FONTE: http://www.prsp.mpf.gov.br/eventos/palestradr.pdf
ARQUIVOS SECRETOS E DIREITO À VERDADE
Marlon Alberto Weichert
mweichert@prr3.mpf.gov.br
Introdução
A insistência do Estado brasileiro de manter em sigilo documentos e informações
relativas ao período de ditadura militar atinge diretamente o direito das famílias de mortos e
desaparecidos políticos de poderem dar enterro digno a seus entes e conhecer as
circunstâncias de suas mortes, bem como o interesse da sociedade brasileira de ter acesso à
sua história.
Indiretamente, a falta de verdade impede o desenvolvimento da cidadania e da
democracia, tornando impossível ao cidadão o pleno exercício do Poder estatal, conforme
previsto no artigo 1º, parágrafo único da Constituição: “todo o poder emana do povo, que o
exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, ...”. Ora, o primeiro pressuposto
para o exercício de qualquer potestade é o conhecimento da situação fática sobre a qual será
exercido o poder. Só o acesso à informação possibilita o conhecimento e a compreensão da
realidade e da história.
Logo, sem o conhecimento da história do país, o povo não pode exercer com
liberdade, maturidade e responsabilidade o direito à autodeterminação, ou seja, o poder
estatal. A falta de acesso às informações e arquivos públicos impede, pois, a plena
cidadania.
Com relação aos desaparecidos políticos, a ocultação de informações atenta contra a
própria dignidade da pessoa humana. Frise-se que a agressão à dignidade não é dor apenas
de quem a sofre diretamente. O ato indigno transborda da relação entre a vítima e seu
algoz, desprendendo valores negativos para o ambiente, o meio social. Para os
“desaparecidos”, a indignidade não cessou com a sua morte. Ela é perpetuada com a
ocultação do seu corpo e a supressão da possibilidade da família lhe dar respeitoso
sepultamento.
O sepultamento digno sempre foi uma tradição humana. Desde os antigos (gregos,
egípcios, latinos) a pior forma de impiedade era deixar de sepultar os mortos. Ora, é
inadmissível que em pleno século XXI alguns órgãos do Estado brasileiro – que se diz
democrático, republicano e destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e
individuais – insistam em impedir a concretização de tão básico valor humano. É com
perplexidade que vemos instituições públicas aceitarem, tacitamente, a vigência de uma
espécie de “Édito de Creonte” tupiniquim.
A estranha figura do “desaparecido” traz a incerteza, a insegurança e a injustiça, e –
paradoxalmente – permite a esperança. A ausência é o prenúncio da desgraça, mas é
também o espaço vazio que admitiria preenchimento, com o retorno do ente ausente. Essa
complexidade de sentimentos sempre foi campo propício para o exercício da crueldade.
Infelizmente, passados aproximadamente trinta anos do auge da repressão militar, ainda
hoje o Poder Público parece cruel, protegendo e defendendo a ocultação em detrimento da
paz que poderia ser devolvida às famílias. Privilegia-se o silêncio como forma de proteção
aos agressores, em detrimento da moral, do decoro, da honestidade, da dignidade, em suma,
da justiça.
Não há mais razões jurídicas, sociais, ou políticas, para o sigilo. O país precisa
conhecer a verdade, seja ela bela, ou não. A cultura do segredo traz muitos prejuízos.
Utiliza-se o Estado para preservar – ou promover – biografias, impedindo-se com isso o
exercício responsável da cidadania, o aperfeiçoamento das instituições e a maturidade
política. É de todo claro que a lamentável situação de improbidade no trato da coisa
pública se alimenta da falta de informação, da ausência de esclarecimento, da limitação do
direito à verdade, do silêncio. Abrir os arquivos do Brasil não é imperativo só para
entendermos o passado, mas principalmente para termos futuro.
Nesse contexto, dou início à abordagem jurídica sobre a concretização do direito à
verdade no Brasil.
Direito constitucional à verdade
Muito embora o direito à verdade seja exigível de diversos atores sociais – tais
como meios de comunicação e instituições privadas depositárias de informações de
interesse público - é no Estado que encontramos o principal responsável pela prestação de
informações à sociedade. É em relação ao Poder Público que o dever de transparência
assume relevo, como um pressuposto indispensável para a construção de uma sociedade
democrática, fundada na cidadania e no respeito aos direitos humanos.
O Constituinte brasileiro de 1988 expressamente consagrou esse fundamental direito
de acesso do cidadão aos seus acervos documentais do Estado, no inciso XXXIII do artigo
5º:
“XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de
seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no
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prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja
imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.”
O descumprimento desse preceito pelo Estado – através de qualquer de seus órgãos
– cerceia o exercício dos direitos civis e políticos, assim como impede a responsabilização
dos agentes públicos violadores dos direitos humanos e praticantes da corrupção.
Especialmente o Ministério Público, instituição que tem a incumbência constitucional de
mover a ação penal, fica atado para o cumprimento de seu dever. Enquanto perdurar a
omissão de informações mediante restrição de acesso a arquivos, torna-se impossível a
conclusão de investigações, a apuração da verdade material, e, em conseqüência, a oferta da
denúncia criminal ao Poder Judiciário.
A norma constitucional (artigo 5º, inciso XXXIII) admite que documentos sejam
mantidos sob sigilo, quando imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. É uma
exceção pontual e razoável ao direito fundamental, segundo a qual, em situações especiais,
é autorizada a omissão de dados e de informações do conhecimento público, pois a
revelação precipitada poderia ser danosa para o País. Essa hipótese ocorre, por exemplo,
com aspectos da defesa militar, estratégias comerciais e de política exterior, atividades de
inteligência da polícia etc.
Enfatize-se, porém, que o sigilo é medida excepcional, devendo ser formalmente
justificado. O Estado tem o ônus de demonstrar que o segredo é indispensável para
prevenir graves prejuízos ao interesse coletivo. Não se pode transformar supostos riscos em
fundamento para a omissão de documentos. A Constituição refere expressamente que o
segredo deve ser imprescindível para a segurança da sociedade ou do Estado.
Evidentemente, tampouco está contido na exceção constitucional o sigilo para
preservar interesses individuais de autoridades, ou a possibilidade de esconder da
população fatos do passado apenas por serem desabonadores de biografias.
O dano que justifica o sigilo deve ser atual e relacionado diretamente com os
interesses da nação. Ou seja, a divulgação da informação deve trazer riscos presentes. A
convicção de que, no passado, a revelação seria danosa, não autoriza o sigilo de hoje.
Por esse motivo, a necessidade do sigilo precisa ser constantemente reavaliada, pois
a dinâmica das relações sociais e do convívio internacional das nações supera, muitas vezes
rapidamente, os motivos que foram determinantes para temer riscos ao País ou aos seus
cidadãos.
Assim, não é admissível a estipulação de sigilo eterno ou a fixação de prazos
irrazoavelmente longos para a desclassificação do caráter sigiloso do documento.
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Quando for de todo impossível a definição antecipada de um curto prazo de sigilo, a
atualidade do dano decorrente da divulgação do documento deve ser reconsiderada a
intervalos certos de tempo, à luz da situação e das perspectivas do momento histórico em
que se vive.
Em síntese, o preceito constitucional do artigo 5º, inciso XXXIII, contempla o
direito fundamental subjetivo do cidadão de obter dos arquivos do Poder Público toda e
qualquer informação de seu interesse particular, ou de interesse coletivo. Esse direito
fundamental é acompanhado de cláusula restritiva (ALEXY 1, 277), que autoriza uma
recusa estatal a fornecer informações quando imprescindível à segurança da sociedade ou
do Estado.
Muito embora a mencionada cláusula de restrição seja constitucional, seu conteúdo
admite conformação pelo legislador ordinário, especialmente para aclaramento e
detalhamento das hipóteses em que necessário o sigilo, fixação dos prazos máximos de
ocultação, definição dos agentes legitimados a decidir pela classificação dos documentos e
estabelecimento dos procedimentos de impugnação do segredo pelo cidadão.
Frise-se, porém, que os elementos essenciais da restrição admitida são todos do
próprio plano constitucional, ou seja, decorrem do sistema de valores da Carta
Fundamental. Embora o constituinte tenha atribuído ao legislador a missão de disciplinar a
restrição, não lhe é permitido se afastar da Constituição e, muito menos, do próprio núcleo
do direito fundamental (STEINMETZ 1, 37). Não se admite que a lei, a pretexto de
regulamentar o exercício do direito, o inviabilize, dificulte ou relativize, pois o regime
jurídico dos direitos fundamentais reclama máxima efetividade e eficácia (art. 5º, § 1º, CF).
Da produção normativa infraconstitucional: as Leis nº 8.159/91 e nº 11.111/05
O Congresso Nacional editou a Lei nº 8.159, em 8 de janeiro de 1991, que dispõe
sobre a política nacional de arquivos públicos e privados.
No seu artigo 4º, reafirmou o postulado constitucional de que “[t]odos têm direito a
receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular ou de interesse
coletivo ou geral, contidas em documentos de arquivos, que serão prestadas no prazo da
lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujos sigilo seja imprescindível à
segurança da sociedade e do Estado, bem como à inviolabilidade da intimidade, da vida
privada, da honra e da imagem das pessoas.”
Relativamente ao acesso a documentos sigilosos, mantidos em arquivos públicos,
determinou que (a) decreto presidencial fixaria as “categorias de sigilo” a serem obedecidas
por todos os órgãos públicos, e (b) os prazos máximos de reserva seriam (i) de 30 anos,
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prorrogáveis uma única vez, por igual período, quando se tratasse do interesse da segurança
da sociedade e do Estado, e (ii) de até 100 anos, quando decorrente de proteção à honra e à
imagem das pessoas.
Essa Lei foi objeto de seguidas regulamentações presidenciais: Decretos nº
2.134/97, 2.910/98, 4.497/02 e finalmente o Decreto nº 4.553, de 20021. Este último, em
flagrante ilegalidade e inconstitucionalidade, determinava o trancafiamento por 50 anos dos
documentos considerados ultra-secretos, prazo esse prorrogável indefinidamente, conforme
a vontade do primeiro escalão do Executivo. Vale lembrar que a lei limitara o prazo em 30
anos, prorrogável uma única vez por igual período. Como se sabe, um decreto presidencial
jamais poderia fixar um prazo de sigilo superior àquele fixado em lei (princípio da
legalidade).
Pelo governo que tomou posse em 2003 (Presidente Luiz Inácio Lula da Silva), foi
editada a Medida Provisória nº 228, de 9 de dezembro de 2004, que alterou a Lei nº
8.159/91. A medida provisória foi regulamentada pelo Decreto nº 5.301, de 2004 e
convertida – sem alterações – na Lei nº 11.111/05.
Uma das principais inovações da medida provisória foi a autorização para o
Presidente da República instituir (o que de fato ocorreu, com a edição do tal Decreto
5.301/04), no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão de
Averiguação e Análise de Informações Sigilosas, que teria por atribuição decidir pela
manutenção do sigilo – “pelo prazo que estipular” – dos documentos que estiverem
esgotando o prazo de 60 anos (30+30) de clausura, quando entendesse que o acesso ameaça
a soberania, a integridade territorial nacional ou as relações internacionais do País.
Ocorre que diversos vícios de constitucionalidade afetam os diplomas normativos
Lei nº 8.159/91, Medida Provisória nº 228/04 e Lei nº 11.111/05. Por outro lado, subsistem
omissões na atividade legislativa relativamente à concretização do direito fundamental de
acesso aos documentos e informações públicos. É do que passaremos a tratar.
Impossibilidade de edição de medida provisória para disciplinar direito fundamental
relacionado ao exercício da cidadania
A primeira inconstitucionalidade – de natureza formal –, reside na violação à
proibição expressa de emprego de medidas provisórias para legislar sobre cidadania (art.
62, § 1º, I, a)2. Não tratarei dela nesta apresentação, dada a limitação de tempo, e a
1 Todos são atos do Presidente Fernando Henrique Cardoso.
2 Art. 62. ...
§ 1º. É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria:
I – relativa a:
a) nacionalidade, cidadania, ...
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necessidade de explicar aos colegas estrangeiros os vários aspectos que cercam esse tipo de
ato normativo. Mas, em síntese, o que gostaria de lamentar é o emprego, pelo governo do
atual Presidente, de uma espécie de ato normativo – a medida provisória – que impede
qualquer discussão democrática sobre o seu teor. Sua adoção é incompatível com a
regulação de direitos de cidadania.
Indevida delegação ao Poder Executivo da definição das hipóteses de sigilo e das
autoridades competentes para classificar e desclassificar documentos.
O primeiro vício material a comprometer a constitucionalidade desse conjunto
normativo reside na delegação, ao Poder Executivo, da competência para definir as
hipóteses e categorias de sigilo. É o que consta do artigo 23, caput, da Lei nº 8.159/91:
“Decreto fixará as categorias de sigilo que deverão ser obedecidas pelos órgãos públicos
na classificação dos documentos por eles produzidos.” E foi reproduzido pelo artigo 3º da
Lei nº 11.111/05: “Os documentos públicos que contenham informações cujo sigilo seja
imprescindível à segurança da sociedade e do Estado poderão ser classificados no mais
alto grau de sigilo, conforme regulamento”.
Da mesma forma, o legislador ordinário remeteu ao Presidente da República a
competência para instituir, “no âmbito da Casa Civil da Presidência da República,
Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas, com a finalidade de decidir
sobre a aplicação da ressalva ao acesso de documentos” (Lei nº 11.111/05, art. 4º).
Ora, em se tratando de matéria para a qual a Constituição Federal previu restrição a
direito fundamental, a tarefa de conformá-lo é exclusiva do legislador. Não se admite possa
ser restringido um preceito constitucional instituidor de liberdade pública por simples ato
regulamentar. O conteúdo na norma constitucional reclama a reserva de lei em sentido
estrito para a disciplina das hipóteses de ressalva ao direito fundamental de verdade e
transparência (ou de acesso às informações do Estado). Essa é uma exigência formal sobre
o exercício da competência para impor ou disciplinar restrições.
Lembre-se, aliás, que o direito fundamental de acesso aos documentos públicos se
volta, principalmente, em face do Poder Executivo. Supor que o próprio subjugado ao
direito possa definir, por ato seu, a amplitude e o alcance das restrições ao direito que visa
coactar a sua histórica tirania seria um verdadeiro e inadmissível paradoxo. Se o direito
fundamental objetiva limitar a arbitrariedade do Poder Executivo na abertura de seus
arquivos, não pode ser dado, a este, definir as hipóteses em que guardará sigilo, e tampouco
quais autoridades declararão este silêncio.
Está claro, pois, que o espaço de conformação do direito ao acesso à verdade é
privativo do legislador, não podendo este delegá-lo ao destinatário final da norma de direito
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fundamental, ou seja, o Poder Executivo, sob pena de estar permitindo sua relativização por
quem deveria lhe dar o cumprimento.
Por essas razões, as normas legais do artigo 23, caput, da Lei nº 8.159/91 e do artigo
3º da Lei nº 11.111/05 – que delegam ao decreto presidencial a definição das hipóteses de
sigilo – são manifestamente inconstitucionais.
Fixação do prazo máximo de 100 (cem) anos para sigilo decorrente de proteção à honra e à
imagem. Violação ao princípio da proporcionalidade e da razoabilidade.
A proteção da intimidade, privacidade, honra e imagem autoriza a restrição de
acesso a documentos, conforme o preceito do artigo 5º, inciso X, da Constituição brasileira
de 1988. Entretanto, essa previsão constitucional não significa que todo e qualquer
documento de interesse coletivo que possa provocar danos a esses bens jurídicos seja
necessariamente sigiloso. Quando a informação cuja proteção atende a interesse individual
for também de interesse coletivo, incidem critérios de ponderação. O cotejamento e o
sopeso de ambos definirá se, e em qual proporção, deve ocorrer a divulgação.
Como é típico nos confrontos entre princípios (no caso: sigilo por proteção aos
direitos de personalidade versus interesse coletivo no conhecimento da informação), a
decisão dependerá da análise dos elementos concretos e de cuidadosa ponderação dos
valores constitucionais. Não se pode resolver o aparente conflito com o emprego dos
postulados pertinentes aos conflitos de regras, nos quais privilegia-se um interesse em
detrimento absoluto do outro. Em se tratando de exercício de ponderação entre princípios,
não pode o legislador enveredar pelo tratamento do “tudo ou nada” (DWORKIN 1, 24-25).
Nessa órbita, é vedado ao legislador ordinário pré-definir a preponderância absoluta de um
valor constitucional em relação a outro. Todos são direitos fundamentais e devem ser
conformados para garantia da máxima eficácia de ambos.
A lei não pode, portanto, que a autoridade administrativa deva sempre privilegiar a
proteção aos direitos de personalidade do indivíduo em detrimento do direito coletivo e
individual de transparência nos assuntos do Estado. O papel da norma legal é apontar, se
necessário, a pauta de valores a ser utilizada na solução do conflito, mas não transformar o
exercício da ponderação de princípios constitucionais em mera aplicação de uma regra
absoluta e autoritária.
A Lei nº 8.159/91, art. 23, § 3º, definiu antecipadamente pela restrição no acesso a
documentos sigilosos por decorrência da proteção à honra e à imagem. E, mais ainda,
autorizou que a autoridade classificadora poderá omiti-lo do conhecimento público por até
100 (cem) anos.
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Com toda certeza, a perspectiva de trancafiamento de um documento por um
período já originariamente definido em 100 anos desafia a razoabilidade e a
proporcionalidade e frustra objetivamente o direito fundamental de acesso à verdade. A
pretexto de concretizar o disposto no inciso X do artigo 5º da Constituição, o legislador
sacrificou, de antemão, o exercício de um outro direito fundamental. Não se concedeu
sequer espaço para um juízo concreto sobre o teor do documento em torno do qual ocorre a
colisão de interesses. Em síntese, criou uma inadmissível hierarquia entre os direitos
fundamentais.
Importante destacar que a omissão por 100 anos de documentos pode ser
providência que sequer esteja sob o manto da proteção ao direito à honra e à imagem. De
fato, em sendo um direito de personalidade, não se justifica que décadas após o óbito do
titular se possa dar o mesmo tratamento de quando estava vivo, ou nos anos próximos à sua
morte. A mutabilidade das relações sociais impõe revisões constantes dos padrões morais
que levaram à proteção da imagem e da honra no momento originário.
Lembre-se, por fim, que a proteção constitucional dos valores fundamentais do
indivíduo não se confunde, porém, com a preservação da biografia de personalidades
públicas. Ao contrário, estas, pela dimensão da sua função, tem o círculo da privacidade
reduzido, e seus atos reclamam a máxima transparência. Na mesma linha, a defesa de seus
interesses pessoais não justifica o sigilo prolongado de informações de interesse público.
Prorrogação do sigilo por prazo indefinido. Inconstitucionalidade do § 2º do artigo 6º da
Lei nº 11.111/05
O artigo 6º, § 2º, da Lei nº 11.111/05 (já acima mencionado), autorizou as
autoridades responsáveis pela classificação de documentos ultra-secretos a, antes de
expirado o prazo sexagenário de segredo, requererem à notável Comissão de Averiguação e
Análise de Informações Sigilosas que aprecie a conveniência e oportunidade de torná-los
públicos, investindo esta do poder de manter “a ressalva ao acesso do documento pelo
tempo que estipular”.
Vale dizer, o texto legal admite que a Comissão de Averiguação e Análise de
Informações Sigilosas possa prorrogar, a seu livre critério, o prazo de segredo de
documentos que já esgotaram o interregno original fixado na Lei nº 8.159/91 (ou seja, 60
anos).
Essa autorização legislativa implica na possibilidade de, até mesmo, segredo eterno
ou por prazos absurdamente longos. Na forma do comando normativo legal, nada obsta a
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Comissão delibere fixar que determinado documento seja mantido trancafiado por prazos
da ordem de 200, 300 ou 500 anos.
A mera existência dessa possibilidade agride frontalmente o conteúdo do direito
fundamental de acesso aos documentos do Estado. A cláusula de sigilo que a Constituição
admite é vinculada estritamente à imprescindibilidade diante da segurança da sociedade e
do Estado. Essa avaliação somente pode ser efetuada à luz das circunstâncias atuais do
País. É gritantemente arbitrário definir hoje que determinadas informações serão ainda
lesivas à segurança social e estatal em um prazo longínquo.
O conteúdo do direito fundamental é incompatível com qualquer figura que autorize
prazos indefinidos ou demasiadamente longos, e muito menos com a possibilidade de sigilo
eterno. Ao contrário, seu teor implica na necessidade de recorrentes reavaliações, em
prazos razoáveis e claramente definidos em lei. Note-se que a Lei nº 8.159/91 já fixa um
prazo de 30 anos para reavaliação da atualidade do dano, autorizando sua prorrogação –
fundamentada – por uma vez. Ainda que bastante extenso, 30 anos ainda pode ser
considerado um prazo admissível (limite).
O legislador ordinário não pode, no regime de conformação da cláusula restritiva do
direito fundamental, abrir espaço à sua relativização por via indireta, ou seja, por ato
administrativo do Poder Executivo.
O que deveria constar – e não consta – da legislação conformadora do direito de acesso a
documentos públicos
Não bastasse a legislação editada para regulamentação do disposto no artigo 5º,
inciso XXXIII, da Constituição estar repleta de inconstitucionalidades, verifica-se que o
legislador indevidamente omitiu-se na regulamentação dos aspectos mais importantes para
o cidadão e a sociedade, relativos aos deveres do Poder Público na oferta do acesso às
informações e documentos públicos. Essas omissões comprometem o pleno exercício do
direito fundamental.
A primeira, e mais grave, omissão refere-se à falta de norma regulamentando o
prazo para que o Estado preste as informações que lhe forem requeridas. O artigo 5º, inciso
XXXIII, é explícito ao fixar que “todos têm direito a receber dos órgãos públicos
informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão
prestados no prazo da lei, sob pena de responsabilidade...”.
O Poder Executivo e o Poder Legislativo, até hoje, centraram suas ações no
indevido alargamento das hipóteses de restrição ao direito fundamental. No que concerne,
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porém, à afirmação do direito constitucional mediante, por exemplo, a simples definição do
prazo de resposta às solicitações de acesso, há um rotundo silêncio.
Da mesma forma, o legislador não fixou as sanções cabíveis pelo descumprimento
do pedido de acesso, o que também é reclamado expressamente pelo texto constitucional.
Ainda que seja possível se socorrer da legislação genérica que regula o processo
administrativo e disciplina as sanções por omissão e prevaricação de autoridades públicas,
o fato concreto é que a Constituição exigiu do Poder Legislativo a produção de normas
específicas às peculiaridades do direito fundamental em questão.
Mas não é só. O pleno exercício do direito fundamental demanda que o legislador
atue para conformar outros aspectos da atividade estatal de classificação e desclassificação
de documentos sigilosos.
Ninguém desconhece que os agentes políticos do primeiro escalão do governo
demonstram sequer dispor de elementos que confirmem a existência, ou não, de
documentos sob sigilo. É fato grave, pois impede até mesmo dimensionar o volume de
informações relevantes que são escondidas da população. É dever do Poder Público,
portanto, instituir um processo para a identificação de todos os documentos que hoje, sob
alegado sigilo, estão dispersos por vários órgãos públicos e, até mesmo, sob poder
particular (apesar do caráter oficial do documento ou da informação). Ou seja,
indispensável a produção de normas jurídicas que obriguem o Estado a promover um
profundo inventário de todos os documentos mantidos sob segredo nos diversos órgãos dos
entes federativos, organizando um índice nacional de documentos sigilosos.
Necessita-se, também, de disciplina uniforme para regular a atividade administrativa
de classificação dos documentos, estabelecendo os elementos mínimos que devem constar
da fundamentação da decisão (tais como objeto do documento, motivo e extensão do sigilo
e bem jurídico em risco pela divulgação), tudo de modo a garantir transparência e
objetividade ao ato administrativo.
Imprescindível, também, a regulamentação de um processo administrativo de
impugnação às decisões de sigilo, que permita ao cidadão ou a entidades da sociedade civil
recorrer das razões apresentadas pelas autoridades para ocultação de dados de interesse
particular ou coletivo.
Enfim, não se pode olvidar da grave omissão legislativa representada na abdicação
em normatizar e graduar as causas de sigilo e definir os agentes públicos legitimados a
proceder às análises e classificações. Esses elementos, como visto, foram indevidamente
delegados ao Poder Executivo, o que não elide a responsabilidade do Poder Legislativo em
dispor sobre eles.
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Em suma, a legislação efetivamente compatível com a função conformadora do
direito fundamental deve ser formalmente legítima (fruto de processo legislativo ordinário e
democrático) e materialmente comprometida com a promoção do seu conteúdo, e não
apenas voltada ao alargamento da sua cláusula restritiva. Infelizmente, as Leis nº 8.159/91 e
11.111/05 preocuparam-se mais com este último aspecto, reproduzindo os vícios da
arbitrariedade e da preservação do interesse dos governos sobre o dos cidadãos.
Conclusão
Com essas considerações, gostaria de encerrar com a leitura do fragmento 1 do
poema “A Implosão da Mentira”, de Afonso Romano de Sant’anna:
Mentiram-me. Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente. Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.
Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.
Mentem. Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.
Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.
Bibliografia:
ALEXY, R.. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Políticos y Constitucionales, 2002.
DWORKIN, R. Taking Rights Seriously, Cambridge: Harvard University Press, 1997.
SARMENTO, D. Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2000.
STEINMETZ, W. Colisão de Direitos Fundamentais e Princípio da Proporcionalidade.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
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sábado, 15 de novembro de 2008
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