domingo, 24 de maio de 2009

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PERSONAGEM
Um crime ainda sem solução
Publicado em 24.05.2009
Ameaçado pela repressão pós-64, padre Henrique Pereira Neto foi encontrado morto em 27 de maio de 1969. Depois de 40 anos, as dúvidas permanecem e nenhum culpado foi apontado Sérgio Montenegro Filho
smontenegro@jc.com.br
“A 27 de Maio/o santo mês de Maria/no ano 69/a natureza gemia/por ver o corpo de um padre/morto sobre a terra fria.” Os versos do poeta e cantador cearense Patativa do Assaré descrevem o cenário encontrado, há 40 anos, pelo vigilante Sérgio Miranda da Silva, num terreno baldio da Cidade Universitária, zona oeste do Recife. O corpo do padre Antônio Henrique Pereira da Silva Neto tinha o rosto desfigurado, uma corda enrolada do pescoço à cintura, marcas de facadas e tiros na cabeça. Aos 29 anos de idade, o sacerdote era a primeira vítima fatal da ditadura militar em Pernambuco após a promulgação do sombrio Ato Institucional nº 5.
Padre Henrique, que trabalhava com grupos de jovens sob as bênçãos do arcebispo dom Helder Câmara – considerado àquela altura pessoa não grata ao regime de exceção – fora sequestrado na noite anterior, na Praça do Parnamirim, segundo testemunhas, por três homens numa Rural Willys verde e branca. Era a mesma descrição do veículo de onde, um mês antes, partira o disparo que deixou hemiplégico o líder estudantil Cândido pinto, na Torre. O crime foi precedido por uma série de ameaças ao sacerdote e ao próprio arcebispo. “Padre Henrique trabalhava com uma geração inquieta, que descobria na adolescência a repressão. Ele estimulava o livre pensar, e a ditadura viu nele alguém que podia trucidar para apunhalar dom Helder. Era a opção pelo terror”, analisa o deputado estadual Pedro Eurico, à época integrante da pastoral da juventude estudantil e aluno do sacerdote no Colégio Nóbrega.
Autor do livro Estado de Exceção, Igreja e Repressão, no qual trata especificamente do crime, o historiador pernambucano Diogo Cunha, hoje radicado em Paris, lembra que o padre Henrique coordenava reuniões na casa de jovens e nos colégios, num cenário de efervescência, sobretudo após a revolução estudantil de 68. Mas seu principal objetivo era aproximar pais e filhos. Não havia cunho político, nem de resistência ao regime. “Nem tudo é político numa democracia. Mas num regime totalitario, a política engloba todos os aspectos da vida social. Por isso essas reuniões incomodavam a repressão”, afirma Cunha, acrescentando que o sacerdote não dava atenção às ameaças. “Ele disse à mãe que ninguém faria nada contra um padre”, conta. Estava errado.
COMOÇÃO
O sepultamento, no dia seguinte, se transformaria num ato contra o regime. A presença ostensiva de policiais fardados e à paisana não impediu que aproximadamente dez mil pessoas comparecessem ao velório na Igreja Matriz do Espinheiro e, de lá, percorressem a pé os cerca de treze quilômetros até o Cemitério da Várzea. A maioria era de estudantes com cartazes e palavras de ordem. À frente, dom Helder, o bispo auxiliar dom Lamartine e outros padres.
Mesmo morto, padre Henrique ainda enfrentaria a repressão. Uma barricada da cavalaria da PM, na Torre, só permitiu a passagem do cortejo depois que foram recolhidas as faixas de protesto. Mais adiante, no entanto, o deputado federal cassado Osvaldo Lima Filho (MDB), que acompanhava o ato, seria preso. No cemitério, nova investida contra líderes estudantis. Alguns conseguiram fugir pelas margens do rio. Outros foram detidos. Preocupado com o acirramento, dom Helder fez uma rápida despedida e pediu a todos que fossem embora.
“A morte de padre Henrique era um recado a dom Helder para não permitir a politização da igreja. Mas eles conseguiram o efeito contrário, criaram um momento altamente politizador. As manifestações foram muitas no enterro, e embora a imprensa local estivesse amordaçada, a imprensa internacional registrou tudo”, lembra o padre casado Reginaldo Veloso, à época pároco da Macaxeira e, também ele, vítima de perseguições. “Depois do crime, a igreja progressista se firmou ainda mais. Não podíamos ir às passeatas, mas fazíamos protestos nas missas e eventos religiosos”, conclui.

Inquérito arquivado com mais de dez mil páginasPublicado em 24.05.2009
O processo de investigação da morte do padre Henrique se arrastou por quase vinte anos, somando mais de dez mil páginas. Versões contraditórias foram apresentadas, testemunhas ouvidas, suspeitos pronunciados e depois inocentados. O caso foi arquivado por falta de provas, em 1986. Durante o processo, ameaças foram feitas à família e amigos do sacerdote, estudantes e padres foram perseguidos e presos. Eram os anos de chumbo. “O inquérito foi manipulado. Tentaram sugerir homossexualismo, envolvimento com mulheres, com drogas. Mas nada convenceu a sociedade, que sabia o real motivo da morte”, afirma o deputado Pedro Eurico, que durante as investigações presidia a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife, a convite de dom Helder Câmara. “A investigação esteve sob suspeita todo o tempo, porque os investigadores eram os mesmos envolvidos no crime”, acrescenta.
O historiador Diogo Cunha corrobora a tese, classificando a investigação como “segredo de polichinelo”. Segundo ele, ficou claro que o crime foi político, mas ninguém assumia. “O regime tentou organizar o sistema repressivo, mas por vezes os órgãos atuavam de forma autônoma e anárquica. Em alguns Estados, muitas vezes a repressão era excercida pela polícia”, diz. No caso do padre Henrique, segundo Cunha, as evidências apontavam a participação de policiais da Secretaria de Segurança Pública. “Identificação do carro abastecido na noite do crime com autorização da polícia, depoimento de um agente que trabalhava na garagem da SSP, ameaças feitas à mãe do sacerdote, dona Isaíras Pereira. A secretaria era chefiada pelo delegado Bartolomeu Gibson e contava com agentes que ficaram conhecidos como Henrique Pereira X-9 e Rivel Rocha”, conta.
Mas para se entender por que nada foi feito, apesar das fortes evidências, deve-se lembrar, segundo Diogo Cunha, que as relações de força entre os poderes no Estado autoritário são invertidas. “Em geral, a Justiça perde parte de seus poderes para o Executivo e o sistema repressivo. No caso brasileiro, isso teve inicio com o AI-2, em 1965, e se agravou com o AI-5. E explica porque, apesar de tantas evidências, nem um juiz respeitado como era Aloísio Xavier (encarregado do caso) conseguiu apontar os assassinos”, analisa.
Mesmo diante das dificuldades e perseguições impostas pela repressão, entidades civis tentaram cobrar a apuração, sem sucesso. A própria mãe do sacerdote, dona Isaíras, decidiu cursar Direito para se dedicar às investigações, mas faleceu em 2006 sem ver a conclusão. O caso ainda pode ser reaberto, uma vez que crimes de sequestro e tortura, por lei, não prescrevem. Mas desde o arquivamento não houve iniciativas de familiares ou entidades de retomar as investigações.


Semana de homenagens ao sacerdote Publicado em 24.05.2009
Várias homenagens estão programadas para lembrar os 40 anos da morte do padre Henrique. Na próxima quarta-feira (27), o ministro Paulo Vanucchi, da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) do governo federal, estará no Recife para uma sessão solene na Câmara de Vereadores, às 8h, seguida da inauguração de um memorial na Praça Padre Henrique, na Avenida Mário Melo. A escultura, por iniciativa da SEDH, será colocada ao lado do monumento Tortura Nunca Mais, que lembra as vítimas da repressão. Outro memorial será inaugurado à tarde, na Praça da Liberdade, Campus da UFPE, junto à Biblioteca.
Na quarta também haverá homenagem dos alunos da Escola Municipal Padre Henrique, no Derby. Antes, na terça (26), a Editora Universitária da UFPE lança o livro póstumo de poesias O noves-fora da vida, escrito pela mãe do padre Henrique, Isaíras Pereira da Silva. Na quinta (28), nova sessão solene acontecerá na Assembleia Legislativa.
De acordo com a coordenadora do projeto Direito à Memória e à Verdade, da SEDH, Vera Rotta, o ministro Paulo Vanucchi participará apenas das homenagens no dia 27, data da morte do sacerdote. Ela lembra que, em 12 de fevereiro de 2006, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos aprovou a indenização à família do padre Henrique, de R$ 111.360. Embora o inquérito jamais tenha apontado culpados, ao deferir o processo o governo brasileiro reconheceu que a morte do sacerdote teve motivação política.


ENTREVISTA » ISAÍRAS PEREIRA PADOVAN “Ninguém investigou de verdade” Publicado em 24.05.2009
Sérgio Montenegro Filho smontenegro@jc.com.br Seis anos mais nova que o padre Henrique, a irmã do sacerdote, Isaíras Pereira Padovan, diz não ter perdido a esperança de ver os culpados identificados. Mas admite que, depois de 40 anos de sofrimento, a família não está mais disposta a pedir a reabertura do caso. “A Justiça sabe os detalhes. Por que não toma a iniciativa?”, questiona. Professora do Departamento de Histologia da UFPE, ela lembra, nesta entrevista ao JC, os dias difíceis que se seguiram ao crime, com a prisão do pai, ameaças à mãe e perseguição aos irmãos. JC – Que memórias a senhora tem do dia em que aconteceu o crime?
ISAÍRAS PEREIRA – Entrei na faculdade em 1969, em Biomédicas. Estava na aula de anatomia quando avisaram que havia um corpo num terreno no campus da UFPE, mas não fui olhar. Quando voltei para casa, por volta do meio dia, começaram a chegar pessoas amigas perguntando pelo meu irmão, e nós não sabíamos de nada, dizíamos que esperassem que ele chegaria para o almoço. As pessoas davam uma desculpa e iam embora, com pena de nos contar. Lá pelas três da tarde, minha mãe, preocupada, pediu ao meu pai que fosse procurar nos hospitais. Ela tinha medo porque tinha acontecido pouco antes o atentado a Cândido Pinto. Às três e meia dom Helder chegou e deu a notícia. Meus pais foram com ele ao necrotério. Enquanto isso, um policial chamado Rivel Rocha foi lá em casa e queria entrar. Eu tive que pegar o revólver do meu pai e ameaçá-lo. Acho que ele queria plantar provas.
JC – A senhora lembra da comoção que o fato causou, inclusive no enterro?
ISAÍRAS – Do necrotério, meus pais levaram o corpo à Igreja do Espinheiro e marcaram o enterro para o dia seguinte. Mas policiais apareceram no velório e queriam que a gente enterrasse meu irmão naquela noite, mesmo sendo proibido. Precisou que os padres e amigos intervissem para que não o levassem. Meus pais temiam que eles roubassem o corpo. Enquanto isso, dom Helder telefonava para todo mundo ir ao enterro, porque os jornais se recusavam, por ordem da repressão, a botar notas fúnebres. Mesmo assim, apareceu uma multidão no enterro, e durante o cortejo foram feitas ameaças, bateram nas pessoas e fizeram prisões. Em certo momento, os padres sugeriram que a gente cantasse o Hino Nacional, porque os policiais se perfilariam e parariam de ameaçar as pessoas. Mas o clima era tenso e quando chegamos ao cemitério os estudantes estavam tão agitados que dom Helder fez apenas um ato simbólico de despedida, com um lenço branco, e pediu que todos fossem embora calmamente para evitar mais confrontos.
JC – Depois disso tudo, como ficou a situação da sua família?
ISAÍRAS – Quando voltamos para casa, a polícia estava esperando, e na mesma hora levou meu pai preso. Ele foi interrogado por cinco horas, e só depois da intervenção de dom Helder o soltaram. Mas a partir dali acabou o sossego. Passamos a receber ameaças de morte, telefonemas dizendo que iriam matar meus pais. Tentaram sequestrar meu irmão caçula João Henrique, jogavam pedras nas janelas. Éramos doze filhos, e mamãe mandou alguns dos meus irmãos embora do Recife. Mas um deles, Adolfo, fazia curso de oficial e vivia sendo preso, acusado de subversivo. Ele terminou saindo da academia, e ainda assim prepararam um falso flagrante para ele, mas alguns repórteres avisaram e evitamos. Também mandaram gente nos dizer que a culpa da morte tinha sido de dom Helder, e até ofereceram uma casa no exterior e dinheiro, se deixássemos que eles plantassem documentos que incriminariam o arcebispo.
JC – A família resistiu a tudo, mas não conseguiu que punissem os culpados...
ISAÍRAS – Depois que nos recusamos a colaborar, tentaram mudar o motivo do assassinato para crime passional ou tráfico de drogas, mas nada deu certo. As pessoas sabiam o que tinha acontecido. O resultado é que três anos depois, em 1972, papai definhou e morreu de tristeza, diante da injustiça do caso. Já a minha mãe cresceu, ficou mais valente, foi estudar Direito, se formou em 1982, passou no exame da OAB e se dedicou exclusivamente ao caso do meu irmão. Ela brigou muito, mas faleceu em 2006 sem ver os culpados identificados.
JC – Como a senhora viu o resultado das investigações?
ISAÍRAS – Ninguém investigou de verdade. Quem estava investigando tinha envolvimento com o crime, ou então estava sendo pressionado, como a Comissão Judiciária. Ela tinha todos os detalhes, sabia da Rural do Dops utilizada naquela noite e quem estava de serviço. Por que não prendeu ninguém? Eles sabiam também da Risoleta Cavalcanti, a mulher que na véspera do crime foi procurar meu irmão dizendo que tinha um problema com o namorado, mas sequer conseguiu dizer o nome desse namorado. Ela pediu para voltar à noite e meu irmão, inocentemente, disse que estaria numa reunião de pais e filhos na casa de Mário Bittencourt, em Parnamirim. E foi onde o pegaram. Essa moça fez o mesmo com Cândido Pinto antes do atentado a ele. Rogério Matos (principal suspeito) também foi pronunciado e despronunciado. Ninguém pagou.
JC – Por que a família não agiu após o arquivamento do caso? Acha que agora é impossível apurar os fatos?
ISAÍRAS – O meu irmão foi vítima de sequestro e tortura. Esses dois crimes não prescrevem. Então, o caso pode ser reaberto a qualquer tempo. Mas não cabe à família pedir isso. Em 2006, a Comissão de Mortos e Desaparecidos do governo federal reconheceu o crime como um assassinato praticado pelo regime de exceção, e inclusive pagou a indenização à família. Se a Justiça sabe disso, por que não toma a iniciativa e reabre o caso? Uma promotora disse certa vez à minha mãe que ainda havia na Justiça pessoas na ativa que estiveram envolvidas no crime, mas não quis dizer quem. Só disse que por isso o caso não era reaberto. Acho que estão esperando todos os culpados morrerrem para reabrir as investigações.

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