadas num canto, estavam a ponto de serem colocadas num saco plástico". Levantou a cabeça em direção a algo pendurado por ganchos. "Um tronco, dividido ao meio. As costelas de Capristano pendiam ao teto, e ele, reduzido aos pedaços, como se fosse uma carcaça de animal abatido, pronta para o açougue".
Era com essa cena que o agente, que a partir de então passou a anotar secretamente o que viveu como agente do regime militar (1965-1985), imaginava abrir um livro de memórias. O material chegou praticamente clandestino, por correio, para a Geração Editorial, que em 2005 havia editado "Operação Araguaia", dos jornalistas Taís Morais e Eumano Silva, que reuniu uma documentação inédita sobre a guerrilha do Araguaia, relatando episódios vividos pelo agente. O diário foi enviado pela ex-mulher de Carioca, que ficou com os manuscritos e a orientação de encaminhá-los a jornalistas ou a uma editora quando o autor morresse. Morreu, a machadadas, num episódio até hoje não esclarecido. O editor encaminhou o material a Taís Morais, que checou dados, conversou com agentes que atuaram com Carioca e trouxe a público fatos estarrecedores contados pelo militar que morreu atormentado por seus atos, no livro "Sem vestígios: revelação de um agente secreto da ditadura militar brasileira"*. Por opção da autora e do editor, foi mantida a ordem cronológica dos fatos relatados. Embora tenha mantido em sigilo a identidade de Carioca e de agentes que trabalharam junto com ele, seus pares certamente terão facilidade em identificá-lo. O ex-ministro José Dirceu, citado no livro, identifica o agente como Carlos Alberto Costa. Por razões de segurança, o livro foi distribuído às livrarias antes da divulgação.
Com algum cuidado, Taís expõe a afirmação contida no diário do agente, de que o ex-ministro José Dirceu teria sido um agente duplo, responsável pelo desmantelamento do Movimento de Libertação Popular (Molipo). "Segundo as notas de Carioca, depoimentos de alguns militares e as memórias dos coronel Lício [Augusto Maciel] - naquele idos, major -, Daniel [codinome de José Dirceu] teria sido o agente duplo e, antes de morrer, Jeová [de Assis Gomes, militante do grupo armado] informara esse nome como o de quem havia traído o Molipo", diz o livro. Atribuiu-se a Boanerges de Souza Massa, ex-militante da ALN e preso quando era militante do Molipo, a traição a seus companheiros. Carioca o inocentou. Boanerges fez curso de guerrilha em Cuba, junto com José Dirceu. Integrava o Grupo dos 28 (ou Grupo Primavera, ou ainda o Grupo da Ilha), do qual apenas duas pessoas sobreviveram: Dirceu e Ana Corbisier. O agente, em seu diário, diz que Boanerges foi entregue a um "aparelho rural" dos serviços de informação instalado em Formosa, Goiás. Segundo disse a ele Geverci, caseiro da propriedade, o militante "foi feito e enterrado por aí. A equipe veio, levou o homem de madrugada e sumiu com ele". "Fazer" alguém era executá-lo.
Dirceu disse que a afirmação contra ele é uma "infâmia", urdida pelo coronel Lício, que "se especializou em difamar tanto a memória dos mortos como os que sobreviveram". É atribuído a Lício, por exemplo, a versão de que o deputado José Genoino, primeiro preso pela repressão na Guerrilha do Araguaia, teria entregado seus companheiros. Devido à compartimentação das informações e das bases guerrilheiras, Genoino sequer teria tais informações. Segundo o ex-ministro, as circunstâncias da morte de Jeová, investigadas por ele nos anos 80 quando era da Comissão de Justiça e Paz, indicam que seria impossível ele ter falado qualquer coisa antes de morrer, com um tiro nas costas, num campo de futebol. "Essa infâmia aparece num momento em que estou apoiando o movimento para que a tortura seja considerada crime contra a humanidade". Não é fato também, diz Dirceu, que tenham sobrevivido apenas dois militantes do Molipo; como também não veio da esquerda as desconfianças de que Boanerges teria sido um traidor. "Foi a própria repressão que levantou essa hipótese".
A outra revelação importante do livro é a de que o líder estudantil Honestino Guimarães, da Ação Popular, preso em 1973, no Rio, e levado a Brasília, foi morto no palco da Guerrilha do Araguaia. Já nos estertores da operação de extermínio dos guerrilheiros do PCdoB que se mantiveram na região, chegou a Marabá um jatinho da empresa Líder, contratado pela Presidência da República, que conduzia quatro militantes de esquerda, sedados e encapuzados. Foram levados à Casa Azul, um dos centros de operação militar contra a guerrilha. Quando os capuzes foram retirados, o agente - que atuava em Brasília, de onde era Honestino -reconheceu o líder estudantil. Com ele estava outro militante brasileiro, que o "coronel Jonas" disse que era Eduardo Leite, o Bacuri - essa informação Carioca acreditava ser um engano, pois Bacuri foi preso e dado como morto no final de 1970, em São Paulo, e seu corpo entregue à família completamente destroçado. Os outros dois presos que chegaram ao Araguaia, vindos de Brasília, um era francês e o outro, argentino, e não foram identificados por Carioca. Coube à equipe do agente executar os presos, no meio da mata. Um dos estrangeiros, o de sotaque francês, embora dopado, entendeu que ia para a morte e tentou ainda negociar a sua vida com um agente que estava próximo. "Pô, cara, não faz isso comigo não! Deixa que eu mato os três para vocês e ainda sirvo de informante para o que quiserem". A ordem da execução, no entanto, estava dada. E vinha de Brasília, sem qualquer possibilidade de apelação.
No seu diário, o agente confirma que foi Manoel Jover Telles, o Rui, que entregou a data e da reunião do Comitê Central do PCdoB, marcada para o dia 12 de dezembro de 1976 em uma casa na rua Pio XI, na Lapa. Ele participou da reunião - foi para lá seguido de nada menos do que 35 veículos. Quando o aparelho foi invadido e metralhado, Jover já havia saído. Os dirigentes que saíram, exceto Telles, foram presos. Morreram metralhados Ângelo Arroyo e Pedro Pomar. O episódio é conhecido como "Massacre da Lapa" .Segundo Carioca, Telles foi preso e prestou depoimento no dia 8 de dezembro e, para safar-se, fez duras críticas ao PCdoB e contou tudo o que sabia sobre a reunião que iria acontecer com todos os dirigentes do partido, poucos dias depois.
É tratado como "cachorro" (delator) também o ex-sargento Alberi Vieira dos Santos, que foi preso em 1965 e para não morrer tornou-se informante do CIE infiltrado na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). A sua missão era "seduzir exilados e levá-los à arapuca de falsos focos guerrilheiros", segundo o livro. Em 1974, Alberi levou para a morte, no mesmo dia, duas levas de militantes da VPR e de argentinos do Exército Peronista, no Parque Nacional do Iguaçu; dias depois, a mesma operação prenderia o ex-sargento do Exército Onofre Pinto, um dos comandantes do grupo armado.
* "Sem vestígios: revelações de um agente secreto da ditadura militar brasileira", Taís Morais, Geração Editorial, 2008, 239 páginas
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