quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

NÓS E A “REVOLUÇÃO” - Lucivânio Jatobá

FONTE: Crônica publicada no Grupo de Discussão Poetas Independentes, do Yahoo

NÓS E A “REVOLUÇÃO” (1)
Lucivânio Jatobá


A notícia da prisão de Valmir me chegou à tarde. Ia começar a aula de Mecânica Técnica, aquela aula chata, com vetores de forças, que formavam estranhos e incompreensíveis polígonos.
-Prenderam Valmir! Te manda! A barra pesou!
A informação e a ordem me deixaram atônito. Que fazer? Ir mesmo aonde? Avisar em casa que ia sumir? E minha mãe, como entenderia essa súbita saída?
Chovia lá fora. Fui lá ao lado do antigo Colégio Militar e observei o rio Capibaribe, que, indiferente à minha angústia, insistia em correr mansamente. Não tinha pressa em sua viagem à foz, onde encontraria o mar. Sentei-me num banco de cimento, enquanto tentava , desesperadamente, responder à questão que, aliás, já tinha sido colocada , no início do século, por Lênin: “Que Fazer”?
Que fazer? Esconder-me? Continuar como se tudo estivesse na mais perfeita ordem? Mas que havia feito para fugir? E a frase na cabeça: “Te manda”! “ A barra pesou”! E Valmir? Como estaria ele? Poxa, Valmir! Por que fizeram isso com ele? Onde estaria agora? Que fazer? “ A barra pesou!!!!” “ Te manda”!!!!
O rio continuava a correr manso.
Te manda! A barra pesou! Frases torturantes.... Mãos frias. Coração taquicárdico. Medo. Angústia... Te manda! Imagens! Gritos! Cenas de interrogatórios imaginários... Culpas! Arrependimentos. A barra pesou!
Que fazer? Como fazer? Ir aonde, mesmo? E os meus livros? Ainda estavam na sala do primeiro andar. E o artigo que havia escrito para o jornalzinho mimeografado do GENIP? Ele precisava sair. Eu prometera escrevê-lo.
Te manda! A barra pesou!
Voltei à sala. À porta estava o bedel. O informante. A ave de rapina... Mas e daí? O que ele sabia sobre a prisão? Seria aquela a última vez que estaria vendo a sala do terceiro ano de Mecânica? Os amigos, a Escola Técnica? "Cerimônia do adeus?"
Saí dali, já meio às pressas. Na entrada da Escola ,encontrei “Baby”, o nosso “Bom Burguês”. Baby, vendo a minha palidez, perguntou-me se eu estava doente... Relatei-lhe o meu “drama” e a prisão de Valmir.
Te manda! A barra pesou! Por que essas frases não me abandonavam?
Vendo que eu não tinha alternativa, ofereceu-me guarida. Na rua da Hora havia uma casa de sua família e que estava toda montada, inclusive com uma biblioteca excelente. Ficaria ali. Não hesitei!!!!! Só faltei beijar-lhe a mão.
E Valmir? O que estariam perguntando-lhe? Uma pessoa tão boa, tão meiga. Por que isso? Estaria apanhando? O que lhe perguntariam sobre mim? O que responderiam sob tanta pressão?
O rio pacientemente meandrava na planície recifense.
Chovia lá fora e a tarde começava a findar.

NÓS E A REVOLUÇÃO (2)
Lucivânio Jatobá

1968. Ano par, ano ímpar. Há quatro anos, um movimento militar havia trazido uma nova ordem ao País.
1967. Com muito sacrifício financeiro, minha mãe havia me matriculado no Colégio Carneiro Leão, que, sem que ela soubesse, era, então, conhecido como “colégio PP”, na gíria da rapaziada: “pagou , passou”!
Amaro era o seu nome. Professor hermético, um pouco baixo, de voz afável , mas culto e rígido. Ele e o prof.Alto Nadler , de inglês, eram os únicos, do Carneiro Leão, que os adolescentes inquietos e rebeldes respeitavam, e temiam, diga-se de passagem.
Com sua didática singular, o prof. Amaro disse, numa manhã qualquer de 1967:
- a aula de hoje abordará o maior evento histórico deste século, a Revolução Russa de 1917. Voltou-se para mim e fulminou-me com uma pergunta:
- sr. Jatobá, o senhor sabe o que foi essa Revolução? Fale aí para seus colegas.
Um frio tomou conta de meu estômago. As mãos tremiam. A ansiedade arruinou-me Fiquei menor diante de todos...! Mas ainda consegui, milagrosamente, dizer: não sei, professor!
Eloqüente, o mestre então passou a discorrer, pausadamente, sobre os antecedentes daquele fato histórico, os líderes, as causas e as conseqüências. Em surpreendente silêncio, a turma ouvia a narrativa. E na mente as imagens: operários nas ruas em passeatas; Pão , Terra e Liberdade palavras escritas nas faixas; tiros, prisões, os soldados do Czar, os sovietes, a Duma., os comícios, os bolchevistas...
A descrição do prof Amaro despertara em mim um interesse particular por uma figura específica da Revolução: Lenine, que o mestre insistia em pronunciar: Lênin. Voltei para casa com esse nome Lenine ou Lênin.
Não havia, naquele ano, retroprojetor, nem datashow que pudesse projetar a imagem ou fotografia daquele grande orador que, nas palavras do professor, “seduzia as massas populares... com as palavras”. Guardei aquele nome...
No ano de 1968, as livrarias, por uma certa abertura governamental, inundaram as prateleiras com livros de Lênin e Marx. Pude ver, assim, a fotografia do orador, “que seduzia as massas populares “, num livro que já não me recordo mais do seu título.
Entrei em fevereiro do ano ímpar na Escola Técnica Federal de Pernambuco para estudar Máquinas e Motores, mas acabei aglutinando-me à turma comunista do jornal “O Brado”, de brevíssima duração. A turma da Direita, como eram chamados os que não eram adeptos do “Socialismo”, logo transformou aquele pomposo título “O Brado” em Obrado. A cacofonia foi impiedosa. O jornal teve que mudar de nome, mas o grupo cresceu e incomodou, agora abrigado no jornalzinho, da geração mimeógrafo, " A Chama da Liberdade". Carbonária geração.
Ali, com uma forte timidez, conheci um novo mundo. E comecei a ler os textos de Lênin. Não imaginava que uma longa noite se avizinhava, momento propício para pesadelos sufocantes. Uma noite diferente, que parecia abortar um novo dia.



NÓS E A REVOLUÇÃO 3

Lucivânio Jatobá


No ano de 1968, graças a uma ajuda do prof. Itamar de Abreu , uma das pessoas mais humanas que conheci, foi possível matricular-me na Escola Técnica Federal de Pernambuco –ETFPE. Na época, era considerada uma escola técnica modelo e na qual o governo militar começava a investir bastante. Não havia praticamente vaga mais naquele final de janeiro. Vendo-me triste, o prof. Itamar disse-me baixinho:” não se desespere...,vamos ver se ainda há condições de matricular você.”
Saí, naquela manhã, matriculado na concorrida ETFPE. Um mundo novo me esperava , mas bem diferente daquele que aguardava Carlos, o menino de engenho , da obra de Zé Lins. A política entraria em mim, com unhas e dentes, naquele prédio do Derby. Um mundo de sonhos , mas de realidade cruel. O mundo das ideologias radicais.
O ano letivo mal começara, e, no dia 28 de março, um fato ocorrido, no Rio de Janeiro, emocionou o país. Um estudante paraense, natural de Belém, com apenas 17 anos, foi assassinado à bala no Restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, num confronto entre estudantes e policiais. Quase todos os jornais deram uma notinha, discretamente, na primeira página ou no miolo da edição. A morte daquele humilde jovem gerou uma onda de protestos no Rio de Janeiro, com repercussões nas grandes cidades..
Uns dois dias depois, li, no jornal Diário da Noite, que vi na biblioteca da escola, um artigo de Stanislaw Ponte Preta sobre o bárbaro assassinato. Artigo pequeno , mas contundente. Impressionei-me com o que li e lembrei das aulas do prof. Amaro. Vi a polícia do Czar avançando de encontro à multidão, de acordo com a descrição do mestre. E pensei nos tiros, na correria, no sangue manchando a rua.. Onde era aquele restaurante? Como era? Como foi a confusão?
Ao chegar em casa me deu uma vontade de escrever sobre aquele fato. Pensei numa redação para apresentar ao meu prof. de Português, o brilhante Clifford. Sentei-me à mesa e comecei a datilografar , com dois dedos, aquele que seria o meu primeiro artigo. Que título daria? O que gostaria de dizer? Onde publicá-lo Aí lembrei de uns rapazes que um mês antes apareceram na turma com um jornalzinho mimeografado : “ O Brado “. Era ali o lugar para divulgar aquilo que pensei, ingenuamente, tratar-se de uma “simples redação”.
Não imaginei que no futuro aquele artigo adolescente se voltaria contra mim.
Eis o que aquele menino de 16 anos, ainda meio matuto e tímido, escreveu:

“HOMENAGEM PÓSTUMA
( Mantive a pontuação e a ortografia originais. Fonte: A Chama, Ano I, nº 2, junho de 1968)

“ Seria uma injustiça, nosso jornal não lembrar a memória daquele jovem estudante morto pela polícia da Guanabara, quando participava de uma reunião, no restaurante Calabouço, onde eram discutidos: o aumento do preço das refeições, melhoria dos restaurantes e outros assuntos de interesse estudantil.
Edson chamava-se. Jovem de apenas 17 anos de idade, filho de família pobre, com irmãos menores...
POR QUE O MATARAM? QUE MAL TERIA FEITO? NÃO PODIA PROTESTAR? NÃO ESTAVA NUM PAÍS LIVRE?
Para cada pergunta , cada um tem em mente a resposta. Todos sabem que foi vítima da violência, da ignorância, da falta de humanidade e da incompreensão reinantes.
Como Edson, muitos serão mortos...
Estás morto, Edson, mas para nós, teus companheiros e irmãos, permaneces vivo na memória, como vítima herói.
Era mister te homenagear, com estas simples palavras, que traduzem nossa mágoa e ao mesmo tempo nossa revolta contra os crimes que vêm sendo praticados contra os estudantes, neste século de desenvolvimento, o que é lamentável”
Procurei um dos componentes do jornal, de nome Antoniel, que era bem mais velho que todos nós e tinha sido cassado da Aeronáutica, se não estou enganado. Conversei com ele sobre a possibilidade de publicar a “redação” no O Brado.
Ele me disse: no O Brado não porque os FDP passaram a chamar o jornal de OBRADO e quando a gente entra nas salas a turma grita logo: chegaram os “obrados”!!!! Olhem os obrados!!!!
Não pude conter uma risada, que o deixou meio sem jeito. Creio que ficou mesmo chateado comigo.
Levou os originais... Num dia de junho, de 1968, o nº 2 do novo jornal “A CHAMA” trazia , na segunda página , logo no início, o artigo” Homenagem Póstuma”. Embaixo o meu nome assim grafado: L. Jatobá de Oliveira.
Cheio de orgulho, mostrei a uns colegas da minha rua. Um deles, contudo, me disse, em tom aterrorizante: “estás fodido”!!!! Não consegui entender aquela frase. E tive vontade de rasgar A Chama em mil pedaços ou apagar dentro de mim aquela chama que começara a despontar.
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Essa crônica foi aqui publicada sem revisão. Optei por escrever o que me vinha à mente.

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