Dissertação de Mestrado: Sobre os Saberes Construídos no Processo de Socialização: Os Líderes do Movimento Estudantil da Ufmt-Cuiabá (POR SUELY DULCE DE CASTILHO)
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Sobre os Saberes Construídos no Processo de Socialização:
Os Líderes do Movimento Estudantil da Ufmt-Cuiabá
SUELY DULCE DE CASTILHO
Orientadora: Profª Drª Izumi Nozaki
Cuiabá/MT
2002
Suely Dulce de Castilho
Sobre os Saberes Construídos no Processo de Socialização:
Os Líderes do Movimento Estudantil da Ufmt-Cuiabá
Versão submetida à Banca de Qualificação no Programa Integrado de Pós-Graduação em Educação, do Instituto de Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Educação (Área de concentração Educação, Cultura e Sociedade; Grupo de Pesquisa Sociologia da Linguagem e Educação).
Orientadora: Profa. Dra. Izumi Nozaki
Cuiabá
2002
AGRADECIMENTOS
A professora Drª Eloísa Helena Santos, examinadora externa, por ter aceito o convite e pelas contribuições dispensadas a este estudo.
Ao professor Drº Domingo Pimienta Barquin, examinador interno, pelas observações e contribuições que fizeram com que a qualidade deste trabalho fosse melhorada.
À Professora orientadora Drª Izume Nozaki pela dedicação, disciplina e rigor acadêmico com que conduziu-me neste trabalho de pesquisa e por ter acreditado na minha possibilidade.
À Sr. Felismina Bernardina de Castilho, minha mãe, pela vida e pelos saberes de base que contribuíram fundamentalmente para eu ser o que sou.
Ao Jair Reck pela companhia e pelas contribuições dadas tanto antes como durante o meu ingresso no programa de mestrado.
Aos entrevistados pelos depoimentos cedidos, sem os quais este trabalho não teria sido realizado.
Aos colegas do mestrado, do trabalho, e amigos em geral pelo desejo de sucesso a mim dispensado.
Aos professores da Universidade Federal de Mato Grosso, do Instituto de Educação e Pós – graduação, pela oportunidade oferecida para que eu pudesse concluir mais esta etapa da minha formação acadêmica.
SUMÁRIO
Siglas e Abreviaturas ..................................................................................06
Abstract ........................................................................................................08
Resumo ........................................................................................................09
Capítulo I - O Problema..............................................................................11
Capítulo II – O Movimento Estudantil e sua Historicidade
1. O Movimento Estudantil a partir da UNE.......................................................................19
1.1 A luta estudantil pela reforma universitária.......................................................26
1.2 1968 – O ano que não terminou.........................................................................30
1.3 O Movimento Estudantil após a reabertura democrática...................................34
2. O Movimento Estudantil da UFMT – Cuiabá.................................................................36
2.1 A luta pela democratização da universidade......................................................38
2.2 O Movimento Estudantil em defesa do ensino público.....................................42
Capítulo III - Referencial teórico
1. Socialização e suas diversas abordagens.............................................................48
a) A Socialização e a psicologia de Piaget..............................................................48
b) Abordagem antropológica da Socialização.........................................................50
c) A Socialização como construção da realidade.....................................................53
2. Movimentos Sociais e o processo educativo...................................................................61
Capítulo IV - Considerações Metodológicas: O Fazer da Pesquisa
1. Os sujeitos.......................................................................................................................71
2. Os instrumentos...............................................................................................................75
3. Os procedimentos de coleta de dados..............................................................................76
4. Critérios de análise dos dados..........................................................................................76
Capítulo V – Resultados das análises dos dados
1. Sobre o ingresso dos sujeitos no ME...............................................................................78
2. Sobre os saberes construídos no processo de socialização no ME..................................81
a) Saberes construídos na socialização no ME como construção do Eu na relação com o Outro.........................................................................................................................83
b) Saberes construídos na socialização no ME enquanto processo de desenvolvimento da consciência do Eu em relação ao Outro..............................................88
c) Saberes construídos na socialização no ME enquanto Lócus de formação política..................................................................................................................................90
d) Saberes construídos na socialização no ME enquanto processo multi-interativo...............................................................................................................................94
3. Sobre os saberes transpostos.............................................................................................96
Capítulo VI - Considerações Finais............................................................105
Referências Bibliográficas...........................................................................112
SIGLAS E ABREVIATURAS
AAA-CCA - Associação Atlética Acadêmica – Centro de Ciências Agrárias
ADUFMT - Associação docente da Universidade Federal de Mato Grosso
ALN - Ação Libertadora Nacional
AME - Associação Mato-grossense de Estudantes
ASSUMT - Associação dos servidores da Universidade Federal de Mato Grosso
CA - Centro Acadêmico
CAART - Centro Acadêmico de Artes
CADI - Cento Acadêmico de Direito
CAECO - Centro Acadêmico de Economia
CAENF - Centro Acadêmico de Engenharia Florestal
CAHIS - Cento Acadêmico de História
CAMED - Centro Acadêmico de Medicina
CPBG - Centro Pedagógico de Barra dos Bugres
CCA - Centro de Ciências Agrárias
CCBS - Centro de Ciências Biológicas e Saúde
CCET - Centro de Ciências Exatas e Tecnológicas
CCS - Centro de Ciências Sociais
CEU - Casa Estudantil Universitária
CLCH - Centro de Letras e Ciências Humanas
CONSEPE - Conselho de Pesquisa e Extensão
CONSUNI - Conselho Universitário
CORECON-MT - Conselho Regional de Economia de Mato Grosso
CPC - Centro Popular de Cultura
CPR - Centro Pedagógico de Rondonópolis
DCE - Diretório Central de Estudantes
DU - Diretório Universitário
FAEC - Faculdade de Economia e Contabilidade
FLAMP - Festival Livre de Artes e Música Popular
FUFMT - Fundação Universidade Federal de Mato Grosso
ME - Movimento Estudantil
MEC - Ministério de Educação e Cultura
MR-8 - Movimento Revolucionário 8 de Abril
MUDES - Movimento Universitário para o Desenvolvimento Econômico e Social
OAB - Ordem dos Advogados do Brasil
ONG - Organização Não Governamental
PC do B - Partido Comunista do Brasil
PCB Partido - Comunista Brasileiro
PSDB - Partido Social Democrata Brasileiro
PT - Partido dos Trabalhadores
REMAP - Restaurante Estudantil Municipal
SINTUF - Sindicato dos Trabalhadores da Universidade Federal de Mato Grosso
SISPUMC -Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Cuiabá
SNRU - Seminário Nacional de Reforma Universitária
UEE - União Estadual Estudantil
UFMT - Universidade Federal de Mato Grosso
UNIC - Universidade de Cuiabá
UNE - União Nacional de Estudantes
VPR - Vanguarda Popular Revolucionária
ABSTRACT
The present study, which theme consisted in the knowledge constructed in the socialization process by the student movement leaders in the UFMT - Cuiabá, had as principal objective the understanding of the educational process developed by the movement and the verification of what the militant students acquired from this knowledge. The research involved student leaders who militated sequentially in the period of 1976 - first public demonstrations - to 1999 - beginning of this work. For that, initially, a historical profile of the students' actions was traced, followed by a theoretical recapitulation about Socialization and the Social Movements trying to characterize and understand the Student Movement
Methodologically, an investigation, in focus, is characterized as a qualitative research of exploratory stamp, whose principal data collect instrument was the interview. The data analysis showed that when participating in the Student Movement, the investigated subjects a) acquired countless knowledge which includes the acquisition of various abilities and competences, such as: making use of a language suitable to the moment, dealing with new situations, respecting differences, b) developed the sense of companionship, tolerance, dynamism, and above all c) appropriated themselves of the political and social world under a specific form which includes new representations, behaviours and practices.
The research, thus, permitted to infer that such knowledge built in the Student Movement, remained, in a certain way, rooted in the conscience of the majority of the subjects, so that, when they left the university and the Student Movement and entered the job market, they maintained their social attitudes, a critical vision and the desire to interfere in reality and in its transformation. This means to say that the investigated subjects extended their political participation in the Student Movement to political parties, syndicates, associations, NGOs, among others after their university life.
Key-words: Student Movement, Social Movements, Socialization, Non Formal Education.
RESUMO
O presente estudo que tem como tema os saberes construídos no processo de socialização pelos líderes do movimento estudantil da UFMT- Cuiabá, teve como principal objetivo compreender o processo educativo desenvolvido pelo movimento e verificar o que os militantes estudantis tomam para si desses saberes. A pesquisa envolveu lideranças estudantis que militaram seqüencialmente no período de 1976 -- primeiras manifestações -- até 1999 -- início da pesquisa. Para tanto, inicialmente foi traçado o perfil histórico das ações estudantis, seguido de uma recapitulação teórica acerca da Socialização e dos Movimentos Sociais, buscando caracterizar e compreender teoricamente o Movimento Estudantil.
Metodologicamente, a investigação, em foco, caracteriza-se como uma pesquisa qualitativa de cunho exploratório, cujo principal instrumento de coleta dos dados foi a entrevista. A análise dos dados mostrou que ao participar no ME, os sujeitos pesquisados a) adquiriram inúmeros saberes que compreendem a aquisição de várias habilidades e competências, tais como: fazer uso da linguagem apropriada ao momento, lidar com situações novas, respeitar as diferenças , b) desenvolveram o senso de companheirismo, tolerância, dinamismo e sobretudo, c) apropriaram-se do mundo político e social sob uma forma específica que compreende novas representações, comportamentos e práticas.
A pesquisa permitiu, assim, inferir que tais saberes construídos no ME ficaram, de certa forma, arraigados na consciência da maioria dos sujeitos, de maneira que estes, ao deixarem a universidade e o ME estudantil e ao entrarem para o mercado de trabalho, mantiveram suas posturas sociais, a visão crítica e o desejo de interferir na realidade e na sua transformação. Isto significa dizer que os sujeitos pesquisados prolongaram sua participação política do ME para os partidos políticos, sindicatos, associações, ONGs, entre outros, após a vida universitária.
Palavras chaves: Movimento Estudantil, Movimentos Sociais, Socialização , Educação não-formal.
CAPÍTULO I
O PROBLEMA
Os inúmeros momentos de transformação social que surgiram nas últimas décadas tiveram como principais articuladores, os jovens. Segundo Brandão (1999:06), isso se deve não apenas ao poder de mobilização destes, que não foi pequeno, mas, principalmente pela natureza das idéias que estes colocaram em circulação, pelo modo como as veicularam e pelo espaço de intervenção crítica que abriram.
No Brasil, principalmente a partir da década de 50, paralelamente aos movimentos culturais e sociais da juventude, irrompeu com muito ímpeto, o Movimento Estudantil nacional liderado pela UNE, que desencadeou inúmeras discussões, dentre elas, aquelas que representaram as lutas pela reforma universitária. No entanto, foi na década de 60 que o ME chegou ao auge dos protestos através dos quais se reivindicava o ensino público e gratuito a todos, a reforma universitária que democratizasse o ensino superior e melhorasse sua qualidade, maior participação nas decisões, mais verbas para pesquisa e solução para os inúmeros problemas econômicos e sociais do Brasil. Após o golpe militar em 1964, os estudantes passaram também a contestar ferrenhamente a ditadura imposta bem como o cerceamento às liberdades democráticas.
Contudo, com a instalação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), conhecido como “o golpe dentro do golpe”, o governo passou a ter direitos plenos, dentre os quais, cassar, torturar, prender, exilar e até matar aqueles que lhe fizessem oposição. Com isso, o ME foi desarticulado e os órgãos representativos estudantis fechados.
A partir de então, o ME enquanto UNE, só retomou seus trabalhos legalmente em 1979, com o início da reabertura democrática. Porém, o ME, em termos gerais, não voltou com a mesma força, com o mesmo poder de organização e mobilização de períodos anteriores à sua desmobilização, apesar da grande participação dos estudantes no movimento pelas “Diretas Já”, em 1984, e no Impeachment do ex-presidente Fernando Collor, em 1992.
Em termos locais, o ME da UFMT, passou a atuar mais sistematicamente a partir da criação do DCE, em 1979, período em que os Movimentos Sociais, no geral, assim como o ME nacional, encontravam-se desarticulados pelos aparatos da ditadura militar. No entanto, na década de 80, o ME local viveu um período intenso em termos de lutas e de produção política. Nesta época, os estudantes, liderados pelo DCE, combateram a ditadura militar e lutaram em favor da universidade pública, gratuita, democrática de qualidade, etc. Já na década de 90, o ME diminuiu o seu ímpeto, se limitando às mobilizações isoladas de alguns cursos.
Embora existam grupos no interior do ME, principalmente os que compõem a diretoria dos DCEs, que de certo modo, têm mantido incessante esforço para aglutinar os estudantes em torno das questões políticas, educacionais e gerais, através da realização de congressos, encontros, reuniões etc., o Movimento não tem conseguido ser visto, e nem ser reconhecido como um poder renovador, como fora em outros momentos históricos.
Dessa forma, durante a década de 90, tornou-se comum, o uso de expressões que denotam um certo pessimismo diante dos Movimentos Sociais e Estudantis. Gohn (1994:98) destaca, por exemplo, expressões do tipo “os Movimento Sociais estão em crise”, “há uma crise e uma apatia junto a grupos sociais que já foram organizados”, “a descrença e a desmobilização predominam e que a era da luta pela participação das pessoas em movimentos e em organização acabou”, “a nova onda é a da privacidade, do individualismo”, e “o coletivo, como solução para os problemas que afligem as pessoas, se não acabou, está em descrédito”.
Em termos específicos de ME, são vários os autores que tentam explicar esse estado de desmobilização. Segundo Brandão (1999), por exemplo, a ala estudantil apresenta-se em processo de desmobilização e desorganização por estar presa às divergências políticas internas como conseqüência, predominantemente, da segmentação político-partidária existente no interior do movimento que leva seus integrantes à uma disputa, entre si, pelo controle da entidade. Assim, os esforços, intrigas e emoções das lideranças são direcionados para um objetivo principal: ganhar a eleição e controlar a entidade. Segundo o autor, isto colabora para o distanciamento entre as lideranças e a massa estudantil que percebe que seus líderes têm outras preocupações que os estudantes, em geral, não consideram como seus: as forças políticas, o controle da entidade, e, às vezes, a promoção pessoal.
Na concepção de Mische (1996), o refluxo do ME, nas últimas décadas, é um reflexo das crises que perpassam o mundo contemporâneo, principalmente nos setores econômicos e políticos, causando a diminuição das oportunidades reais numa economia apertada pela angústia e pela perplexidade existencial. Estes fatores, segundo a autora, desviam a atenção do estudante para a defesa de sua própria sobrevivência, e acabam por se esquecer dos projetos de transformação social coletiva.
No entanto, neste momento em que se vivencia tal situação de desinteresse estudantil pela participação no ME, é interessante notar que todo ME tem, em si, um conjunto de elementos externos historicamente determinados que regulam o seu interior e, também, um conjunto de elementos internos que regulam o seu movimento. Neste contexto, pergunta-se: O que ocorre no sujeito quando se insere em um ME? Qual a importância da participação coletiva para a sociabilidade dos sujeitos?
Conforme Berger e Luckmann (1995:173), o indivíduo não nasce membro da sociedade, nasce com a predisposição para a sociabilidade e torna-se membro da sociedade. Segundo eles, na vida de cada indivíduo existe uma seqüência temporal na qual este é induzido a tomar parte na dialética da sociedade. O ponto inicial desse processo é a interiorização que é o mecanismo pelo qual o sujeito, primeiramente, passa a compreender seus semelhantes dotando de significado os processos subjetivos de outrem; em segundo lugar, quando apreende o mundo como realidade social dotado de sentido. Essa apreensão não resulta de criações autônomas de significados por indivíduos isolados, mas começa com o fato do indivíduo “assumir” o mundo no qual os outros já vivem.
Esse “assumir” o mundo, na concepção de Berger e Luckmann (1995:174), constitui um processo original para cada ser humano, pois a realidade social é percebida e reconstruída de modo diferente pelas pessoas e essas percepções e reconstruções do mundo real podem variar no decorrer do tempo e do espaço, levando o indivíduo a classificar, dividir e delimitar de diferentes maneiras a realidade da qual faz parte. Contudo, a realidade social, uma vez apreendida ou “assumida”, pode ser modificada de forma criadora.
Segundo Berger e Luckmann, o processo ontogenético pelo qual este grau de interiorização se realiza tornando o indivíduo um membro da sociedade é denominado de socialização e pode ser de dois tipos: primária e secundária.
A socialização primária, segundo Berger e Luckmann, é a primeira socialização que o indivíduo experimenta na infância, e em virtude da qual torna-se membro da sociedade. E segundo Tedesco (1995:100), a socialização primária transmite conteúdos cognitivos que variam de uma sociedade para outra, mas que compreendem fundamentalmente o aprendizado da linguagem, e por seu intermédio, o aprendizado de diversos esquemas motivacionais e interpretativos da realidade, assim como os rendimentos do aparato legitimador da validade desses esquemas. Esse aprendizado ocorre em condições peculiares que o diferenciam dos aprendizados posteriores pela presença de um grande componente afetivo e emocional, que outorga, a um aprendizado, uma sólida ancoragem na estrutura pessoal do sujeito. A presença desse fator afetivo faz com que as modificações dos conteúdos aprendidos durante a socialização primária sejam muito difíceis de serem realizadas, o que faz com que a eficácia dos aprendizados posteriores dependa, em grande parte, do seu ajuste com relação ao primário. A socialização primária, deste modo, permite que a criança interiorize o mundo das “outras”, mundo este que se apresenta como o único que existe e que se pode conceber.
Por outro lado, a socialização secundária é, segundo Berger e Luckman (1995:185), qualquer processo subseqüente que introduz o indivíduo já socializado em novos setores do mundo objetivo de sua sociedade. Segundo Tedesco (1995:101), a socialização secundária é um processo pelo qual os sujeitos interiorizam “submundos institucionais”, cuja maior ou menor complexidade deriva do grau alcançado pela estrutura social na divisão do trabalho. Cada “submundo institucional” supõe uma linguagem específica, esquemas de comportamento e de interpretação mais ou menos padronizados, bem como concepções particulares destinadas a legitimar as práticas sociais. A socialização secundária, portanto, não implica, necessariamente, cargas afetivas ou emocionais intensas e os agentes socializadores agem em função do seu papel e com alto grau de anonimato.
Conforme Tedesco (1995:101),
“O problema da socialização secundária reside precisamente no fato de ela agir sobre sujeitos já formados e no fato de todo aprendizado novo exigir certo grau de coerência com a estrutura básica do sujeito. Nesse sentido o processo de socialização secundária deve tentar reforçar continuamente essa coerência para garantir aprendizagens mais eficazes”.
Segundo Berger e Luckman (1995:187), os processos formais da socialização secundária são determinados pela suposição de um processo precedente de socialização primária, isto é, deve tratar com uma personalidade já formada e um mundo já interiorizado. Deste modo, sejam quais forem os novos conteúdos que devam ser interiorizados, precisam sobrepor-se a esta realidade já presente. Para tal é, portanto, necessário que haja uma coerência entre as interiorizações primárias e as novas.
Entendendo, deste modo, que a socialização primária ocorre na infância tendo como agente socializador a família e que a socialização secundária introduz o sujeito em novos setores da sociedade como a escola, trabalho, grupo de amigos, igreja, grupo políticos, etc., e que através dela os sujeitos interiorizam os “submundos institucionais” cada qual com sua linguagem específica, esquemas de comportamento e de interpretação mais ou menos padronizados, bem como concepções particulares destinadas a legitimar as práticas sociais, as perguntas que se levantam são: que “submundo institucional” é o Movimento Estudantil Universitário? Em que circunstâncias os sujeitos apropriam-se da linguagem, dos esquemas e das concepções inerentes a um Movimento Estudantil Universitário? De um modo geral, o que os sujeitos interiorizam durante o seu envolvimento em Movimentos Estudantis Universitários?
Ainda que os autores que tratam dos Movimentos Estudantis não a concebam como sendo uma socialização secundária por não se basearem nos autores que buscam a sua definição, estes entendem que todo Movimento Social, no qual se insere o Movimento Estudantil, tem seu caráter educativo, resultado da interação entre os sujeitos e a realidade sócio-política na qual se encontram inseridos. Segundo Gohn (1999), este tipo de educação não se restringe ao aprendizado de conteúdos específicos transmitidos através de técnicas e instrumentos do processo pedagógico, mas, na prática, esse processo educativo ocorre de diversas formas, em vários planos e dimensões que se articulam sem determinar nenhum grau de prioridade.
Resumidamente, Gohn identifica três dimensões no processo educativo de um Movimento Social:
a) dimensão organizativa política = através da qual os sujeitos adquirem conhecimentos relativos aos seus direitos e deveres na sociedade, tornam-se conscientes de sua situação de oprimidos ou excluídos de algum bem ou direito, apropriam-se de informações, desenvolvem conhecimentos sobre as engrenagens das instâncias que delegam poder, sobre os agentes que estão na gestão de determinado bem ou equipamento, sobre quais interesses encontram-se envolvidos, quem os apóia e quem são seus opositores;
b) dimensão da cultura política = através da qual os sujeitos aprendem a elaborar estratégias de conformismo e resistências, passividade e rebelião, segundo os agentes com os quais se defrontam;
c) dimensão espacial-temporal = através da qual os sujeitos resgatam os elementos da consciência fragmentada de parcela da população, ajudando-os na articulação para a construção de pontos de resistência contra a hegemonia dominante.
Dessa forma, entende-se que a partir do envolvimento em Movimentos Sociais ou Estudantis, os sujeitos apropriam-se da linguagem, esquemas e concepções institucionais, assim como adquirem diversos conhecimentos e saberes. Compreendendo que, segundo Lalande (1996:971-2), o termo conhecimento se difere radicalmente do termo saber, no sentido de que o primeiro trata do ato de conhecer, da coisa conhecida, à simples apresentação de um objeto, ao fato de o compreender, isto é, à simples familiaridade com o objeto conhecido, e o segundo, trata da relação do sujeito que pensa com um conteúdo objetivo do pensamento formulável numa proposição de que admite a verdade por razões intelectuais e comunicáveis que comporta conceitos e juízos, o presente trabalho tratará, daqui por diante, as diversas apropriações e construções dos sujeitos no interior de um Movimento Estudantil como saberes.
Nesta perspectiva, se entendemos que no processo de socialização secundária, os sujeitos apropriam-se de elementos dos “submundos institucionais” e que no seu envolvimento em Movimentos Sociais, em especial, nos Movimentos Estudantis, estes se apropriam de saberes diversos, o presente trabalho vem, assim, propor um estudo do “submundo institucional” do Movimento Estudantil Universitário da Universidade Federal de Mato Grosso, campus de Cuiabá, para compreender o que os sujeitos, ao se envolverem neste tipo de Movimento, aprendem ou apropriam. Considerando ainda que se a socialização secundária reside precisamente no fato de ela agir sobre sujeitos já formados e no fato de todo aprendizado novo exigir certo grau de coerência com a estrutura básica do sujeito, busca entender se os sujeitos que se engajam em Movimentos Estudantis Universitários têm suas razões em consonância com a sua socialização primária. Considerando, também, que se certos saberes adquiridos e estratégias elaboradas são interiorizados no processo de socialização secundária, também busca identificar que saberes apropriados ou interiorizados em um determinado “submundo institucional” podem ser transportados pelos sujeitos quando estes passam de um “submundo” para outro. Em outras palavras, que saberes adquiridos podem ser transportados, por exemplo, quando o estudante deixa o “submundo universitário” e se insere em outro “submundo institucional?”
O presente estudo estabeleceu, deste modo, como seu objetivo geral, compreender que saberes são construídos pelos estudantes que participam do ME da UFMT – Cuiabá. E em termos de objetivos específicos, buscou-se: a) identificar o que os líderes estudantis realizam durante a sua vivência no interior do Movimento Estudantil; b)verificar se os saberes apropriados encontram-se ou não em consonância com as socializações anteriores ao ME; c) levantar que saberes os estudantes constroem durante a sua vivência dentro do Movimento enquanto líder estudantil, e d) verificar se e como os estudantes realizam a transferência dos saberes construídos dentro de um Movimento Estudantil para o seu meio profissional e político-social após a vida universitária.
Para identificar o que os estudantes realizam durante sua vivência no interior do ME, foram analisados documentos oriundos dos diversos setores da instituição; e para compreender sobre os saberes construídos no interior do ME Universitário, foram entrevistados oito ex-líderes do Diretório Central dos Estudantes (DCE), órgão considerado de maior representação Estudantil da UFMT, que atuaram entre o período de 1976 e 1999. O estudo buscou analisar as informações fornecidas pelos ex-líderes do Diretório por entender que estes são os estudantes da Universidade mais envolvidos com o próprio Movimento e se encontram fortemente engajados em suas atividades práticas e intelectuais.
Com base nos objetivos do estudo, o presente trabalho foi desenvolvido e seus resultados encontram-se organizados por meio de cinco capítulos. Deste modo, o Capítulo I apresenta o problema do estudo, os objetivos e a organização do seu conteúdo.
O Capítulo II trata de descrever, em termos gerais, o desenvolvimento histórico do Movimento Estudantil, isto é, a sua organização e suas ações em nível nacional, e em termos específicos, a organização e as ações do Movimento Estudantil na UFMT. Desta forma, o presente capítulo busca compreender que tipo de “submundo institucional” é o Movimento Estudantil Universitário e que tipo de “submundo institucional” é o Movimento Estudantil Universitário da UFMT.
O Capítulo III trata da fundamentação teórica do estudo, sendo que na primeira parte, encontra-se uma discussão sobre o que se entende por Socialização de acordo com as várias abordagens, e na segunda parte, uma discussão teórica a respeito do que seja o Movimento Social, enquanto socialização secundária, e o seu caráter educativo, com vistas a compreender o que se tem veiculado como sendo aspectos educativos dos Movimentos Estudantis.
O Capítulo IV refere-se à descrição do processo metodológico que orienta esta pesquisa, e encontra-se estruturado da seguinte forma: 1) os sujeitos envolvidos, 2) os instrumentos, 3) os procedimentos de coleta de dados, e 4) os critérios de análise.
O Capítulo V trata da descrição e análise dos dados obtidos através da entrevista buscando compreender que saberes os sujeitos constróem durante o seu envolvimento no Movimento Estudantil da UFMT e quais saberes interiorizados durante o envolvimento no Movimento Estudantil da UFMT são transportados para outros processos de socialização secundária. Tais como para a atividade profissional e para outras participações político-social.
E finalmente, o Capítulo VI denominado de Considerações Finais, busca realizar reflexões acerca dos resultados obtidos.
CAPÍTULO II
O MOVIMENTO ESTUDANTIL E SUA HISTORICIDADE
Neste segundo capítulo, o foco encontra-se sobre a história do ME em âmbito nacional, representado pela UNE -- órgão de representação máxima que congrega todas as organizações estudantis brasileiras -- e do ME da UFMT -- parte integrante da UNE. Cabe ressaltar que falar do ME da UFMT exige necessariamente referência à UNE, uma vez que suas lutas encontram-se indissociáveis.
Entendendo-se que a contestação estudantil não se realiza à margem dos momentos históricos de crise da sociedade brasileira ou em determinados acontecimentos pontuais, buscou-se, com o intuito de melhor compreender os seus fenômenos particulares, situar as lutas estudantis dentro do contexto geral mais amplo de onde estes emergem e para o qual estes voltam.
O presente capítulo, deste modo, busca mostrar a atuação estudantil entendida como um processo de socialização política do jovem, no qual ocorre a relação entre o socializado (estudante) e os múltiplos agentes socializadores, entendendo a atuação política como “o locus de atuação do homem, onde ele forma a si mesmo e molda as circunstâncias objetivas que o cercam”, tomando de empréstimo a definição de Demo (1996).
1 - Movimento Estudantil a partir da UNE
Ainda que de forma circunstancial, os estudantes brasileiros estiveram presentes nas lutas sociais desde o século XVIII. Por volta de 1827, estes participaram do episódio da Inconfidência Mineira e, no século XIX, lutaram pela criação de Universidades no Brasil. Na fase regencial, os estudantes tiveram participação na Revolução da Farroupilha no Rio Grande do Sul e na Sabinada, na Bahia. A partir de 1834, os estudantes engajaram-se na luta pela abolição da escravatura e pela proclamação da República. Na Primeira República, destaca-se a participação na rebelião de Canudos, e em 1901, na manifestação a favor do voto secreto, porém, segundo Poerner (1979), devido à falta de uma organização unitária nacional que desse um caráter de permanência à militância política dos estudantes, bem como à ausência de plataformas de lutas que a mantivessem, tornaram dispersas e caóticas a atuação política dos universitários brasileiros nesse período. Dessa forma, nenhuma dessas organizações conseguiu fugir da transitoriedade, bem como da regionalidade.
Somente em 11 de agosto de 1937, foi fundada, na reunião do primeiro Conselho Nacional dos Estudantes promovida pela casa estudantil brasileira do Rio de Janeiro, a UNE (União Nacional dos Estudantes), como símbolo e entidade unificadora das lutas estudantis brasileiras. A partir de então, os estudantes deram continuidade às mobilizações, de forma mais sistematizada, em defesa da educação pública gratuita e de qualidade, em solidariedade às lutas operárias, aos direitos humanos, contra a ditadura militar e a favor da democracia.
Por meio da UNE, foram nascendo outras organizações estudantis por todo país, por exemplo, as Uniões Estaduais de Estudantes (UEEs), Diretórios Centrais de Estudantes (DCEs) e os Centros Acadêmicos (CAs). Juntas, essas organizações desempenharam um papel distinto na história brasileira.
No primeiro Congresso Nacional dos Estudantes, realizado em 1937, fizeram-se presentes representantes de vários Estados. De início, foi aprovada uma proposta do DCE de Minas Gerais, proibindo expressamente a discussão de temas políticos durante o encontro. No entanto, no segundo Congresso, ao contrário do que aconteceu no primeiro, as discussões tomaram um rumo cada vez mais político. Nestas, emergiram elevadas preocupações com os problemas nacionais e educacionais, tais como com a reforma dos objetivos gerais do sistema educacional brasileiro, no sentido da unidade e da continuidade; como a reforma universitária; organização extracurricular; solução para o problema econômico dos estudantes e outras questões como o analfabetismo, o ensino rural e a implantação da usina siderúrgica nacional.
Apesar do autoritarismo de Getúlio Vargas e de sua clara simpatia pelo nazi-facismo, a UNE nasceu alinhada às forças populares antiimperialistas, embora não pudesse registrar um caráter propriamente antigovernamental porque a mesma era vinculada, por decreto, ao Ministério da Educação. Apesar disso, a primeira diretoria eleita no Congresso de 1938 defendia firmemente a intervenção estudantil na realidade do país. Como afirma Martins Filho (1987):
“Com a criação da UNE, os estudantes, organizados em torno de sua entidade, preocupam-se agora em interpretar o pensamento não apenas da categoria estudantil, mas assumem reivindicações trabalhistas e integram-se em lutas sucessivas pela declaração ao nazi-facismo e pela redemocratização do país.”
Porém, nos primeiros 17 anos de vida, a UNE não pôde se estruturar rapidamente nem levar em frente suas amplas reivindicações em função do baixo nível de politização dos estudantes, do domínio do movimento pela direita, dos rumos políticos e econômicos do país nas mãos de um governo contrário à qualquer manifestação democrática e de abertura. Existem, contudo, registros de manifestações ocorridas nesse período, como a de 1945, aproximadamente no final da II Guerra mundial, quando a UNE lançou, no Rio de Janeiro, a semana pró-anistia, contra o Estado Novo, o que desencadeou outros movimentos dessa espécie em todo o país.
Todavia, o rompimento entre estudantes e o então presidente Getúlio Vargas, deu-se em 5 de março de 1945, durante uma campanha desencadeada pelos estudantes a favor da democratização do país, na qual estes sofreram violenta repressão que culminou com a morte de um dos estudantes. Este fato lançou os colegas de todo o país contra o Estado Novo, e conforme Poerner (1979:176), a partir de então, deu-se início o movimento anti-getulista, e com ele, a repressão policial. A UNE mobilizou, então, estudantes, políticos e trabalhadores para frustrar a chamada ‘união nacional’ em torno do presidente.
Em 1947, houve, como fato de grande importância, a mobilização estudantil em defesa do monopólio estatal do petróleo e a luta pela Petrobrás, sob o título de “O Petróleo é Nosso”. E em 1956, no governo de Juscelino K. de Oliveira, sob o comando da esquerda, a UNE, fugindo do controle do MEC, partiu para a mobilização dos estudantes em torno de uma plataforma política nacionalista contra o capital estrangeiro e os acordos Brasil-EUA.
No período de 1956-1960, a UNE organizou, dentre outros movimentos, a greve contra o aumento do preço das passagens de bonde, em maio de 1956; a campanha contra a American Can, empresa norte americana que ameaçava destruir a indústria brasileira de lataria, em 1957, e manifestações contra o acordo de Roboré, em 1958, o qual envolvia a aplicação de recursos da Petrobrás no Altiplano da Bolívia para atender os interesses da empresa estrangeira Gulf.
Em 1957, a UNE promoveu também o I Seminário Nacional de Reforma do Ensino em Salvador, e a partir desse evento, os estudantes engajaram-se na campanha em defesa da escola pública e nas discussões em torno da Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional.
Após a Segunda Guerra Mundial, nos anos 1950-1960, foram realizadas grandes manifestações de jovens no mundo inteiro, e no Brasil, principalmente nos anos 60, uma grande efervescência alcançou os movimentos de juventude. Neste período, a crítica social à família, ao individualismo, ao tecnicismo e à guerra foram as principais bandeiras de luta defendidas pelos jovens.
O Movimento Estudantil, por sua vez, promoveu grandes ondas de protestos em grandes proporções de forma que tornou-se um potencial mobilizador para além da massa estudantil, ganhando a adesão de diversos setores da sociedade civil tais como de intelectuais, trabalhadores, artistas, religiosos e populares.
Nesse contexto efervescente, além das passeatas, outras formas de protestos foram criadas. Manifestavam-se por meio do comportamento, da linguagem, das formas de vestir, de cortar os cabelos, etc. Com isso, os jovens não só procuraram negar os valores da sociedade vigente, como também tentaram criar e vivenciar um estilo de vida alternativo e coletivo contra o comunismo, a industrialização indiscriminada, o preconceito racial, as guerras, as potências colonialistas, entre outros.
Os jovens protestaram, ainda, por meio de projetos culturais como shows, festivais de música popular, manifestos, além do que, nos momentos mais radicais, invadiram universidades, seqüestram embaixadores estrangeiros e alguns grupos partiram para a luta armada. Entre esses grupos destacam-se a Ação Libertadora Nacional (ALN), liderada pelo ex-deputado e ex-membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) Carlos Mariguella, e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), comandada pelo ex-capitão do Exército Carlos Lamarca.
Na época, conforme Ridenti et al (1999:58), a contestação radical contra a ordem estabelecida foi difundida também socialmente no cinema, no teatro, na música popular, na literatura e nas artes plásticas. Assim, artistas de diferentes expressões culturais manifestaram seus protestos face às diferentes repressões sofridas pela sociedade brasileira através da arte.
Como parte do projeto de contestação estudantil, surgiu no Rio de Janeiro, em 1961, o CPC (Centro Popular de Cultura), órgão ligado à UNE que tinha por objetivo definir estratégias para a construção de uma cultura nacional, popular e democrática de esquerda. Segundo Brandão (1990), atraindo jovens intelectuais, os CPCs, organizados em todo o país, trataram de desenvolver uma cultura conscientizadora junto às classes populares por meio de um novo tipo de artistas, os “revolucionários e conseqüentes”. Estes, utilizando-se da arte como instrumento a serviço da revolução social, promoveram shows, festivais de música popular e manifestos, cujos temas colocavam, em questão, o Brasil oficial. Desta forma, estes incentivavam a crítica e despertavam o espírito de contestação e rebeldia.
Nesse rico contexto, a UNE promoveu, em Salvador, em maio de 1961, no governo de Jânio Quadros, o primeiro de uma série de Seminários Nacionais de Reforma Universitária, a partir do qual foi elaborado um documento denominado Declaração da Bahia, no qual os estudantes discutiam vários temas de âmbito político, social e educacional tais como programas e currículos, sistemas de aprovação, administração da universidade, autonomia e funcionamento da universidade, mercado de trabalho, etc., fazendo uma análise crítica da universidade no contexto brasileiro.
Em 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros renunciou ao cargo de presidente da República e os ministros militares se mobilizaram para impedir a posse do então vice-presidente João Goulart. Com esse episódio, a UNE decretou greve geral dos estudantes em favor da posse de João Goulart e deslocou sua diretoria para o Rio Grande do Sul, centro da resistência legalista liderado por Leonel Brizola.
Como conseqüência, a sede da UNE, no Rio de Janeiro, foi fechada pela polícia sob ordens do governador Carlos Lacerda. Indignados, os estudantes publicaram notas de repúdio nos jornais, denunciaram as pressões sofridas e manifestaram seu apoio contundente à legalidade da posse de João Goulart e contra o regime antidemocrático que ameaçava se instalar no Brasil. Essa crise foi contornada com a aprovação do parlamentarismo no Brasil, e nessas condições, foi permitida a posse de João Goulart, o qual permaneceu no governo até o golpe militar definitivo em 1964.
Durante o governo de Goulart, a UNE permaneceu atenta aos acontecimentos políticos nacionais, e durante a implantação do parlamentarismo, denunciou a existência de um golpe branco, manifestou seu apoio ao governo e cobrou seriedade, trabalho e empenho na transformação do país.
No dia 31 de março de 1964, os grupos nacionalistas e progressistas, entre os quais, os estudantes, foram surpreendidos com o golpe, e o então presidente da entidade, José Serra, pediu asilo à embaixada do Chile para escapar da repressão policial militar desencadeada contra toda a liderança do Movimento Estudantil. Contudo, mesmo sob essa forte repressão, a UNE permaneceu coerente com a posição assumida desde o início, saiu às ruas no dia 1º de abril para manifestar contra o golpe, pela legalidade e pela liberdade democrática e decretou greve geral dos estudantes em todo o território nacional. A despeito de todo o empenho, nada impediu o golpe que já havia se imposto. Assim, o presidente Goulart foi derrubado e no dia 02 de abril foi empossado Raniere Mazzilli no seu lugar.
Com o governo golpista instalado no poder, vários líderes reformistas deixaram o país e centenas de pessoas foram presas, dentre elas, muitos estudantes. A UNE teve seu prédio incendiado e os documentos do CPC destruídos. E desde então, a UNE passou a sofrer toda sorte de perseguição uma vez que estudantes e governo passaram a ter relações extremamente conflituosas. Ser estudante passou, a partir de então, a significar ser subversivo, e assim sendo, toda sorte de violência passou a ser-lhe imposta. Conforme Poerner (1979:220),
“... valia tudo: suspender, expulsar, prender, e torturar estudantes; demitir professores; invadir faculdades; intervir, policialmente, nas entidades; proibir qualquer tipo de reunião ou assembléia estudantil; acabar com a participação discente nos órgãos colegiados da administração universitária; decretar ilegalidade da UNE, das organizações dos Estudantes e dos Diretórios Acadêmicos; destruir a Universidade de Brasília; deter, enfim, o processo de renovação em nosso país ...”
Em 13 de abril de 1964, a Universidade de Brasília (UnB) sofreu intervenção decretada pelo governo e foi fechada. Pelo mesmo decreto, foi extinto o Conselho Diretor da Universidade. O reitor, vice-reitor e muitos professores foram destituídos de seus cargos, sendo alguns presos, e outros, exilados, e posteriormente, substituídos.
No segundo período de 1965, ao retornarem às aulas, os estudantes de Brasília deflagraram uma greve em protesto ao regime vigente e pediram a volta dos colegas e professores expulsos da UnB. Essa atitude estudantil teve conseqüências imediatas como torturas, violências, prisões e espancamentos.
Porém, as manifestações não cessaram, e nem a violência que passou a ocorrer mais acirradamente quando o governo institucionalizou a repressão contra os estudantes através da Lei no 4.464, de 9 de novembro de 1964, conhecida como a Lei Suplicy de Lacerda, a qual extinguiu a UNE e as organizações estudantis estaduais, permanecendo apenas as locais. Essa decisão, segundo Sanfelice (1985:81), cerceou em muitos aspectos, a liberdade de livre associação e organização interna do ME, vedando aos órgãos estudantis quaisquer manifestações ou propaganda de caráter político partidário.
Ainda na gestão do Ministro da Educação Suplicy, em 23 de agosto de 1965, foi realizado o acordo entre Brasil e a United States Agency for International Development, denominado MEC-USAID[1]. Com a definição do acordo, começaram novas passeatas de protestos e denúncias sobre os perigos dessa intervenção estrangeira na educação brasileira.
No ano seguinte, ocorreram grandes passeatas estudantis contra a Lei Suplicy, contra o Acordo MEC-USAID, contra o governo ditatorial e seus aparatos repressivos; foram decretadas greves contra as anuidades impostas; foram invadidos restaurantes universitários que, posteriormente, foram fechados por ordem do governo; enfim, os estudantes tentaram, de toda forma, reivindicar o direito de manifestação e de liberdade. Quanto mais as manifestações eram violentamente reprimidas, o movimento obtinha repercussão por todo o país, inclusive no exterior; e foi deste modo que o ME ganhou o apoio de outros setores da sociedade, ainda que indiretamente.
O mês de setembro de 1966 é hoje lembrado como um dos meses mais intensos, agitados e heróicos do ME brasileiro. Nesse mês, os estudantes enfrentaram os cassetetes dos policiais, as prisões, as bombas de gás, assim como a criação do Movimento Universitário para o Desenvolvimento Econômico e Social (MUDES) pelo Marechal Castelo Branco, através do qual ministros aconselhavam os estudantes, ao invés de lutarem pelas universidades, engajarem-se de corpo e alma a esse movimento. Contrariamente, os estudantes estenderam suas manifestações a todos os pontos do país, decretando, por exemplo, a greve do dia 18 de setembro de 1966, em todas as escolas e faculdades, com o objetivo de protestar contra a repressão policial e exigir a libertação de todos os estudantes presos nas últimas manifestações.
O ápice dessa mobilização deu-se no dia 22 de setembro, consagrado como o Dia de Luta Contra a Ditadura, tendo como lema “Povo Organizado Derruba a Ditadura”. Essa manifestação culminou com uma violenta repressão policial que ficou conhecida na história como ‘o massacre da Praia Vermelha”, em razão da forma brutal com que a polícia reprimiu a manifestação. A partir deste fato, até meados de 1968, os estudantes mantiveram-se afastados do cenário nacional.
No ano 1967, a UNE encontrava-se, ainda, legalmente extinta, porém, parte dos estudantes mantinha-se empolgada com a idéia da luta armada. Alguns, mesmo na clandestinidade, procuravam rearticular e organizar o ME. A Lei Suplicy continuava vigorando; prisões, espancamentos e processos judiciais prosseguiam contra estudantes; as universidades permaneciam em estado caótico, e cada vez piores, tendo em vista que o governo reduzira ainda mais as verbas destinadas à educação. Nesse contexto, os estudantes tinham razões suficientes para continuar suas rebeliões, passeatas de protesto e greves.
1.1 - A luta estudantil pela reforma universitária
As greves estudantis dos anos de 1960 deram início às denúncias sobre a crise pela qual passavam as universidades brasileiras e despertaram o ME para as graves falhas no sistema de ensino nacional como conseqüência da crise generalizada que abrangia o país nesse período.
Deu-se início, a partir de então, no Movimento Estudantil, intensos debates e discussões em torno da necessidade inevitável de reformas na universidade. Com esse propósito, foi realizado o I Seminário Nacional de Reforma Universitária (I SNRU), em maio de 1961, em Salvador, onde foi elaborado um documento denominado “Declaração da Bahia” o qual abordou basicamente três temas: a) a realidade brasileira; b) a universidade no Brasil, e c) a reforma universitária. Esse documento continha amplas análises sobre cada um dos temas, com base no qual, os estudantes esboçaram diretrizes e sugestões para uma mudança satisfatória. Segundo Fávero (1995:35), esse documento foi um dos primeiros textos programáticos dos estudantes destinados à reforma universitária.
No primeiro tema, “A Realidade Brasileira”, o documento defendia que, para se propor a formulação de uma reforma universitária, era, de fundamental importância, a realização de uma análise da situação das universidades dentro do processo histórico da nação. Por esse prisma, o documento esboçava uma análise crítica da realidade sócio-econômica brasileira, ressaltando as desigualdades econômicas regionais, sobretudo entre as regiões sul e nordeste; denunciava o Brasil como nação capitalista com uma infra-estrutura agrária, de base latifundiária, dependente econômica e financeiramente de potências estrangeiras e com insuficiente padrão de vida. Foram, ainda, apontadas algumas contradições fundamentais no processo de desenvolvimento brasileiro como o desequilíbrio regional, o estado oligárquico e classista. O documento revelava também, haver coincidência entre os detentores do poder econômico e os titulares do poder político.
Na busca de formas para intervir sobre tal realidade, o I Seminário Nacional de Reforma Universitária apresentou as seguintes diretrizes: a) promoção do desenvolvimento, entendido como reformulação total da estrutura sócio-econômica do país, por meio da criação de uma sólida infra-estrutura de indústrias básicas, desenvolvimento do sistema de transportes, reforma agrária e a eliminação das disparidades regionais, e b) promoção da classe operária, tanto urbana, quanto rural, por meio da eliminação da exploração do trabalho humano, da participação efetiva dos operários nos órgãos governamentais; da criação de condições para o desenvolvimento das organizações proletárias; ausência de qualquer tipo de coação política e econômica e principalmente policial sobre o movimento operário-camponês; e rejeição total do projeto de Diretrizes e Bases da Educação em tramitação no Senado porque o projeto, em nenhum momento, atendia aos pontos fundamentais da realidade brasileira, tais como o desenvolvimento econômico, a democratização do ensino, o planejamento global da educação, a erradicação do analfabetismo e outros aspectos estruturais (UNE, in Fávero, 1994).
Sobre a realidade política nacional, o documento afirmava que esta encontrava-se sob um regime político falido que ludibriava o povo com o estandarte de democracia e de liberdade, quando, em verdade, este não possuía qualquer um desses dois princípios.
Na Declaração da Bahia, especificamente no segundo tema -- “A Universidade Brasileira”--, pode-se observar inúmeras críticas a universidade nas quais ela é vista como superestrutura de uma sociedade alienada e estratificada quanto à distribuição de benefícios econômicos e sociais. Segundo o documento, a universidade, se constituía em um privilégio econômico de poucos e, dentro do processo discriminatório do ensino brasileiro, ela se situava no topo. Para os estudantes, a universidade era falha, ainda, em sua missão cultural, profissional e social. Cultural porque não chegava a ser repertório da cultura nacional e não tinha iniciativa de pesquisa tanto científica quanto cultural e artística, alimentando-se de esquemas importados invariavelmente inadequados à realidade. Profissional, por não formar profissionais competentes e tampouco proporcionar à profissionais, a formação adequada às necessidades nacional e regional. Social, por não assumir seu papel de liderança social e por formar profissionais individualistas, mantenedores da ideologia do status quo e pelo caráter antidemocrático dos critérios estabelecidos para o acesso ao ensino superior (UNE, in Fávero, 1994).
Quanto ao terceiro tema -- “A Reforma Universitária” --, no documento encontram-se algumas diretrizes para sua reforma, tais como lutar pela democratização do ensino proporcionando a todos condições de acesso em todos os graus e abrir a universidade para o povo através da criação de cursos acessíveis a todos, como de alfabetização de adultos, de mestre de obras, de líderes sindicais, entre outros. Propunha, ainda, uma universidade que estivesse a serviço das classes desvalidas, através da criação de escritórios de assistência judiciária, médica, odontológica e técnica, entre outros; fazer da universidade uma trincheira de defesa das reivindicações populares, pela atuação política da classe universitária na defesa de reivindicações operárias, participando de gestões junto aos poderes públicos e possibilitando a cobertura aos movimentos de massa.
Dando continuidade aos debates, o documento abordava outros aspectos da universidade, dentre os quais, alguns já foram garantidos através de conquistas, enquanto outros, ainda continuam, até hoje, sendo objeto de discussão, tais como: a) quanto ao corpo docente: foram apontadas sérias críticas aos professores que, salvas raras exceções, ministravam aulas excessivamente teóricas e acadêmicas, que desconheciam métodos pedagógicos ou utilizavam aqueles já ultrapassados, que não valorizavam devidamente a pesquisa, estavam desatualizados, não consideravam a inter-relação das diversas matérias, tornando o ensino inorgânico e dispersivo, exerciam diversas atividades quase sempre condicionadas pelo baixo nível salarial; b) quanto ao sistema de horário integral de ensino: que fosse fixada uma remuneração mais justa aos professores e que fosse criado um eficiente sistema de assistência ao estudante; c) quanto à participação dos discentes, docentes e profissionais em todos os órgãos técnico-administrativos da universidade: garantir o direito à voz e ao voto, e o critério de proporcionalidade; d) não reeleição de diretores e reitores por mais de um período; e) maior autonomia administrativa, didática e financeira a ser obtida pela transformação das universidades em autarquias e fundações; f) ampliação do número de vagas nas escolas públicas, especialmente nas técnicas; g) programas e currículos articulados com a realidade nacional e coordenados por equipes regionais, e h) abolição do sistema arcaico de reprovação vigente, composto unicamente de exames e provas.
Como se pode perceber, no documento “A Declaração da Bahia”, os estudantes fizeram análises e reflexões profundas sobre a realidade brasileira e a realidade universitária e apresentaram propostas para uma transformação ampla, com um caráter de “uma revolução”. Estes acreditaram poder mudar os rumos da educação, da política e da sociedade, embora não tivessem condições materiais e nem políticas para concretização de reivindicações de tal amplitude. Neste sentido, Foracchi (1965:294) afirma que “os limites sociais da ação estudantil, embora sejam evidentes e concretos, quanto ao seu poder restritivo, não interferem, como se nota, na elaboração das intenções que a conduzem”.
Durante todo o ano de 1962, foram realizados vários encontros estudantis para discutir a questão da reforma universitária e seu contexto social e político, sendo de maior relevância a realização do II Seminário de Reforma Universitária, em Curitiba, entre 17 a 24 de março de 1962, do qual resultou um documento denominado “Carta do Paraná”. Nesse seminário, foram retomados alguns pontos de discussão do I SNRU, principalmente, aqueles relacionados aos problemas da universidade como sua inserção na realidade brasileira; sua função cultural; sua conotação política, ideológica e social, e sua relação com as regiões geo-econômicas e as influências que sobre elas exercem. E mais ainda, concluíram que o problema de reforma universitária exigia uma mudança estrutural, sendo necessária a participação do povo, por ser esse um problema popular.
A partir dessa compreensão, a UNE traçou um esquema tático de luta que envolvia a conscientização da massa, enfatizando a necessidade da união operário-estudantil-camponesa. O método utilizado pelos estudantes para alcançar o povo chamou-se, na época, de UNE-volante, que consistia na organização de uma caravana composta por líderes estudantis e membros do CPC que viajavam pelo interior do país divulgando as proposições surgidas durante o II SNRU e abrindo amplo processo de discussões em torno das resoluções, principalmente, em torno da proposta de participação de ⅓ dos estudantes nos órgãos colegiados.
No início de 1963, a UNE realizou, no Estado do Paraná, o III Seminário Nacional de Reforma Universitária, o qual seguiu, em termos gerais, as mesmas orientações do II SNRU. Em julho do mesmo ano, foi realizado o XXVI Congresso, no qual foi eleito, para a presidência da UNE, José Serra. Dando continuidade às lutas pela reforma universitária, nesta gestão, foi feito um importante documento-estudo, dirigido principalmente às lideranças estudantis, o qual procurava avaliar e redimensionar o processo das lutas em torno da efetivação das reformas universitárias. No documento, os estudantes fizeram uma análise apreciativa e avaliativa dos três seminários nacionais até então realizados e das atividades históricas do Movimento Estudantil. A decisão mais importante que resultou dessa análise foi a de encaminhar ao Congresso Nacional, um projeto de Emenda à Constituição e um projeto de alteração da Lei de Diretrizes e Bases, nos quais eram consubstanciados os pontos fundamentais da luta estudantil pela Reforma Universitária.
Segundo Sanfelice (1986:48), essa orientação tentada pela UNE, em fins de 1963, foi o último grande esforço da UNE em torno da Reforma Universitária antes do golpe político de 1964. Isto porque o país já vivia, na época, um momento de radicalização, e devido a isto, muitos professores e intelectuais mobilizavam-se desenvolvendo programas de educação popular, alfabetização de adultos e educação de base, em função da perspectiva difundida de que a revolução estava por acontecer. Nos meios estudantis, a mobilização estava dividida, sob a orientação de diferentes organizações políticas, religiosas e outras com prioridade de ação divergente.
1.2 - 1968 - O ano que não terminou
O ano de 1968 representou para o Movimento Estudantil, um momento histórico de significativa importância. Há autores que o definem como o ano de todos os desejos ou como o ano que não terminou, devido aos muitos sonhos de transformação que foram perseguidos. Nesse ano, quase o mundo inteiro foi sacudido por uma onda “rebelde” de amplitude nunca vista em outro momento da história.
Segundo Garcia et al (1999:8), muitos dos que viveram intensamente o ano de 1968, sobretudo seus protagonistas, acreditavam estar assistindo ao início de um novo ciclo revolucionário mundial, mais radical do que os anteriores, posto que naquele momento estaria sendo feita uma “revolução na revolução”.
Dessa forma, o movimento de 1968, representado principalmente pela juventude das escolas e universidades situadas em diferentes pontos geográficos, englobou peculiaridades e tendências políticas diversas, porém, conforme afirmam Henri Weber et al (1999:21), surpreendentemente, no meio das singularidades, havia semelhanças quanto às reivindicações e em suas formas de manifestação, nas quais se podia ver “as mesmas palavras de ordens, as mesmas formas de ação, as mesmas bandeiras vermelhas e negras e os mesmos textos”.
Essa unidade, dentro de tanta diversidade, segundo Weber (1999:22), deveu-se à combinação de três grandes aspirações. A primeira referia-se à grande aspiração democrática e libertária. Segundo o autor, o movimento de 68 foi dirigido contra todas as formas autoritárias de poder, em todas as instituições como escola, universidade, família, casamento, empresas, enfim, em todas as organizações e, principalmente, na sociedade política. Na época, rejeitava-se a toda forma de poder baseada na força, na coação e na tradição; aspirava-se o direito de participação a todos; procurava-se combater todo tipo de discriminação desde a social entre categorias e classes sociais, e também, entre sexo, idade, tendência sexual. Em síntese, foi um grande movimento democrático, libertário, igualitário, que exigiu mais direitos individuais e coletivos, mais e novas liberdades.
A segunda referia-se à aspiração hedonista, e também comunitária: aspirava-se pelo direito ao prazer, à liberação do desejo, que consiste em dizer “Não há mal em querer fazer o bem”. Portanto, este era um movimento dirigido contra o puritanismo repressivo das sociedades ainda muito marcada pela moral tradicional, resultante de um mundo rural e de culturas católica, protestante, judaica, que reprimem e culpabilizam o desejo.
A terceira tratava-se de uma aspiração romântica e messiânica, isto é, a ilusão da utopia da sociedade perfeita. Uma aspiração de sair da pré-história e do reino das necessidades e entrar no reino da liberdade, por meio de uma revolução que permitiria o ajuste de contas.
O movimento de 1968, no Brasil, sofreu influências das manifestações mundiais como também teve suas peculiaridades, como as reivindicações por ensino público, gratuito e de boa qualidade a todos, contestação à ditadura militar implantada com o golpe de 64 e ao cerceamento às liberdades democráticas.
A essas aspirações políticas presentes no movimento brasileiro, incorporaram-se outras que traduziam as utopias daquela juventude que emergia com muita força e com muito sonho de transformação social. Portanto, a luta e o confronto político de 1968 foram apenas alguns dos aspectos.
No Brasil, o confronto político de 1968, já havia começado no início dos anos 60 e se intensificado com o golpe militar de 1964. Porém, as grandes mobilizações estudantis de 1968 irromperam, de fato, a partir de 28 de março, quando militares invadiram o restaurante estudantil Calabouço, no Rio de Janeiro, para reprimir uma manifestação estudantil e assassinaram Edson Luís de Lima Souto, um jovem de apenas 17 anos. Segundo Martins Filho (1996:15), este foi o primeiro estudante brasileiro assassinado pela ditadura.
A crueldade da polícia e da política que permitiu tal fato chocou o país. Durante o velório, estiveram presentes aproximadamente vinte mil pessoas. Segundo Sirkis (1988:62), pela primeira vez, notava-se uma forte presença de não estudantes em protestos. Eram pessoas de todas as classes sociais, idades e diferentes créditos religiosos.
Na trajetória do enterro, estudantes se revezavam nos discursos e palavras de ordem e eram aplaudidos. Segundo Martins Filho (1996:17), cerca de 50 mil pessoas seguiram o cortejo fúnebre, enquanto outras milhares saudavam das calçadas. A cidade parou, e solidarizaram-se com o caso, os sindicatos de trabalhadores, associações de profissionais de classe média, políticos da oposição e membros da igreja católica.
A partir da morte desse estudante, surgiram inúmeras manifestações nas principais capitais brasileira. No dia primeiro de abril de 1968, por ocasião do quarto aniversário da ditadura militar, os estudantes foram às ruas, em várias partes do país, para protestar contra a ditadura e a morte do estudante. Houve confronto entre os estudantes e a polícia, fato que resultou na morte de outro estudante e de um escriturário e vários populares e policiais feridos.
Em junho, o Movimento Estudantil ganhou as ruas novamente culminando com a generalização de greves e ocupação de faculdades. Na ocasião, os estudantes passaram a revidar as violências policiais com paus e pedradas e lograram adesões populares às suas manifestações. No dia 19 de junho, precisamente, durante os comícios-relâmpagos que os estudantes realizavam em vários pontos da cidade do Rio de Janeiro, mais de cem pessoas foram presas. As mesmas cenas se repetiram no dia 21 do mesmo mês, resultando em quatro mortes, muitos feridos e presos. Esse dia ficou conhecido na história como a “Sexta-feira Sangrenta”.
Os muros da cidade foram pichados com frases contra a ditadura e com reivindicações do tipo “Liberdade”, “Mais pão, menos canhão”, “Povo unido derruba a ditadura”, “Ditadura assassina”, “Guevara!”. O número de participantes nas passeatas aumentava gradativamente, chegando, algumas vezes, a somar cem mil pessoas, como, por exemplo, na“Passeata dos Cem Mil” ocorrida no dia 26 de julho. Alguns dias depois, ocorreu a passeata dos cinqüenta mil, quando, segundo Sirkis (1996:23), os estudantes iniciaram a propagar e convidar o povo para a luta armada cujo o slogan oficial passou a ser “Só o povo armado derruba a ditadura!”.
O último acontecimento de relevância na história do ME, em 1968, foi a tentativa de realização do 30º Congresso da UNE, na cidade de Ibiúna, no Estado de São Paulo, que não ocorreu porque a polícia descobriu o local e cerca de 800 estudantes foram presos, incluindo-se os principais líderes.
Em 13 de dezembro, o governo militar decretou o Ato Institucional n.º 5 (AI-5), conhecido como o “golpe dentro do golpe”. A partir de então, instalou-se o terror oficial. O congresso nacional e as assembléias legislativas estaduais foram fechados e o governo passou a ter amplos poderes para legislar por meio de decretos, cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos dos cidadãos, julgar crimes políticos em tribunais militares, demitir ou aposentar juízes e outros funcionários públicos, suspender garantias como o habeas corpus, além do que, rígida censura passou a ser imposta a qualquer manifestação de pensamento contrária ao governo.
Sob esse decreto, muitos líderes e inúmeros estudantes, intelectuais e políticos foram presos, cassados, torturados, exilados e mortos. O ME enquanto UNE calou-se, então, e apenas alguns grupos permaneceram mobilizados clandestinamente enquanto outros partiram para a luta armada.
Dessa forma, o ME foi derrotado na guerra contra a ditadura, porém, protagonizou profundas mudanças cultural, social e de costumes. Como afirmaram Zuenir Ventura et al (1999:134):
“Afinal, aqueles jovens que pretendiam fazer a “grande Revolução” acabaram derrotados politicamente, mas vitoriosos culturalmente, suas pequenas revoluções nos costumes e no comportamento, na arte e no sexo se fazem sentir até hoje. Por isso e para isso, saíram às ruas, apanharam da polícia, foram torturados, morreram e se exilaram. Não lhes faltaram paixão, desejo, generosidade, fraternidade e entrega à causa pública. Poucos jovens na história lutaram tão radicalmente por um projeto e uma utopia – de cultura, de vida e de país.”
Embora não tenham sido encontradas bibliografias que revelassem, de forma sistemática, a atuação do Movimento Estudantil no período entre 1969 a 1979, sabe-se que, neste período, ocorreram algumas manifestações regionais isoladas e de pequenas ou médias expressões em diversos Estados do país. Sabe-se que a partir de 1976, ocorreram alguns encontros com a finalidade de se discutir a reconstrução da UNE, e que em 1979, dez anos depois, o Movimento Estudantil, enquanto UNE, buscou reorganizar-se a partir da realização do XXXI Congresso, em Salvador, no Estado da Bahia.
1.3 - Movimento Estudantil após o início da reabertura democrática – 1979
Nos bastidores do poder, no dia 15 de março de 1979, o general João Batista Figueiredo foi empossado como presidente da República prometendo a abertura política através da revogação dos decretos 477 e 228 e dos artigos da Lei 5.540 que regulamentavam as organizações estudantis, devolvendo-lhes, desta forma, a sua legalidade.
Os estudantes, por sua vez, formavam comissões em defesa da UNE e intensificavam seus trabalhos e negociações com o intuito de tornar viável a realização do tão sonhado XXXI Congresso de Reconstrução da UNE. Contactaram-se parlamentares e o Ministro da Educação na busca de reconhecimento, apoio político e material, ao que, segundo Romagnole & Gonçalves (1979), responderam: “o governador não apóia e nem proíbe a realização do encontro nacional”.
Embora em condições de infra-estrutura precárias e com muitos problemas de organização, finalmente, foi realizado o XXXI Congresso, no Centro de Convenções da Bahia, em 29 de maio de 1979. Assim, o sonho da reconstrução da UNE tornou-se realidade.
Minutos antes da abertura do congresso, segundo Romagnoli & Gonçalves (1979), dez mil vozes gritavam em uníssono: “A UNE somos nós, nossa força, nossa voz”. Além de estudantes, estavam presentes, representantes de diversos segmentos da sociedade. A emoção tomava conta de todos, indistintamente, porque afinal era a União Nacional dos Estudantes que estava se reerguendo, como a Fênix que ressurgia das cinzas.
Imagina-se que todos os militantes presentes quisessem falar, porém, a abertura do congresso ficara sob a responsabilidade do ex-presidente da UNE, José Serra, que, conforme Romagnoli & Gonçalves (1979:46), assim pronunciou em seu discurso:
"Em nome dos estudantes que construíram a UNE, na luta contra o fascismo e a ditadura do Estado Novo". Em nome dos estudantes de minha geração (...) que lutaram por um futuro de dignidade humana, de igualdade social e de democracia para o povo brasileiro. Em nome da UNE que presidi e que foi devastada e incendiada pelas forças da repressão, como baluarte que era de resistência democrática e antigolpista. Em nome dos estudantes que durante esses 15 anos de prepotência, arbítrio e violência repressiva souberam manter viva a chama da resistência e do protesto. Em nome daqueles que, nesta dura caminhada, foram expulsos de suas escolas, exilados, presos e torturados. Em nome dos estudantes que foram mortos, companheiros de ideal democrático que legaram a todos nós o protesto mudo e generoso dos seus corpos mutilados. Em nome de todos nós, estudantes de ontem e de hoje, de todos nós que lutamos para livrar a Nação das amarras destes 15 anos de regime ditatorial. Declaro aberto o XXXI Congresso Nacional dos Estudantes”.
Em seguida, foram lidas várias moções de apoio enviadas por ex-presidentes e ex-vice-presidentes da UNE que se encontravam exilados. E assim, o evento prosseguiu com seus costumeiros debates, gritarias, negociações e conchavos.
Durante o evento, não foram realizadas análises profundas relacionadas à realidade brasileira nem da própria universidade, o que marcou a diferença desse encontro em relação aos últimos congressos. As principais propostas para discussão apresentadas foram as relacionadas à diretoria da UNE, à anistia e à constituinte. Contudo, a UNE foi recriada, seus estatutos e carta de princípios definidos e sua diretoria, embora provisória, foi eleita. ( Romagnoli & Gonçalves, 1979).
Nesse momento histórico, o país se encontrava diante de uma crise econômica e social, o povo encontrava-se descontente, e se organizava. O Movimento Democrático Brasileiro (MDB), um partido de oposição ganhava força política e a filiação de novos políticos de esquerda que venciam as eleições em diversos Estados. Diante de tal situação, em 1979, o presidente Figueiredo decretou a anistia, que, embora não fosse “ampla, geral e irrestrita”, representava um início da democracia na vida dos brasileiros.
A mobilização por parte de diferentes grupos sociais em torno da abertura democrática “ampla, geral e irrestrita” culminou com as campanhas pelas “Diretas Já”, em 1984, com manifestações políticas de amplitude histórica no país, nas quais, praticamente, o Brasil inteiro participou. A imprensa, por exemplo, principalmente a televisão, que sempre se mantivera aliada ao regime vigente, neste contexto, foi forçada pela opinião pública a divulgar as grandes manifestações. A presença estudantil foi marcante, principalmente nas manifestações de rua.
Após as “Diretas Já”, o ME ressurgiu, com grande ímpeto, durante as campanhas em defesa do impeachment do presidente Fernando Collor, em 1992. Este foi um momento histórico em que o brasileiro viveu a impunidade, a imoralidade e a desonestidade, agravado por uma crise econômica marcada pela recessão e pelo desemprego.
Essa grave situação, aliada à corrupção no mais alto escalão do aparelho estatal, tendo como centro, o Presidente da República, provocaram a indignação do povo e o ressurgimento do movimento estudantil protagonizado pelos “caras-pintadas”. Nesse contexto, diferentes grupos sociais, articulados por organizações estudantis e sindicais, organizaram passeatas em quase todos os Estados brasileiros.
Porém, o ME vivenciou, em 1992, a sua última participação de massa, com grande expressão nacional, passando, a partir de então, a desenvolver apenas manifestações de caráter regional e local, como as que aconteceram na UFMT.
2- O Movimento Estudantil da UFMT - Cuiabá
A Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) foi criada após uma intensa luta da comunidade e dos estudantes secundaristas pela implantação do ensino superior no Estado de Mato Grosso. Embora já funcionassem no Estado, com algumas interrupções, o curso de direito, desde 1934, e o Instituto de Ciências e Letras, desde 1966, somente em 1970, esses cursos foram fundidos e transferidos para o campus do Coxipó, dando origem à UFMT.
A criação da UFMT dependeu, contudo, além do desejo da comunidade, também de uma decisão geopolítica do governo militar para povoar a região de fronteira e catalizar o desenvolvimento da Amazônia mato-grossense. Foi visando detectar os problemas regionais existentes e de trazê-los à tona para resolvê-los que a UFMT foi criada e recebeu o título de UNISELVA.
Porém, a UFMT já se encontrava em crise desde a sua fundação, crise esta originária da política econômica neoliberal dos últimos vinte anos que afetava todas as universidades públicas brasileiras. Cortes de verbas se sucederam, impedindo o desenvolvimento técnico-científico e cultural das universidades, acarretando a paralisação de pesquisas, evasão de docentes, deteriorização acadêmica e, conseqüentemente, decadência no nível de ensino e dos serviços prestados à comunidade. Neste contexto, nos últimos anos, o governo tem proposto emendas de autonomia financeira para as universidades, ao que professores e estudantes têm se manifestado contrários por entenderem que são todas medidas privatizadoras.
É neste cenário que o ME da UFMT surgiu, buscando unir as lutas para a transformação da universidade, pela melhoria de ensino, pela sua democratização, de forma a tornar-se capaz de superar a crise, redimensionar seu papel social ao lado da população e garantir o ensino público, gratuito de qualidade.
Foi exatamente a partir de 1976, mais sistematicamente a partir da criação do DCE, em 1979, que os estudantes da UFMT passaram a empreender suas lutas, não só pelas causas estritamente estudantis, como também pelas que se referem ao país e ao mundo. Em momentos pontuais, manifestaram-se solidários com as lutas de outras categorias, e em outros momentos, solidarizaram-se com os movimentos sociais, contra os crimes ambientais, os problemas da mineração, com as questões da Amazônia, pela reforma agrária, e por salários justos.
Em termos políticos, os estudantes da UFMT defenderam a anistia geral e irrestrita, repudiando a política parcial do governo. E mais tarde, engajaram-se na campanha pela constituinte livre, democrática e soberana e tiveram presença marcante nas “Diretas Já”, em 1984, e em 1992, no impeachment do presidente Collor.
No âmbito universitário, destacaram-se as intensas lutas pela democratização da universidade, pela melhoria da qualidade de ensino, das condições estruturais e materiais, pela construção da casa estudantil, do hospital-escola, das fazendas experimentais, de laboratórios, pela contratação de professores qualificados, etc.
A diretoria do DCE-UFMT, varia em seus aspectos organozacionais, porém basicamente é composta por 32 membros distribuídos entre sete coordenações que são: coordenação geral, coordenação de administração, coordenação de finanças, coordenação de imprensa, coordenação de esportes, coordenação de ensino, pesquisa e extensão e coordenação de cultura. O programa de atividades de cada gestão é construído depois de amplos debates entre os membros da diretoria e a comunidade estudantil. Na maioria das vezes, os estudantes recebem assessoria por parte de líderes de Partidos políticos e de outros Movimentos Sociais, buscando montar o seu programa de acordo com as necessidades da conjuntura política, educacional e geral do momento, englobando, em seu conteúdo, desde programas culturais e esportivos até reivindicações e manifestações dos mais variados gêneros e amplitude.
2.1 - A luta pela democratização da Universidade
A história da UFMT está intimamente ligada à situação de arbítrio e autoritarismo que envolveu, de modo assustador, a sociedade brasileira nos 16 anos de ditadura. Filha do autoritarismo, ela cresceu e se afirmou como uma universidade alinhada às políticas do governo militar. Apesar da anistia em 1979, com a qual se deu início à reabertura democrática, durante toda a década de 80, os princípios da ditadura militar imperaram no governo nacional, no Estado de Mato Grosso, assim como na direção da universidade.
Nesse contexto, os estudantes da UFMT reivindicaram, com freqüência, a democratização da universidade em seus diferentes setores, e estes, em conjunto com professores e funcionários, promoveram discussões propositadas no interior da Universidade.
Nos diversos manifestos escritos pelos vários Centros Acadêmicos da Universidade, na época, encontram-se evidências de que estudantes, professores e funcionários sofreram as conseqüências de ações repressivas ditatoriais. Em um dos documentos (DU-UFMT, 1979), por exemplo, se é possível encontrar a denúncia feita pelo DU e pelo presidente do Centro Acadêmico de Direito sobre um bárbaro espancamento e tortura de um aluno dentro do campus da UFMT. Constam dos escritos que as agressões eram acompanhadas de expressões do tipo “Isto é para você se calar!.” e “Você está falando demais!”. Diante do ocorrido, lê-se que os estudantes manifestaram-se através de mobilizações e notas de repúdio, exigindo providências imediatas por parte da administração superior da UFMT, bem como do departamento do curso de Direito, de modo que os fatos fossem apurados e os torturadores fossem punidos.
Outro exemplo de indícios de repressão pode ser encontrado em um manifesto elaborado pelos estudantes de História (CAHIS-UFMT, 1980), através do qual denunciavam a arbitrariedade da política universitária pelos atos repressivos praticados contra dois professores demitidos sem outra justificativa, senão porque estes tinham uma maior visão crítica da situação e se posicionavam contra as arbitrariedades existentes na universidade.
Denúncias desse tipo foram encontradas em diversos documentos, os quais deixam claro que os estudantes da UFMT, assim como os de outros Estados, também sofreram com a violência imposta pela ditadura.
Neste contexto, os estudantes empreenderam intensas mobilizações a favor da democratização: a democratização da universidade, a descentralização do poder na instituição, a adequação da universidade à realidade local, a escolha por eleições diretas dos seus dirigentes não só para o reitor, mas também para os coordenadores de centros e chefias de departamento; reconhecimento dos Centros Acadêmicos, tendo em vista que até o ano de 1982, estes não possuíam registro e nem mesmo eram reconhecidos legalmente pela Universidade; participação de ⅓ de estudantes nos órgãos colegiados e a questão do ensino público e gratuito entre outros (Jornal Paralelo11, DCE-UFMT, setembro 1982).
Para o DCE, o ponto de partida para a democratização da universidade era a participação dos alunos, de forma efetiva e responsável, em todas as instâncias de decisão da Universidade colocando fim ao autoritarismo e contribuindo com novas idéias que viessem a colocar o ensino, a pesquisa, e a extensão a serviço da população.
Nessa perspectiva, no ano de 1983, vários cursos se mobilizaram, sendo que no dia 23 de agosto, ocorreu a maior mobilização quando os alunos do curso de Serviço Social, com presença de 90% na assembléia geral, decidiram dar início à uma greve para reivindicar a validade de eleições diretas e paritárias para chefia e subchefia de departamento do curso, tendo em vista que o coordenador e o vice-coordenador do Centro de Ciências Sociais, eleitos pela absoluta maioria de professores, funcionários e alunos, não haviam sido empossados.
No dia 30 de agosto, o DCE deflagrou uma greve geral pela democratização da Universidade, pela participação de estudantes nas decisões da UFMT, pelo ensino público e gratuito e em apoio às reivindicações do curso de Serviço Social. Em face disto, a reitoria decretou 15 dias de recesso, ato este que foi entendido pelos líderes estudantis, como de arbitrariedade e de autoritarismo. Os estudantes, em resposta, denunciaram as ameaças que tanto eles, como os professores e funcionários passaram a sofrer.
Mesmo sob ameaças e com aulas suspensas, os estudantes, sob o comando do DCE, continuaram se reunindo e promovendo debates sobre a universidade, bem como realizando plantões dentro do campus. No dia 31 de agosto, a administração da universidade autorizou o retorno às aulas, porém, os estudantes decidiram continuar em greve, agora, em defesa das reivindicações já citadas e em repúdio ao ato arbitrário de suspensão das aulas decretada pela reitoria.
Até o final de 1983, contudo, conforme consta do documento intitulado Paralelo 11 (novembro de 1983), várias vitórias significativas já tinham sido alcançadas, tais como: participação de estudantes no CONSEPE e CONSUNI, em ambos com representatividade de ⅓ em eleição direta, o reconhecimento dos CAs e do DCE e sobretudo o compromisso da Universidade de realizar, com estudantes, professores e funcionários, um fórum de debate e seminários sobre a Universidade com a finalidade de reformular a estrutura administrativa, a área de ensino, pesquisa e extensão, bem como discutir estatutos, finalidades e funcionamento da Universidade.
No primeiro semestre de 1984, os estudantes se engajaram na campanha pelas “Diretas Já”, motivados pelos debates e mobilizações iniciadas em âmbito nacional e em vários setores da sociedade. Nesse sentido, o DCE criou, em março do mesmo ano, um comitê Pró-Diretas na FUFMT composto pelo DCE, ADUFMT e ASSUMT, o qual foi responsável pelo lançamento de uma campanha intitulada “Diretas urgente: de reitor a presidente”.
O final de 1984 e início de 1985, na UFMT, foi um período de grande importância para os estudantes, pois estes conquistaram o direito de eleger os membros a todos os cargos da administração superior, da coordenação de Centro e chefias de departamento.
No segundo semestre de 1985, o DCE aglutinou os estudantes em torno das antigas reivindicações estudantis, tais como a democratização da Universidade, porque entendiam que algumas decisões ainda eram tomadas arbitrariamente e os espaços de participação democrática ainda continuavam sendo restritos, pois os servidores não tinham direito à participação, os estudantes participavam com apenas 1\5 de sua totalidade, e os professores não tinham uma definição concreta quanto à sua participação.
Num evidente repúdio ao ato governamental e com a finalidade de questionar o quadro político da época, a censura no meio estudantil e na sociedade em geral, o DCE, o Centro Acadêmico de Economia e o Centro Acadêmico de Direito decidiram, no dia 21 de maio de 1986, exibir o filme Je Vous Salue Marie, proibido em todo território nacional. Na ocasião, estavam presentes cerca de 300 estudantes, contando com a grande maioria dos estudantes do Centro de Ciências Sociais (CCS). (Carta Aberta a Comunidade Universitária, DCE-UFMT e Jornal O Estado de Mato Grosso, novembro de 1986). Entretanto, 20 minutos após o início da projeção, a Polícia Federal e a Polícia Militar invadiram o Campus universitário, armados de cassetetes e metralhadoras, alegando que os estudantes não possuíam autorização para a apresentação do referido material. Em seguida, os policiais tentaram apreender a fita, o televisor e o aparelho de vídeo-cassete, e prender os estudantes que operavam os equipamentos. Neste momento, o presidente do DCE, Hélder Molina, foi agredido fisicamente, ao que os estudantes reagiram gritando “Fora! Fora!”, “Abaixo a repressão!”, e assim fazendo, conseguiram expulsar os policiais do Campus e prosseguirem a exibição do filme.
No dia seguinte, os estudantes protestaram contra a invasão policial, espalhando cartazes pela universidade, contendo mensagens do tipo “Abaixo a censura”, “Cadê a democracia na Nova República?”. Várias moções de repúdio foram elaboradas e uma grande manifestação pública foi organizada para pedir o fim das leis repressivas e autoritárias que ainda vigoravam na Nova República, como a Lei da Censura, a Lei de Greve, Lei de Imprensa e a Lei de Segurança Nacional, entre outras.
No ano de 1988, conforme consta do documento do DCE-UFMT, datado de setembro de 1988, foi deflagrado o processo eleitoral para os novos dirigentes da UFMT, quando, então, o DCE reivindicou o direito de participar não apenas da eleição para reitor, mas de todo o processo eletivo. Em busca de suas intenções, realizou assembléias gerais para debater a elaboração e a definição dos critérios norteadores do processo eleitoral. Uma vez tendo conquistado o que almejavam, os estudantes comemoraram e iniciaram um novo manifesto em defesa da posse do reitor eleito por voto da maioria, tendo em vista que, em vários Estados, a nomeação era feita tomando-se como base a indicação do governo, por vezes, desrespeitando a vontade dos votantes.
No início da década de 90, estava, em pauta, a discussão sobre as estatuintes municipais e estaduais. A de Mato Grosso estava em fase de elaboração, e o DCE procurava participar ativamente da plenária das entidades populares como também da comissão organizadora da estatuinte da UFMT que tinha como objetivo aglutinar a comunidade universitária para a elaboração do seu estatuto.
O engajamento dos estudantes para a elaboração da estatuinte foi a última grande participação estudantil na UFMT, embora durante a década de 90, foi possível observar ainda alguns movimentos dos estudantes, sendo estes, de um modo geral, em resposta à algumas ações anti-democráticas ocorridas no interior da universidade.
2.2 - O movimento estudantil em defesa do ensino público
Além da luta pela democratização ampla, geral e irrestrita do país e da universidade, o ME da UFMT, desde antes da criação do DCE, em 1978, tem se engajado também na luta pela qualidade de ensino. Esta luta pela reforma universitária, pela educação pública de qualidade e ao alcance de todos, não é uma luta isolada dos estudantes da UFMT. Mas, estudantes de todo Brasil têm assumido esta bandeira de luta desde o ano de 1938, e esta tem se mantido até os dias de hoje.
A Universidade Federal de Mato Grosso, como uma universidade jovem, criada em 1970, apresentou nos primeiros anos de funcionamento sérios problemas, entre os quais, a falta de estrutura física para o funcionamento da maioria dos cursos, carência de professores, falta de laboratórios, biblioteca mal abastecida e com acervo ultrapassado, falta de um hospital-escola e de uma fazenda experimental, currículos fora da realidade local, etc.
Essa situação aparece aliada diretamente à política recessiva do MEC e à crise econômica pela qual passa o Brasil. Nesse contexto, a educação tem sido uma das áreas mais atingidas com cortes de verbas, principalmente, quando se trata das universidades públicas. Em busca de melhorias nas condições de ensino, inúmeras mobilizações estudantis foram acionadas. O primeiro movimento foi realizado em outubro de 1978, pelos alunos do curso de Geologia, que perdurou durante uma semana.
De 1978 em diante, vários cursos da universidade paralisaram suas atividades por falta de condições de funcionamento, ora por falta de estrutura técnica, ora por falta de professores. Algumas greves chegaram a durar um semestre inteiro. Em 1980, por exemplo, os estudantes do curso de Geologia estiveram paralisados durante 109 dias, exigindo o reconhecimento definitivo do curso pelo MEC, mais livros na área de ensino e de pesquisa, professores capacitados, criação de laboratórios e mais verbas para as pesquisas. Segundo o Jornal Brecha (CEMATEGE-UFMT, agosto 1980), essa greve teve grande repercussão no Estado, tendo sido divulgada por vários órgãos da imprensa.
Em primeiro de setembro de 1982, o DCE encaminhou uma pauta de reivindicações (cf. Pauta de reivindicação, DCE-UFMT, 1982) à reitoria exigindo, entre outros pontos, uma biblioteca aberta aos sábados e domingos, a garantia de aulas práticas para os cursos do Centro de Ciências Agrárias e do Centro Tecnológico, transporte para o deslocamento até a fazenda experimental, a construção do Centro de Letras e Ciências Humanas (CLCH), a construção e aquisição de equipamentos para o hospital-escola, melhorias nos laboratórios, abertura imediata do RU e preços mais acessíveis; melhoria na realização de estágios em todos os níveis, etc.
No dia 23 de setembro do mesmo ano, os estudantes da UFMT realizaram uma grande manifestação firmada pela UNE, em todos os Estados Brasileiros, como o dia Nacional de Luta pela Universidade, para o qual os estudantes mato-grossenses convocaram a ADUFMT, ASSUNT, AOB, partidos políticos e a administração da UFMT, para que juntos, assumissem o compromisso de exigir do MEC as verbas cortadas do orçamento nacional.
Na semana dos calouros, o DCE e os CAs organizaram sessões de debates para tratar dos problemas da universidade tais como a falta de condições mínimas de funcionamento de parte dos cursos (como o caso dos cursos do CLCH sem um espaço físico adequado, o CCBS sem um hospital-escola, o CCET sem laboratórios, o CCA sem funcionamento da fazenda experimental); o aumento excessivo nos preços do RU e das taxas e sobretaxas cobradas na universidade; a intransigência da administração da Universidade e a sua tentativa de implantação do ensino pago. Essas discussões envolveram não somente os alunos veteranos como também os recém ingressos na Universidade.
No ano de 1983, o primeiro semestre letivo teve o seu início marcado por uma greve deflagrada pelo recém criado curso de Medicina. Conforme documento do CAMED (Pauta de reivindicação, CAMED-UFMT, abril 1983), após várias tentativas de negociações com a administração da universidade e quase dois meses de pesquisa, entrevistas, contatos, debates e reuniões, visando levantar os principais problemas do curso, os estudantes do curso, em assembléia geral, decidiram pela greve que teve o seu início no dia 13 de abril, que se encerrou após um semestre letivo com intensas mobilizações. A pauta de reivindicações do movimento integrava, principalmente, o término das obras do Hospital-Escola, a aquisição de materiais e equipamentos para o seu funcionamento, contratação de profissionais e professores por meio de concurso público de nível nacional, avaliação do quadro de docentes, das disciplinas, do nível de ensino, currículo, entre outros.
Uma outra luta estudantil empreendida na Universidade, diz respeito às taxas cobradas pela administração por alguns serviços prestados aos estudantes. Este ponto esteve presente nas discussões, durante toda o final de 1970 e início de 1980, e foi graças às mobilizações estudantis, que a UFMT extinguiu, no segundo semestre de 1983, dez dessas taxas, estando entre elas aquelas referentes à revisão de prova, re-análise e anulação de processos, segunda chamada de prova final, aproveitamento de estudos, cancelamento e substituição de disciplinas, e alguns atestados (cf. Jornal Paralelo 11, DCE-UFMT, novembro 1983).
No dia 01 de maio, os estudantes do curso de Geologia paralisaram suas atividades escolares por cinco dias. A paralisação se desencadeou em razão de três disciplinas importantes encontrarem-se, desde o início do semestre, sem professores para ministrá-las, e outras duas, por apresentarem baixo nível de ensino por parte dos professores. Os alunos somente decidiram voltar às aulas quando encontraram-se diante de parte de suas reivindicações atendidas pelo Conselho Departamental (cf. Jornal Paralelo 11, DCE-UFMT, novembro 1983).
No mesmo mês de maio e no mês de agosto de 1983, o curso de Agronomia também paralisou suas atividades reivindicando um currículo mínimo e melhor formação profissional. O ensino ministrado no curso era, na ocasião, visto pelos estudantes, como um ensino tecnicista formador apenas de mão-de-obra. Ao contrário disso, os estudantes reivindicavam uma educação global em que a técnica estivesse ao lado do ensino humanizante, e acima de tudo, coerente com a realidade e voltada para as necessidades regionais. Por estes motivos, reivindicavam melhoria do ensino, pesquisa, extensão, além de laboratórios, fazenda experimental, transporte, modificações no sistema de avaliação, transferências, extensão, estágios e democratização da Universidade (cf. Jornal Paralelo 11, 13 março 1984).
A greve do mês de agosto do curso de Agronomia durou quase nove meses, e com isto, os estudantes perderam todo o segundo semestre de 1983; em contrapartida, conseguiram vitórias em várias das reivindicações tais como a construção do laboratório de Tecnologia de Alimentos, uma sala de Pranchetas, Laboratórios de topografia, transferência das aulas de Química Analítica Aplicada do bloco do CCET para o CCA e aquisição de um ônibus para as aulas de campo.
O segundo semestre de 1984 se iniciou também com muitos problemas, dentre eles, com quatro Centros de Ciências paralisados (o CCS, CLCH, CPR e CPBG). Cada Centro paralisara suas atividades por motivos específicos: o CCS (Centro de Ciências Sociais), por exemplo, justificava a falta de cadeiras em sala de aula, a interdição dos sanitários e a falta de diários prontos; o CLCH (Centro de Letras e Ciências Humanas), devido à não conclusão das obras nas instalações e por falta de cadeiras, mesas e demais móveis indispensáveis para o desempenho das atividades acadêmicas; o CPBG (Centro Pedagógico de Barra do Garças), devido ao atraso na realização de um concurso para professores; o CPR (Centro Pedagógico de Rondonópolis) em razão da não conclusão das obras de reformas do prédio. Diante dessa situação generalizada, o DCE passou a cobrar da administração da UFMT, um empenho na resolução dos diversos problemas e no atendimento as várias solicitações (cf Jornal Paralelo11, novembro de 1984).
Em 1988, o DCE intensificou as denúncias contra os cortes de recursos destinados à educação, e nesse sentido, promoveu, no dia 23 de setembro, uma manifestação em frente à reitoria, e no dia 27, uma paralisação geral com ato público na Praça da República. Neste mesmo ano, o curso de Educação Física iniciou sua luta por espaço adequado para o desenvolvimento de suas atividades e reivindicou salas, ventiladores, arborização, cadeiras, mesas para professores, bebedouros, etc. Essa luta, em verdade, começara em 1987, quando os estudantes reclamaram do fato de, por não terem um lugar fixo, tinham que perambular de sala em sala, de bloco em bloco, para assistir às aulas.
No ano de 1989, as universidades federais brasileiras viveram a pior crise de toda sua história, a qual vem se arrastando há pelo menos 18 anos. Nesse tempo, o que se verificou foi um processo de destruição do patrimônio científico, tecnológico e cultural das universidades, e vários equipamentos preciosos foram inutilizados por falta de manutenção. Neste ano, as verbas destinadas à ciência e à tecnologia foram reduzidas à quarta parte do previsto e o decreto de 28 de janeiro de 1988 extinguiu os cargos vagos até a data de 31 de dezembro e proibiu nova contratação de professores, extinguindo também as vagas resultantes de aposentadorias e falecimentos. Além disto, verificou-se o estrangulamento dos recursos humanos das universidades já desde antes afetadas pela defasagem salarial de servidores e professores. Nesse contexto, conforme nota de esclarecimento emitido pelo DCE-UFMT, em setembro de 1988, o DCE, comandado pela UNE, lançou, em abril, a campanha S.O.S. Universidade, visando manifestar-se contra a destruição da universidade pública do Brasil no governo de Sarney. E assim, durante três meses desse mesmo ano, ocorreram mobilizações em todo o país buscando melhoria da qualidade de ensino e a defesa da universidade pública. Na UFMT, foram constantes as discussões, questionamentos e encaminhamentos em torno dessas questões, e professores, servidores e estudantes tentaram fazer de suas assembléias momentos para discutir e aprovar propostas. Porém, os problemas não foram resolvidos.
Ainda no ano letivo de 1992, as universidades continuavam ameaçadas de serem fechadas devido aos cortes de verbas. Ademais, o brasileiro vivenciava a crise iniciada, em 1991, pela política de Collor que se encontrava aliada à corrupção, superfaturamentos e às ligações criminosas. Face à gravidade da situação, a sociedade começou a reagir. Em nível nacional, a UNE, os sindicatos, as associações e os partidos começaram a se mobilizar e os setores da grande imprensa começaram a defender a renúncia de Collor, entendendo que o mesmo não tinha mais condições moral, ética e política para dirigir a nação.
Em Mato Grosso, como também na UFMT, a participação popular e estudantil no processo do impeachment do então presidente Collor, embora modesta em relação a outros estados e universidades brasileiras, era intensa. Conforme reportagem do Jornal O Estado de Mato Grosso, de 22 de agosto de 1992, o DCE, os CAs do curso de Direito e de Comunicação Social promoveram uma manifestação a favor do impeachment do presidente da qual participam aproximadamente 300 estudantes. E no dia 25, o DCE saiu às ruas, juntamente com outras entidades como DCE/UNIC, AME e outros CAs em um movimento denominado Movimento Nacional pela Ética, contando com a participação de mais de 5 mil estudantes, todos com as caras pintadas, culminando com um ato público na Praça da República.
Assim, durante toda a década de 1990, os estudantes da UFMT continuaram fazendo suas mobilizações por questões específicas à cada curso. Em termos gerais, o que se destaca durante todo esse período foi a luta contra a privatização da Universidade. Em 1995, estes se manifestam contra o projeto que estabelecia o pagamento de mensalidades nas universidades públicas, projeto este elaborado pelo senador Darcy Ribeiro. Esse fato levou os diversos Centros Acadêmicos a colocarem a questão da fundação privada em discussão no meio estudantil que se posiciona radicalmente contrário ao constatar que essas medidas tomadas pelo governo procuravam insistentemente privatizar as universidades.
Em 1999, a crise na Universidade se agravou de forma assustadora, sobretudo por questões de verbas, tendo em vista, principalmente, o atraso no repasse de duodécimos oriundos do Ministério da Educação. O governo, por sua vez, aproveitou a situação de precariedade das universidades e discursou sobre o fim do ensino público, alegando que o mesmo não vem atendendo a sua finalidade. O ME da UFMT, através do DCE, apesar de também estar passando por crises de articulação, se esforçou para aglutinar os estudantes de forma efetiva. Em maio de 1999, 500 estudantes saíram em passeata contra o projeto de autonomia universitária de autoria do então ministro da Educação Paulo Renato. O projeto, segundo os estudantes, reduziria ainda mais os recursos destinados às instituições públicas.
Como se viu, historicamente, o ME teve uma presença marcante nas principais discussões e manifestações sócio-políticas tanto do país como no interior da universidade. Verifica-se que seus participantes, interiorizaram e assumiram para si, o compromisso de modificar, de forma criadora, a realidade onde vivem. Contudo, existe uma tensão dialética entre leitura de mundo e as atividades realizadas, que, através da qual, cada pessoa constrói sua consciência política com base em novos saberes apropriados.
CAPÍTULO III
REFERENCIAL TEÓRICO
Cada um transforma a si mesmo, se modifica, na medida em que modifica todo o conjunto das relações do qual ele é o ponto central.
(Gramisci, 1995)
O presente Capítulo trata do embasamento teórico do estudo, focalizando, na sua primeira parte, o entendimento do que seja socialização, a partir de diferentes abordagens, e na segunda parte, os conceitos relevantes para o entendimento do que sejam Movimentos Sociais e o que os autores discutem a respeito de seu caráter educativo.
1 - A socialização e suas diversas abordagens
O termo socialização é utilizado por diversas disciplinas, e conseqüentemente, é conceituado de diferentes formas, e é Dubar (1997) que, ao realizar um minucioso levantamento das diferentes concepções a respeito do termo, baseando-se em diversos autores, mostra que cada uma delas pode ser alinhada à uma corrente mais funcionalista ou à uma corrente mais dialética materialista. Deste modo, acompanhando a análise realizada por Dubar, a seguir, serão apresentadas, de forma sucinta, algumas das abordagens apresentadas pelo autor, de maneira a mostrar que pensadores buscaram esclarecer a temática e a qual delas o presente estudo se mantém ancorada teoricamente.
a) A socialização e a psicologia de Piaget
Para Piaget, que se dedicou ao estudo da socialização infantil numa abordagem psicogenética, a socialização é um elemento fundamental no desenvolvimento da criança, pois é através dela que a criança se adapta ao meio social. Essa adaptação, na perspectiva de Piaget, é resultado de dois movimentos diferentes, mas complementares: assimilação -- no qual a criança incorpora as coisas e as pessoas externas --, e a acomodação -- que consiste em reajustar as estruturas cognitivas e afetivas em função das transformações exteriores, como por exemplo, no caso de uma mudança de ambiente.
Na concepção de Piaget, deste modo, cada fase da vida da criança corresponde à uma forma de socialização, compreendendo as modalidades da relação da criança com os outros seres humanos. O processo de socialização, portanto, termina na adolescência quando o indivíduo já aprendeu a exprimir sentimentos diferenciados, a imitar seus semelhantes, a respeitar as relações de constrangimentos exercidos pelo adulto e quando aprendeu a passar do constrangimento -- submissão parental e escolar --, à cooperação -- autonomia pessoal. Este estágio é alcançado através da reflexão interior da criança consigo mesma e da reflexão socializada com o outro. Portanto, na concepção piagetiana, a socialização pode ser definida como um processo descontínuo de construção coletiva e de condutas sociais que integra aspectos cognitivos, sociais, afetivo e expressivo.
Segundo Dubar, embora a abordagem piagetiana represente uma ruptura com a perspectiva funcionalista da socialização durkheiminiana, segundo a qual a concepção de formação é vista como condicionamento ou inculcação de regras, normas e valores que emanam das instituições junto de indivíduos passivos que se deixam modelar por estes esquemas de pensamento e de ação, legitimando uma concepção determinista e mecanicista das práticas individuais, a Psicologia genética piagetiana limita-se centrar unicamente na socialização do indivíduo-criança, considerando a adolescência apenas como um período biográfico de consumação da socialização adquirida na infância. Assim, este pressuposto teórico não prevê a inserção do sujeito em outros setores da vida, como por exemplo, no emprego, no casamento, nos grupos políticos etc., como novas formas de socialização. Esta concepção apresenta também uma abordagem restrita da socialização na medida em que a vê tão somente como um processo de desenvolvimento individual do sujeito, ignorando-a como pedra angular de todo funcionamento da sociedade. E finalmente, essa abordagem minimiza ou ignora as enormes variações que se pode observar nos produtos da socialização segundo épocas, os tipos de sociedades, os meios sociais ou os grupos sociais. A estes aspectos, a abordagem antropológica da socialização, deu atenção especial como veremos a seguir.
b) Abordagem antropológica da socialização
Os antropólogos, a partir da análise de diferentes sociedades, mostraram que existem diversas formas de socialização. Pesquisas realizadas em sociedades tradicionais mostraram claramente que os adultos produzidos pelas diferentes sociedades são tão diferentes quanto os procedimentos educativos que lhes eram aplicados quando criança e que estes procedimentos não podem ser reduzidos a mecanismos universais.
Ruth Benedict (apud Dubar, 1997:39), por exemplo, a partir de pesquisa em três comunidades tradicionais diferentes concluiu que “a maior parte das pessoas está moldada à sua cultura, devido à grande maleabilidade de sua natureza original: elas são adaptáveis à forma modelizadora da sociedade onde nasceram”.
Porém, segundo a autora, nem todos os indivíduos pertencentes às sociedades pesquisadas, sentiam-se à vontade no interior delas, mas somente aqueles os quais ela designou de “bafejados pela sorte” possuíam as virtualidades de adequarem-se aos modelos de comportamento presentes na sua sociedade, isto porque cada tribo possui os seus anormais que não se adaptam à própria cultura.
Após este estudo, seguiram-se muitos outros, todos enfocando uma tese comum, ou seja, segundo Dubar (1997:47), a de que “a personalidade dos indivíduos é o produto da cultura aonde nasceram, mais precisamente, das instituições com as quais os indivíduos estão em contato no decurso de sua formação. É a interiorização dessas instituições que produzem neles (nos sujeitos) um tipo de condicionamento que a longo prazo, acaba por criar um certo tipo de personalidade. Segundo esta concepção, os indivíduos são preparados, modelados através da socialização de forma a garantir a perpetuação da cultura de sua sociedade”.
Nessa mesma direção, na concepção de Parsons, conforme Dubar (1997:51), o processo de socialização acontece em três fases: a primeira, chamada de identificação primária, quando a criança começa reconhecer as normas e os valores como indicadores que balizam o campo de ação. Nessa fase, são os familiares mais próximos que vão permitir à criança as primeiras aprendizagens, exprimindo-lhe, através de atitudes, o que é permitido e o que é proibido. Nessa fase, efetua-se a primeira função da socialização: estabilizar as normas pela modelação das atitudes na criança. Nessa interação, a criança aprende as primeiras normas entendendo-as como respostas à passagem da permissividade às primeiras proibições.
A segunda fase da socialização acontece quando a criança, ao entrar para a escola, experimenta seu primeiro sistema social global, constituído pela família, escola e grupo de pares. Nesta experiência acontece a passagem de categorias particulares (família) a uma categorização universalista (escola, pares, etc.) a qual permite a adesão de regras gerais e imparciais e a interiorização de novos papéis sociais baseados na reciprocidade. Nesta fase, o papel dos agentes socializadores é muito importante.
A última fase ocorre quando o indivíduo tem de abandonar a família de orientação para ser reconhecido como um membro adulto de pertença do tipo “universalista” e já não particularista como era na família de origem. Para o jovem, trata-se de entrar em novos campos de interação (casamento, profissão, etc.), e aprender novos papéis que implicam o reconhecimento social da maturidade. Este reconhecimento pressupõe um novo relacionamento com as regras sociais que permitem a manipulação de sansões, ou seja, uma capacidade de se adaptar a um novo universo institucional adaptando as regras às motivações, a partir daqui, conscientes e reconhecidas como legítimas. Trata-se, de certa forma, de reconstruir uma adaptação voluntária graças à aquisições interiorizadas nas suas socializações anteriores. A superação da crise da adolescência e a adaptação social à idade adulta dependem do sucesso daquela reconstrução.
Segundo análise de Dubar, Parsons apresenta uma concepção funcionalista da socialização, uma vez que esta é reduzida a um simples treino. O indivíduo é treinado para se adaptar ao meio onde vive. E se eventualmente alguém não sair da primeira infância bem adaptado ao seu meio cultural e social, seja por qual razão for, é identificado como portador de desvio de comportamento, devendo inclusive identificar-se como tal e procurar por um outro grupo a que se quer integrar.
Nessa perspectiva, segundo Dubar (1997), a teoria parsoniana assenta na idéia de que o processo de socialização:
“(...) deve normalmente conduzir a adaptação das personalidades individuais ao sistema social tal como funciona nas estruturas mais profundas, ou seja, nas estruturas que exprimem o sistema simbólico e cultural existente. A conformidade precoce dos indivíduos às normas e aos valores é assegurada pelos agentes socializadores que também foram socializados neste sistema e que se encontram legitimados para garantir o seu papel de socializadores. Quanto mais cedo esta conformidade intervém na existência, mais ela se integra precocemente na personalidade em formação e mais possibilidade ela tem de conduzir com sucesso a uma adaptação. É este esquema culturalista que Parsons partilha com os teóricos da antropologia cultural e complementado com a metáfora cibernética que lhe permite transpô-lo para as sociedades modernas”.
Conforme crítica de Dubar (1997:62-3), apesar das abordagens antropológicas considerarem aspectos antes esquecidos, estas apresentam uma abordagem que tende conceber a socialização como um mecanismo explicativo de inúmeras condutas individuais e como uma modelagem das personalidades de acordo com as características mais estruturantes das culturas consideradas essenciais ao funcionamento social. Devido a isto, a essa abordagem são dirigidas várias críticas dentre as quais a de considerar a formação da criança como adestramento/condicionamento.
Deste modo, o indivíduo socializado é visto como uma espécie de autômato determinado ou programado pelas experiências passadas e não um ator livre de suas escolhas e responsável pelo seu ato; outra crítica é que esta abordagem privilegia as experiências da primeira infância, onde as disciplinas de base são impostas pela cultura do grupo social de origem, tornando, o adulto socializado, um produto do complexo parental de onde ele é originário. E por último, esta abordagem confere à cultura uma eficácia sui generis sobre o indivíduo que ela modela, fazendo do indivíduo, um ser livre e racional, o ponto de partida obrigatório de qualquer análise do individualismo referente à qualquer discurso mobilizador.
c) A socialização como construção social da realidade
Ao contrário das abordagens culturalistas e funcionalistas que vêem a socialização como uma forma de integração social ou cultural unificada, enraizada num condicionamento inconsciente dos indivíduos, as novas teorias consideram o processo dialético de interação social como principal fator que concorre para o processo de socialização. Este paradigma não aceita o postulado de que cada indivíduo procura adaptar-se à cultura do grupo e reproduzir passivamente as tradições culturais ou otimizar as riquezas e as posições de poder segundo o tipo de sociedade no qual se encontra. Mas, esta teoria coloca a interação, a incerteza no seio da realidade social, definida como confronto entre lógicas de ação funcionalmente heterogênea.
Na concepção de Mead, por exemplo, conforme Dubar (1997:92), a socialização é a construção de uma identidade social na e pela interação -- ou comunicação -- com os outros. Esta teorização tem por mérito colocar o agir comunicacional no centro do processo de socialização e fazer depender a lógica da socialização das formas institucionais da construção do Eu e nomeadamente das relações comunitárias (comunidade de pertença: familiar, étnica, etc.) e societárias (grupos sociais variados de interesse específico: emprego, associação, instituição, etc.) que se instauram entre os socializadores e o socializado.
Segundo Mead, a primeira etapa essencial desta socialização é a “tomada de conta” pela criança dos papéis desempenhados pelos que lhes são próximos, aqueles que o autor chama de “outros significativos”. O papel é justamente o conjunto de gestos -- linguagem gestual e/ou verbal -- que funcionam como símbolos significantes e associados para formar uma personagem socialmente reconhecida. Porém, a criança começa a socializar-se, não imitando passivamente a mãe ou o pai, mas recriando as atitudes destes, através de gestos organizados, de jogos livres, etc.
A segunda etapa da socialização ocorre, no entender de Mead, a partir da entrada da criança na escola, quando esta passa do jogo livre ao jogo com regras -- onde se respeita uma organização vinda de fora, o que pressupõe uma nova concepção do outro. Ou seja, a criança apropria-se dos papéis que lhe são atribuídos e, concomitantemente, reconhece o papel do outro. Dessa forma, o grupo de que o indivíduo participa é que lhe dá a unidade do Eu, que o autor chama de “Outro generalizado”.
A última etapa da socialização consiste, segundo Mead, no reconhecimento como membro destas comunidades, nas quais a criança progressivamente se identificou com os outros generalizados. Este reconhecimento do Eu implica que o indivíduo não é somente membro passivo do grupo que interiorizou os seus “valores gerais”, mas é um ator que desempenha, no grupo, um “papel útil e reconhecido”. É neste processo que intervém uma dialética, mesmo um desdobramento, entre o Eu identificado pelo outro e reconhecido por ele como “membro do grupo”, e o Eu que se apropria de um papel ativo e específico no seio da equipe e que constrói ativamente a comunidade a partir de valores particulares ligados ao papel que assume.
É do equilíbrio e da união destas duas facetas do Eu -- o ‘Eu’ que interiorizou o “espírito” do grupo e o “Eu” que me permite afirmar-me positivamente no grupo é que depende a consolidação da identidade social e, portanto, o sucesso da socialização. Para Mead, a socialização desenvolve-se ao mesmo tempo em que a individualização, isto é, quanto mais se é Eu próprio, melhor se é integrado no grupo.
Para Weber, conforme Dubar (1995:88-9), a socialização é a construção de formas sociais significativas criadas a partir da dualidade: a socialização comunitária -- que pressupõe a entrada do indivíduo numa comunidade de pertença e ao mesmo tempo a uma comunidade lingüística (ex. comunidade familiar), e a socialização societária -- processo de entrada do indivíduo na sociedade, que se baseia na expressão de uma constelação de interesses variados que acabam sendo partilhados pelos indivíduos. Para esse autor, qualquer relação societária que se desenvolve por longo período tende desenvolver valores sentimentais característicos da relação comunitária.
Para Weber, a socialização societária não é um condicionamento passivo de pertença a uma sociedade estabelecida, mas uma modalidade de entrada voluntária nas relações de tipo societário. É a estrutura da situação de mercado que impõe aos que querem dela participar, a adoção de um tipo de relações privilegiadas baseadas na procura de uma otimização de interesses mútuos.
Já na concepção de Habermas, conforme Dubar, a dialética da socialização situa-se na ligação entre trabalho e interação, isto é, entre processos ou sistemas de produção -- sistema de ação racional referenciado a um fim --, e os processos ou mundos vividos das relações sociais -- sistemas de poder e de legitimidade, mas também de libertação e reciprocidade, sem que, de forma alguma, os segundos possam reduzir aos primeiros. Em outras palavras, para o autor, as identidades sociais e correlativamente as formas de relações sociais nos quais estão enraizados, não podem ser deduzidos dos sistemas de trabalho e das forças produtivas. Reduzir os “mundos vividos” e os processos identitários a um aspecto ou produto dos sistemas é suprimir a questão da socialização.
Nesta perspectiva, Dubar chama a atenção para o fato de que a concepção de Weber representa uma crítica à orientação teórica funcionalista que considera a socialização como um processo de integração auto regulado pelo sistema social econômico.
A teoria de Berger e Luckmann (1985), diferenciam-se dos demais pelo fato de abordarem além da socialização da criança (socialização primária), também a socialização do adulto (socialização secundária). Para estes autores, a socialização pode ser definida como a ampla e consciente introdução de um indivíduo no mundo objetivo de uma sociedade ou do setor dela. Sendo a socialização primária, a primeira socialização que o indivíduo experimenta na infância, onde se apropria do saber de base na e com a aprendizagem da linguagem e simultaneamente da posse subjetiva de um eu e de um mundo. Já a socialização secundária, segundo os autores, é qualquer processo subseqüente que introduz o indivíduo já socializado em novos setores do mundo objetivo de sua sociedade, ao que os autores chamam de “sub-mundos institucionais” ou mundos baseados em instituições.
Tedesco (1995:100) sintetiza os traços que caracterizam a socialização primária e secundária de Bergman e Luckmann da seguinte forma:
1. A socialização primária transmite conteúdos cognitivos que variam de uma sociedade para outra, mas que compreendem fundamentalmente o aprendizado da linguagem e, por seu intermédio, o aprendizado de diversos esquemas motivacionais e interpretativos da realidade, assim como os rendimentos do aparato legitimador da validade desses esquemas.
2. Esse aprendizado ocorre em condições peculiares que o diferenciam dos aprendizados posteriores pela presença de um grande componente afetivo e emocional que outorga, a um aprendizado, uma sólida ancoragem na estrutura pessoal do sujeito. A presença desse fator afetivo faz com que as modificações dos conteúdos aprendidos durante a socialização primária sejam muito difíceis. A eficácia dos aprendizados posteriores depende, em grande parte, do ajuste que eles tenham com relação ao primário.
3. Pode-se concluir que a socialização primária permite que a criança interiorize o mundo das “outras”, mundo este que não constitui uma possibilidade entre mil, mas se apresenta como o único que existe e que se pode conceber.
Segundo Berger e Luckmann (1985:184-5), socialização secundária é um processo pelo qual os sujeitos apropriam-se de “submundos institucionais” ou baseados em instituições, cuja extensão e caráter destes são determinados pela complexidade da divisão de trabalho e a concomitante distribuição social do conhecimento. Cada “submundo institucional”, deste modo, supõe uma linguagem específica, esquemas de comportamento e de interpretação mais ou menos padronizados, bem como concepções particulares destinadas a legitimar as práticas sociais.
Todavia, segundo Dubar (1997:96-7), a socialização secundária não é uma simples reprodução dos mecanismos da socialização primária. Em alguns casos, podem acontecer, de fato, um simples prolongamento da socialização primária para uma socialização secundária. Isto pode ocorrer quando os conteúdos da segunda socialização concordam com o “mundo vivido” pelos membros de família de origem e, portanto, com os saberes construídos na socialização primária. Mas pode ocorrer na socialização secundária, a transformação radical da realidade subjetiva construída na socialização primária, o que pressupõe uma ruptura com esta, levando o indivíduo à desestruturação e reestruturação de sua identidade. Estas mudanças vão se aprofundando quanto maior a distância entre os conteúdos da socialização primária e os da secundária.
Por outro lado, para assegurar o êxito do processo de desestruturação e reestruturação de identidade, são necessários, segundo Dubar (1997:96-7), as seguintes condições: um assumir de distanciamento dos papéis desempenhados na socialização anterior, que inclui uma disjunção da identidade real (identidade atual) e da identidade virtual (identidade visada; b) técnicas especiais que assegurem uma forte identificação ao futuro papel visado e um forte compromisso pessoal; c) um processo de iniciação que permite uma transformação real da “casa” do indivíduo e uma implicação dos socializadores na passagem de uma “casa” para outra; d) a ação contínua de um aparelho de conversação que permite manter, modificar e reconstruir a realidade subjetiva incluindo uma contra-definição da realidade; e) a existência de uma estrutura de plausibilidade, isto é uma instituição mediadora que sirva como um “laboratório de transformação” e que permita a conservação de uma parte da identidade antiga, acompanhando a identificação a novos outros significados, percepcionados como legítimos.
Estas condições serão tão importantes para assegurar a re-configuração da identidade de um sujeito quanto maior for a distância entre sua biografia passada construída na socialização primária e a identidade pretendida na socialização secundária.
Mas, em que circunstâncias se desencadeiam uma socialização secundária em ruptura com a socialização primária ? Berger e Luckmann (1985:189-90) identificam, em seus estudos, duas situações nas quais esse processo se encontra associado: a primeira acontece, quando, por exemplo, a socialização primária não foi conseguida por várias razões, tais como, por acidentes biográficos, e então a socialização secundária permite construir uma identidade mais consistente ou mais satisfatória do que aquela produzida na primeira socialização. A segunda circunstância é aquela em que a identidade anterior se torna problemática, as identificações com os outros se tornaram débeis e um “mercado dos mundos disponíveis” é criado. Esta última, segundo Dubar (1997:98), é comum em contextos sócio-estruturais com uma mobilidade acentuada, com uma transformação da divisão do trabalho e da distribuição social dos saberes.
Diante disto, segundo Dubar, a questão da socialização secundária torna-se um problema essencial colocada pela transformação do trabalho, dos saberes e das relações sociais. Neste caso, a ruptura entre a segunda socialização e a primeira não está ligada aos insucessos da socialização primária, mas às pressões exercidas sobre o indivíduo para modificar as suas identidades e torná-las compatíveis com as mudanças em curso.
Segundo Dubar (1997:98), por mais que a socialização secundária se sobreponha, de certo modo, à socialização primária, a segunda nunca apaga totalmente a identidade geral construída na primeira socialização. Em condições institucionais precisas, a socialização secundária pode transformar uma identidade especializada, numa outra diferente.
Dessa forma, o desafio da socialização secundária está no fato de operar sobre uma personalidade formada e com um mundo já interiorizado, o que torna os saberes apropriados na socialização secundária menos arraigada na consciência e mais vulnerável. Dessa forma, são necessários vários choques para desintegrar a maciça realidade interiorizada na primeira infância. Na socialização primária, a interiorização acontece quase automaticamente, e ao contrário, na socialização secundária, esta tem de ser reforçada por técnicas específicas que exigem necessariamente um aparelho legitimador.
Cabe ressaltar que a socialização nunca será completa e acabada porque, segundo Tedesco (1995:101), é impossível o êxito total ou o fracasso total de uma socialização. Segundo esse autor, o processo de socialização nunca permite ao sujeito interiorizar a totalidade da realidade existente, e nesse sentido, cada indivíduo tem acesso a uma parte mais ou menos importante dessa realidade existente, conforme o tipo de estrutura social em que vive e sua localização dentro dela. Deste ponto de vista, o processo de socialização reproduz a estrutura da distribuição social do conhecimento existente na sociedade e, com ele, materializa, no plano cultural e simbólico, a reprodução das relações sociais globais.
Essa análise permite-nos entender que o resultado do processo de interação, em termos do saber que são construídas no processo de socialização, é diferente para cada indivíduo. Estas diferenças dependem do resultado da apropriação que o indivíduo faz da prática e dos saberes históricos sociais, os quais são diferentes entre os sujeitos, e é devido a isto que eles se apropriam de diferentes saberes em função de seus interesses, valores, crenças, das oportunidades encontradas, das experiências que cada um tem acesso, da classe social a que pertence e mesmo do lugar aonde vive.
Todavia, segundo Dubar (1997:99), só a socialização secundária pode produzir identidades e atores sociais orientados pela produção de novas relações sociais e suscetíveis de transformarem a elas próprias, através de uma ação coletiva eficaz. É por esta razão que qualquer análise do processo e condições da mudança ou da inovação se confronta com a questão da aprendizagem coletiva pelos sujeitos, das capacidades de invenção de novos jogos, de novas regras e de novos modelos relacionais. Mas para isso, é necessário assegurar a existência de um aparelho de socialização secundária que permita a transformação das identidades de um ator, no sentido que não se limite à reprodução ou adaptação das identidades anteriores, mas que permita envolver-se numa verdadeira criação institucional.
Como se pôde ver, a socialização se processa em vários planos e dimensões. No que se refere especificamente à socialização no plano político, Dubar (1995:30-3) cita a teoria de Pecheron que critica a abordagem da socialização de Durkheim e realiza uma investigação do vocabulário político das crianças. E com base nos resultados de sua pesquisa, o autor desenvolve uma “nova” abordagem dos fenômenos da socialização.
Para Pecheron, deste modo, conforme Dubar, a socialização política deve ser entendida tomando-se como base os seguintes aspectos:
1. a socialização é um processo interativo e multidirecional, e pressupõe uma transação entre o socializado e os socializadores, não sendo adquirida de uma só vez;
2. a socialização não é apenas a transmissão de valores, normas e regras, mas o desenvolvimento de uma dada representação do mundo nomeadamente de mundos especializados, não sendo esta representação imposta pela família ou pela escola, mas é construída lentamente pelo indivíduo, utilizando imagens retiradas das diferentes representações existentes e reinterpretadas para formar um todo original;
3. A socialização não é o resultado de aprendizagens formalizadas, mas é o produto, constantemente reestruturado, das influências presentes ou passadas dos múltiplos agentes socializadores; a socialização política é, neste sentido, muitas das vezes, impessoal e não intencional, cuja aprendizagem é informal e implícita que alarga a influência do ensino e da maioria das mensagens da sociedade.
4. a socialização é uma construção lenta e gradual de um código simbólico que não constitui um conjunto de crenças e valores herdados das gerações precedentes, mas um sistema de referência e de avaliação do real que permite comportar-se de uma certa forma numa dada situação; na socialização política, a significação de qualquer noção política se constrói através de sua relação com outras noções, após uma série de mediações e de transformação: não há objeto, lei ou partido político fora das representações que subjazem a estes conceitos, assim como não há representações fora do conjunto das atitudes que organizam qualquer apreensão do real;
5. a socialização é um processo de identificação, de construção de identidade, ou seja, de pertença e de relação; socializar-se é assumir o sentimento de pertença a grupos, ou seja, assumir pessoalmente as atitudes do grupo sem que se aperceba; socializar-se é adquirir o “saber intuitivo” que significa a aquisição, ainda que parcialmente, do passado, presente e do projeto do grupo tal como são expressos no código comum que fundamenta a relação entre os membros.
Em síntese, a socialização, ao ser entendida como um processo de adaptação e de ajustamento do indivíduo ao meio ou à sociedade, revela uma abordagem funcionalista e trata o homem como um ser passivo, geral e abstrato. Por outro lado, a socialização ao ser entendida como um processo de relação humana, considera o aspecto histórico e a existência do outro e das possibilidades de confronto, em que nas múltiplas relações de incerteza, o sujeito torna-se homem capaz de aprender e de agir como membro de uma sociedade. Assim, considerando que o processo de socialização não ocorre apenas no meio escolar, o presente estudo focaliza o processo de socialização não formal no interior de uma instituição de ensino formal buscando entender que novos saberes são construídos pelos sujeitos por meios não formais de ensino.
Neste sentido, este estudo procura abordar a socialização como um processo dialético resultante das relações do homem com o mundo e do homem consigo mesmo. Processo esse que permite aos indivíduos envolvidos construir determinadas formas de pensar, de sentir e de agir, numa perspectiva de mudança social e não apenas de manutenção ou reprodução da ordem social como defendem os autores funcionalistas e culturalistas. Esta abordagem mostra que é possível a transformação da sociedade, a mudança de si mesmo, a ruptura com a socialização primária e a construção de outros “mundos” para além daqueles que foram interiorizados na infância, que é possível a transformação da identidade, que por sua vez é inseparável dos mundos criados por estes indivíduos e das práticas que decorrem destes mundos.
2 - Movimentos Sociais e o processo educativo
Os Movimentos Sociais surgem, sobremaneira, fruto das relações sociais comandadas por uma dialética de opressão e libertação, isto é, como afirma Scherer-Warren (1989:08), “nenhum grupo é totalmente oprimido ou completamente liberto”. Portanto, em resposta ao fenômeno opressão, grupos considerados subordinados, organizam-se nos Movimentos Sociais, ou individualmente, para reivindicar seus direitos, denunciar injustiças e buscar soluções para os seus problemas cotidianos. Dessa forma, os Movimentos Sociais reivindicativos, têm participado ativamente das lutas democráticas, contestado a ordem estabelecida, questionado a exploração capitalista e oportunizado a conscientização de suas bases, contribuindo assim, ativamente para a (re)construção da sociedade brasileira.
São variados os conceitos atribuídos aos Movimentos Sociais, e dentre aqueles mais expressivos, encontra-se o de Gohn (1997:251) que afirma que:
“Movimentos sociais são ações sociopolíticas construídas por atores sociais coletivos pertencentes a diferentes classes e camadas sociais, articuladas em certos cenários da conjuntura socioeconômica e política de um país, criando um campo de força social na sociedade civil.”
De acordo com Touraine (apud Gonh, 1997), os Movimentos Sociais são frutos de uma vontade coletiva; eles falam de si próprios como agentes de liberdade, igualdade, de justiça social ou de independência nacional, ou ainda, como apelo à modernidade ou à libertação de forças novas, num mundo marcado por tradições, preconceitos e privilégios.
Sintetizando as variadas definições de Movimentos Socais, Scherer-Warren (1999:15) afirma que, Movimento Social é um conjunto abrangente de práticas socio-político-culturais que visam a realização de um projeto de mudança (social, sistêmica ou civilizatória), resultantes de múltiplas redes de relações sociais entre sujeitos e associações civis. É o entrelaçamento da utopia com o acontecimento, dos valores e representações simbólicas com o fazer político, ou com múltiplas práticas efetivas. Portanto, Movimento Social é a síntese de múltiplas práticas, produto das articulações, de sujeitos e associações civis.
Em se tratando especificamente do ME, este é entendido como sendo um Movimento Social, cujo objetivo é a atuação grupal[2] para a transformação da sociedade na qual os sujeitos se encontram inseridos, por meio de lutas, amplas, gerais e historicamente contextualizadas, ao lado de outras classes e movimentos, situando-se como frente de resistências.
No entanto, é importante ressaltar o entendimento de Tourraine (apud Gohn, 1997:146) de que os Movimentos Sociais, por si só, não transformam a realidade, sendo, portanto, um equívoco considerá-los como agentes de mudanças históricas ou forças de transformação do presente e construção do futuro; mas, estes são frutos de uma relação de produção e organização social, em uma relação de dupla identidade e de oposição. Portanto, os Movimentos Sociais não são agentes ou forças privilegiadas de mudança; são, porém, forças culturais indispensáveis.
Da mesma forma, Foracci (1965) ressalta, em relação ao Movimento Estudantil, que o estudante não é o agente humano que, por excelência, conduz o processo de transformação social. Sua atuação só adquire expressão renovadora, sua força só ganha vitalidade, quando integrada a outras forças e processos já desencadeados, apesar de sua importância como força coadjuvante.
Segundo Gohn (1997), um dos fundamentos básicos da importância da participação cotidiana nos Movimentos Sociais é o conhecimento transformador que os indivíduos alcançam a partir da prática militante, tendo em vista que esse conhecimento se constrói na luta, e este, portanto, permeia toda e qualquer ação dos indivíduos.
O termo educativo neste trabalho tem o mesmo significado que Hurtado (1992) lhe atribui, ou seja, o sentido de educar não é entendido como um fator escolar onde quem sabe (ainda que seja sobre política) informa e “educa” quem não sabe; mas é um processo contínuo e sistemático de interação entre prática e teoria, impulsionado e acompanhado por aqueles militantes que têm maior nível e capacidade de análise, reflexão e ação.
Para Gohn (1994), falar da existência de processos educativos que se desenvolvem fora dos canais institucionais escolares implica em ter, como pressuposto básico, uma concepção de educação que não se restringe ao aprendizado de conteúdos específicos transmitidos através de técnicas e instrumentos do processo pedagógico escolar, mas a concepção de educação em questão é adquirida através de várias formas abrangendo inúmeras dimensões que se articulam sem que determinem nenhum grau de prioridade. A autora nomeia três delas: a dimensão da organização política, a dimensão da cultura política e a dimensão espacial temporal.
Com relação à dimensão da organização política, Gohn (1994:17) afirma que:
“A consciência adquirida progressivamente através do conhecimento sobre quais são os direitos e os deveres dos indivíduos na sociedade, hoje, em determinadas questões por que se luta, leva concomitantemente à organização do grupo. Este processo não se dá espontaneamente e dele participam vários agentes. As acessórias técnicas, políticas e religiosas que atuam junto aos grupos populares desempenham um papel fundamental no processo.”
Nesse sentido, os partidos políticos, os sindicatos e federações, entre outros agentes, contribuem para que os militantes dos Movimentos Sociais, neste caso, o Movimento Estudantil, aprendam os mecanismos da organização e da participação social, bem como as estratégias de lutas a serem adotadas em determinadas situações. Estes adquirem, também, informações que lhes são úteis para compreender o funcionamento de determinados órgãos públicos e os trâmites legais para se obter determinadas reivindicações.
Outra dimensão do caráter educativo dos Movimentos Sociais, nomeada pela autora, refere-se à dimensão da cultura política, que diz respeito à experiência adquirida pelos militantes através da vivência nos inúmeros embates sociais. Assim, através da análise do passado, como opressão, negação de direitos, etc., os grupos obtêm subsídios para a leitura do presente e parâmetros que se transformam em força social organizada. E nesse processo, como afirma Gohn (1994:19).
“Aprende-se a não ter medo de tudo aquilo que foi inculcado como proibido e inacessível. Aprende-se a decodificar o porquê das restrições e proibições. Aprende-se a acreditar no poder da fala e das idéias, quando expressas em lugares e ocasiões adequadas. Aprende-se a calar e a resignar quando a situação é adversa. Aprende-se a criar códigos específicos para solidificar as mensagens e bandeiras de luta, tais como as músicas e folhetins. Aprende-se a elaborar discursos e práticas segundo os cenários vivenciados. E aprende-se sobretudo, a não abrir mão dos princípios que balizam determinados interesses como seus. Ou seja, elabora-se estratégias de conformismo e resistência, passividade e rebelião, segundo os agentes com os quais se defronta. Isso tudo porque ocorre a identificação do processo de ocultamento das diferenças sociais existentes e, conseqüentemente, a identificação dos distintos interesses e classe presente.”
A dimensão espaço-temporal diz respeito à aprendizagens que propiciam, aos sujeitos envolvidos, a superação da consciência fragmentada e individual, dando origem ao ser grupal, resultante da formação da identidade coletiva, do reconhecer-se no outro e de ser reconhecido pelo outro. Normalmente, dentro de um Movimento, as pessoas pensam em “nós” e não apenas em eu, e essa noção do “nós” é gerada no dia-a-dia da luta.
Resumidamente, Grzybowsk (1990:88) afirma que, enquanto espaço de socialização política, os Movimentos Sociais permitem, aos seus militantes, em primeiro lugar, o aprendizado prático de como se unir, organizar, negociar e lutar; em segundo lugar, a elaboração da identidade social, a consciência de seus interesses, direitos e reivindicações, e finalmente, a expressão crítica do seu mundo, de suas práticas e representações sociais e culturais.
Dessa forma, é possível concluir que todo Movimento Social propicia aos membros que o compõe, experiências que possibilitam a aquisição de saberes que os capacitam a intervir na realidade sócio-econômico-política com vistas à sua transformação. Lênin (1978), por exemplo, se por um lado, defendia a necessidade de organização de uma vanguarda (partidos políticos) para dar direção aos movimentos de transformação social, por outro lado, concebia como o verdadeiro produto da revolução, o homem comum que se transforma com sua participação no processo revolucionário, dando origem a um novo homem -- o sujeito militante. Ou seja, o autor reconhecia a importância do engajamento político do indivíduo nas diversas formas de práticas sociais como fonte de aprendizagem e mudança.
Portanto, tal como afirma Vasquez (1977:185), é na práxis, isto é, “na atividade material humana transformadora do mundo e do próprio homem”. Em outras palavras, é no defrontar-se com o outro é que se dá o passo inicial para o processo de conhecimento e libertação. Estes são um dos fundamentos básicos da participação social, pois é nesse processo que o ser humano adquire saberes que o torna um ator consciente de sua importância para a construção de si e da sociedade.
Contudo, esse saber, ou o ser consciente, não nasce com o homem, mas é um produto social de construção forjada na interação, na vivência ou na produção material humana. Como afirma Marx & Engels (1999:37):
“Os homens, ao desenvolverem sua produção material e seu intercâmbio material, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.”
Portanto, os saberes, bem como a consciência, são adquiridos através da integração do homem consigo mesmo e com o mundo e surgem da necessidade e com a exigência dos contatos com os outros homens. Nas palavras de Marx & Engels (1999:36), “a consciência é, pois um produto social e continuará sê-lo enquanto houver homens”.
Como se pode verificar, Marx & Engels referem-se à consciência do homem, tomando como ponto de partida, os saberes que este adquire na sua atividade produtiva, ou seja, no fazer prático em sociedade. Segundo os autores, é nesse processo que os homens exercem mudanças significativas em si mesmo, no seu modo de viver e nas suas relações com outros homens e na natureza.
Lênin (1978), assim como Marx, enfatiza nos seus escritos, a importância do saber teórico para educar a massa, ou seja, para educar os militantes do Movimento Social para uma ação transformadora, mas reconhece que o engajamento político da massa nas diversas formas de participação de cunho político é indispensável para a formação de uma consciência transformadora. Nessa perspectiva, o autor afirma que “o conhecimento não pode ser apenas teórico, mas fundamentado na experiência prática da vida política” (Lênin, 1978:55).
Nesse mesmo sentido, Gramsci (1995) é outro autor que enfatiza a importância dos intelectuais orgânicos -- que são os dirigentes teoricamente especializados --, para educar a massa e dar direção ao movimento rumo às transformações. O mesmo se configurou como um desses intelectuais de Movimento Social, mas valorizou o processo de participação como a maior escola para sua formação.
De acordo com Máximo (1999:57), Gramsci, antes da prisão, estudava e escrevia sempre no calor da luta. Como autor engajado, discorria sobre o tema que a realidade política do momento lhe apresentava. Seus textos eram feitos em função da organização do Partido do qual era militante, dos conselhos da fábrica, dos congressos, da política com aliados no Partido e com adversários internos e externos.
Assim, Gramsci, Lênin e Marx, teóricos de incontestável prestígio no campo dos estudos sobre os Movimentos Sociais, não só valorizaram a importância da militância, mas eles próprios foram intelectuais engajados, cujas contribuições teóricas refletem o aprendizado junto ao movimento proletário. Como afirma Máximo (1999:60), a base para a análise social penetrante desses autores, não se limita ao aprendizado dos bancos escolares, ainda que o processo de escolarização lhes tenham sido de enorme importância. No entanto, este processo não lhes teria permitido perceber tão profundamente o ponto de vista do proletariado de modo a transformá-lo em um sólido corpo doutrinário e filosófico.
É nesse envolvimento e nessa participação ostensiva na luta política, em uma situação tão adversa -- se comparada à situação do intelectual que produz no conforto de sua sala de estudo --, é que ganha maior consistência a afirmação de Marx & Lênin (1999:12): “o educador precisa ser educado”.
Nessa direção, Melucci (apud Gonh, 1997:158) afirma que os próprios atores coletivos são criados no curso das atividades, ou seja, eles se constituem a partir dos tributos que escolhem e incorporam como sendo os melhores para definir suas ações. Dessa forma, o ator individual transforma-se em um membro do ator coletivo no processo da ação coletiva, ganhando identidade nova -- que não é só sua --, mas ganha existência enquanto parte do coletivo.
Portanto, é no processo de participação que os próprios sujeitos se transformam a partir de suas relações sociais, como um processo no interior da prática social, fruto do acúmulo de experiências engendradas. Neste sentido, Gohn (1994:30) afirma que, a partir da participação em Movimentos Sociais, com o tempo, se é possível visualizar algumas diferenças produzidas pelas experiências e os aprendizados que a liderança vai adquirindo no decorrer do processo participativo:
“Existe um aprendizado que não é mensurável mas é observável nas lideranças: aprendem a falar em público, aprendem a redigir qualquer tipo de carta, desenvolvem o senso crítico sobre quem os ajuda e quem os engana, quem devem ser os aliados e quem devem ser os inimigos, os procedimentos burocráticos, entre outros.”
Porém, de onde surgem esses conhecimentos? Como ocorre o processo educativo? A estas questões, Gohn (1997:50-1) responde:
“Nos Movimentos Sociais, a educação é autoconstruída no processo e o educativo surge de diferentes fontes, a saber: 1) Da aprendizagem gerada com a experiência de contato com fontes de exercício do poder; 2) Da aprendizagem gerada pelo exercício repetido de ações rotineiras que a burocracia estatal impõe; 3) Da aprendizagem das diferenças existentes na realidade social a partir da percepção das distinções nos tratamentos que os diferentes grupos sociais recebem de suas demandas; 4) Da aprendizagem gerada pelo contato com as assessorias contratadas ou que apóiam o movimento; 5) Da aprendizagem da desmistificação da autoridade como sinônimo de competência, a qual seria sinônimo de conhecimento. O desconhecimento de grande parte dos “doutores de gabinete” de questões elementares do exercício do cotidiano do poder revela os fundamentos desse poder: a defesa de interesses de grupos e camadas.”
Ainda segundo esta autora, essas fontes e formas de saberes, nos Movimentos, constituem um instrumento poderoso das classes populares, no sentido de atingirem seus objetivos. Estes saberes geram mobilizações e inquietações que põem em risco o poder constituído, ainda que seja um poder exercido por uma administração dita popular. E as contradições aparecem de forma inevitável: a desqualificação do saber como anárquico e a necessidade de uma racionalidade baseada na eficiência.
Conforme Gohn, ainda, a principal alteração que a prática cotidiana nos Movimentos populares opera é na natureza das relações sociais. O processo de aprendizagem não ocorre apenas no desenvolvimento da consciência individual. Esta é uma das faces mais visíveis. Entretanto, o resultado mais importante se dá no plano coletivo, pois as práticas reivindicatórias dos Movimentos passam por processos de transformação, nas estruturas das máquinas burocráticas estatais e nos próprios Movimentos Sociais. Nesses processos, a pressão e a resistência agem demarcando alterações nas relações entre os agentes envolvidos. Neste sentido, o caráter educativo é duplo: para o demandatário e para o agente governamental, controlador/gestor do bem demandado.
Enfim, é dentro desse entendimento que se situa o Movimento Estudantil, enquanto modus operandi que integra em si a dialética da luta, enquanto Movimento Social e o seu caráter educativo produzindo um novo sujeito crítico, conhecedor e partícipe da e na história.
A despeito da dimensão educativa do Movimento Estudantil, assim como dos demais Movimentos Sociais, não se pode afirmar que todos os indivíduos apreendem esses conhecimentos de forma homogênea, ou que todos se transformam no processo. O que de fato ocorre é que cada aprendizado depende do grau de socialização do indivíduo no grupo. Nesta perspectiva, Tedesco (1995:11) lembra que o processo de socialização nunca permite ao sujeito interiorizar a totalidade da realidade existente, embora seja impossível o fracasso total de uma socialização.
CAPÍTULO IV
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS:
O FAZER DA PESQUISA
O presente capítulo tem como intuito descrever os passos metodológicos seguidos com a finalidade de compreender que saberes são construídos pelos sujeitos no processo de socialização no Movimento Estudantil da UFMT - Cuiabá, e que saberes são transportados pelos sujeitos que encerram suas atividades no Movimento e se inserem em outro “submundo institucional”. Para tanto, o presente capítulo foi estruturado da seguinte forma: 1) os sujeitos, 2) os instrumentos, 3) os procedimentos de coleta de dados, e 4) critérios de análise de dados.
De modo a se avaliar quais saberes são construídos pelos sujeitos no processo de socialização no Movimento Estudantil da UFMT, e que sabres são transportados pelos sujeitos que encerram suas atividades no Movimento e se inserem em outro “submundo institucional”, o presente estudo realizou uma pesquisa de cunho qualitativo e exploratório, considerando que, segundo Gil (1999:43), as pesquisas de caráter exploratório são normalmente utilizadas quando se procura oferecer uma visão mais aproximada acerca de um determinado tema, cujo conhecimento ainda não permite hipóteses precisas.
1. Os sujeitos
Para se buscar informações a respeito dos saberes construídos e transportados pelos sujeitos, foram entrevistados oito ex-lideranças do Movimento Estudantil da Universidade Federal de Mato Grosso, do campus de Cuiabá, que militaram de forma efetiva, à frente das articulações, organizações, discussões e mobilizações do Movimento, tanto no DCE como em outras instâncias representativas e deliberativas da UFMT tais como no Conselho Universitário (CONSUNI), no Conselho de Pesquisa e Extensão (CONSEPE), nas reuniões do Colegiado de curso e de departamento, e como membros da presidência da Casa Estudantil Universitária (CEU).
A opção por entrevistar apenas lideranças deveu-se ao fato de que estes sujeitos mantêm uma participação mais regular e ostensiva que os demais estudantes, e que devido a isto, conseqüentemente, criam laços mais fortes de identificação e pertença ao grupo, ou seja, são sujeitos que mantêm uma atividade efetiva e um alto nível de integração ao grupo. Para a seleção dos sujeitos da pesquisa foram levadas em consideração a sua participação e o grau de representatividade efetiva no ME durante o período de sua atuação. Dessa forma, foram entrevistados oito sujeitos que militaram no ME desde as primeiras mobilizações que ocorreram a partir de 1976, abrangendo seqüencialmente os sujeitos que militaram até o final da década de 90. A escolha por investigar os ex-líderes do ME da UFMT desde as primeiras mobilizações até a atualidade, deveu-se principalmente à intenção de buscar uma visão geral, ao longo da história do ME da UFMT, assim como tendo em vista a necessidade de buscar investigar estudantes que já tenham concluído o curso superior e que se encontram engajados no mercado de trabalho.
A seguir, será apresentado, de forma sucinta, o perfil dos sujeitos estudados, principalmente no que se refere ao ano de ingresso e saída da UFMT, curso que freqüentou na UFMT, período de atuação no Movimento e a(s) função(ões) exercidas.
GJA = ingressou na UFMT em 1976, no curso de Geologia, o qual concluiu em 1982. Posteriormente, estudou durante dois semestres no curso de Engenharia Elétrica, dois semestres no curso de Física e dois semestres no curso de Economia. Militou no ME no período de 1976 a 1980 e exerceu as seguintes funções: representante de turma e líder da primeira greve do RU em 1976, representante do Colegiado de curso e representante do Colegiado departamental, em 1970, fundou o DCE no final de 1979 do qual foi o primeiro presidente, de 1979 a 1980, e tornou-se articulista político a partir de 1980 até 1985. Atualmente é técnico pesquisador da Universidade Federal, articulista político e militante do PSDB.
LJC = ingressou na UFMT em 1982, no curso de Serviço Social e deixou a Universidade em 1989 sem concluir o curso. Atuou no ME no período de 1983 a 1987, exerceu as funções de diretora de Assistência ao Estudante de 1983 a 1984, foi secretária geral do DCE no período de 1984 a 1986, foi uma das primeiras mulheres a ocupar um cargo no Diretório Central Estudantil de Cuiabá. Não era filiada a qualquer partido político durante a vida universitária e nem o é atualmente. Hoje, LJC diz ser poetisa e declara que sua ação política social é feita através de suas poesias.
NMS = ingressou na UFMT em 1985, no curso de Agronomia no qual permaneceu por cinco semestres. Em 1991, ingressou no curso de Radialismo o qual cursou até 1999, sem, no entanto, concluí-lo. Permaneceu fora da Universidade por dois anos, e no ano de 2000, retornou à Universidade para cursar Filosofia. Atuou no ME no período de 1985 a 1993 e exerceu as seguintes funções: primeiro presidente da Casa do Estudante (CEU), presidente da Associação Atlética Acadêmica do Centro de Ciências Sociais Agrárias (AAA-CCA) e coordenador geral do DCE, em 1991. Atualmente, NMS trabalha como técnico concursado da Secretaria de Estado de Educação (SEDUC). É militante do Partido dos Trabalhadores mas não exerce qualquer função específica no partido.
ALC = ingressou na UFMT em 1987, no curso de Direito, o qual concluiu em 1991. Militou no ME no período de 1987 a 1990 e exerceu as funções de secretário geral do DCE, representante discente do CONSUNI no período de 1988 a 1989, presidente regional da UNE no período de 1989 a 1991 e secretário geral do CA de Direito em 1991. Atualmente, trabalha na UFMT como professor concursado da Faculdade de Direito há oito anos, é procurador do Estado de Mato Grosso, presidente da Associação dos Procuradores do Estado há três anos, conselheiro federal suplente da Ordem dos Advogados de Mato Grosso, presidente da Escola Superior de Advocacia, conselheiro da ONG ambientalista - Instituto Centro de Vida e foi eleito, em outubro de 2001, como presidente do Partido dos Trabalhadores de Mato Grosso.
JML = ingressou na UFMT em 1991, no curso de Educação Artística e concluiu seu curso em 1995. Militou no ME no período 1992 a 1995 e exerceu as seguintes funções: secretário geral do CA de Artes (CAART) de 1992 a 1993, vice-presidente do CAART e coordenador de cultura do DCE de 1993 a 1994, coordenador administrativo do DCE e membro do CONSUNI, em 1995, membro do Colegiado de Departamento, em 1994 e membro do Colegiado de curso, em 1993. Atualmente, é funcionário da Secretaria de Saúde de Cuiabá e exerce a função de Arte Educador. Também é membro da direção do Partido dos Trabalhadores de Cuiabá e milita no Sindicato dos Servidores Municipais ocupando um cargo executivo.
ACS = ingressou na UFMT em 1991, no curso de Economia concluindo-o em 2000. Atuou no ME de 1992 a 2000 exercendo as funções de líder de sala e membro do Colegiado de departamento, em 1991, diretor de pesquisa do CA de Economia (CAECO) e delegado do congresso da UNE, em 1992, membro eleito do CONSEPE (Conselho de Pesquisa e Extensão) em 1993, diretor do DCE, de 1993 a 1995, membro do CONSUNI (Conselho Universitário), delegado do congresso da UNE, presidente do CAECO, em 1997, membro do Colegiado de curso, no período de 1997 a 1998 e membro do Colegiado de departamento, em 1999. Atualmente, ACS trabalha como projetista autônomo, desenvolvendo projetos na área ambiental e político junto ao Conselho Regional de Economia de MT (CORECOM-MT), e é militante do PC do B no qual se encontra filiado desde 1989.
BLM = ingressou na UFMT em 1992, no curso de Engenharia Florestal, com previsão de conclusão no segundo semestre do ano de 2001. Atuou no ME no período de 1992 a 1997 exercendo as funções de coordenador de eventos culturais do Centro Acadêmico do Curso de Engenharia Florestal (CAENF), em 1993, presidente do CAENF, em 1994 e 1995 e coordenador geral do DCE, no período de 1995 a 1997. Atualmente, trabalha na assessoria do senador suplente Blairo Maggi, e sua função como assessor é a de formar novas lideranças políticas no interior do Estado de Mato Grosso, formar diretórios e fazer novas coligações em favor do senador. É também militante do Partido Popular Socialista, tesoureiro da Associação dos Moradores do Bairro Alvorada e militante em uma ONG ambiental.
KAL = ingressou na UFMT no curso de Jornalismo em 1992, e concluiu-o em 1997. Militou no ME no período de 1992 a 1996, durante o qual foi coordenador de imprensa do DCE. Atualmente, trabalha no Jornal Diário de Cuiabá como jornalista e sua função é a de dar cobertura aos assuntos políticos do Estado. É militante do Partido Comunista do Brasil há 16 anos, período no qual exerceu as funções de membro da Executiva Regional, membro da Diretoria Regional e membro do Diretório Municipal de Cuiabá, embora hoje não ocupe qualquer cargo na estrutura do Partido.
Os sujeitos pesquisados representam, deste modo, uma parcela da totalidade das lideranças que atuaram desde 1976 até o final da década de 90, na UFMT. A seleção de uma amostragem de oito sujeitos para o estudo deveu-se às condições de disponibilidade de tempo para realizar uma investigação mais complexa e à falta de condições de acesso às pessoas representativas desta categoria. Deste modo, a seleção dos sujeitos pautou-se em dois princípios: o da amostragem por acessibilidade e da amostragem por tipicidade.
Segundo Gil (1999:104), na amostragem por acessibilidade, a seleção realizada pelo pesquisador se dá com base nos elementos que tem acesso, admitindo que estes, de alguma forma, possam representar o universo. E a amostragem por tipicidade constitui um tipo de amostra que consiste em selecionar um subgrupo da população, com base em informações disponíveis que atestam que esse subgrupo possa ser representativo de toda a população.
Assim, tomando como base as considerações acima, foram selecionados para estudo, aqueles líderes mais indicados por outros militantes, ou aqueles que, na pesquisa documental, demonstraram destaque e maior engajamento no Movimento.
2. Os instrumentos
Para investigar os saberes construídos pelos ex-militantes no processo de socialização do Movimento Estudantil, foi elaborado um roteiro de entrevista com questões abertas. As questões que compuseram o roteiro de entrevista foram as seguintes:
1. Onde você trabalha atualmente?
2. Qual a função que exerce ou qual o cargo que ocupa?
3. Você pertence a algum movimento social (Sindicato, Associação de Trabalhadores, de bairro, ONG, ou outros), ou partido político?
a). Se não participa, por quê?
b) Se participa, em qual? Qual função exerce no movimento? Quais as atividades que desenvolve lá? Qual é a proposta desse grupo?
c) Se participa de partido, em qual ? Qual é a sua função no partido? Qual a proposta do partido?
e) O que significa pertencer a este(s) grupo(s)?
f) Há quanto tempo pertence a esse(s) grupo(s) ?
4. O que significa uma luta social para você?
5. Em sua opinião, como se encontram hoje:
a) as lutas sociais em curso na sociedade?
b) os Movimentos Estudantis Universitários?
6. Como você ingressou no ME?
7. Conte como você se tornou um(a) líder do ME.
8. Como foi sua experiência no ME?
9. Participar do ME, trouxe alguma contribuição para sua vida? Em que aspecto?
10. Qual a relação entre a sua experiência no ME na UFMT e:
a) o seu trabalho atual?
b) o seu cotidiano?
11. O que você sentiu e pensou quando se tornou um profissional com nível superior?
12.Como as pessoas reagem quando tomam conhecimento de que você foi líder do Movimento Estudantil Universitário? E como você reage diante desse comportamento?
3. Os procedimentos de coleta de dados
A coleta de dados se deu basicamente através de entrevistas que foram realizadas entre os meses de abril e agosto de 2001. Após identificados e selecionados os sujeitos da pesquisa, estes foram contatados com o fim de agendamento de horário e local da entrevista. Todas as entrevistas foram realizadas no local e no horário indicados pelos entrevistados, sendo que três delas foram feitas na residência dos sujeitos, duas na UFMT, duas no local de trabalho do entrevistado, e uma na sede do partido ao qual pertence o entrevistado. Todas as entrevistas foram gravadas após prévia consulta e aceite dos entrevistados. Posteriormente, todo material gravado foi transcrito e analisado.
4. Critérios de análise dos dados
Os dados obtidos por meio das entrevistas foram analisados considerando os seguintes critérios: a) razões que levaram os sujeitos a se engajarem no ME da UFMT, b) saberes construídos durante o processo de socialização no ME da UFMT, c) saberes transpostos da vivência no ME da UFMT ao se inserir em um novo “submundo institucional”.
a) Sobre as razões que levam o sujeito a ingressar no ME e a tornar-se um líder
Para identificar como se deu o ingresso dos sujeitos no ME e como este se tornou líder do ME foram consideradas as repostas às seguintes questões: a) Como você ingressou no ME? E b) Como se tornou um líder do ME?
b) Sobre os saberes construídos
Para identificar os saberes construídos pelos sujeitos na vivência no ME foram consideradas as respostas às seguintes questões: a) Como foi sua experiência no ME? b) Participar do ME trouxe alguma contribuição para sua vida? Em que aspecto?
c) Sobre os saberes transpostos
Para identificar os saberes transpostos da vivência no ME para outros ambientes de socialização secundária, foram consideradas as respostas às seguintes questões: a) Qual a relação entre sua experiência no ME na UFMT e o seu trabalho atual? b) O que você sentiu e pensou quando se tornou um profissional de nível superior? E c) Você pertence a algum Movimento Social ou partido político?
CAPÍTULO V
RESULTADO DA ANÁLISE DOS DADOS
Para compreender os saberes construídos pelos militantes da liderança do ME da UFMT, bem como as contribuições desses saberes para a vida do estudante, buscou-se, através de entrevistas, conhecer, em primeiro plano, como o sujeito ingressou no ME e como foi sua atuação como líder estudantil; no segundo plano, que saberes os sujeitos construíram na vivência no ME e quais as relações entre o ME e a vida profissional e político-social do sujeito na atualidade.
1- Sobre o ingresso dos sujeitos no ME
GJA = ingressou no ME quando ainda cursava o ensino fundamental no Colégio Agrícola, no qual fundou o Jornal e o Grêmio Estudantil. No segundo grau, GJA deu continuidade à sua participação, destacando-se como um dos líderes do movimento de greve do REMAP (Restaurante Estudantil Municipal de Ensino Fundamental e Médio). Ao ingressar na UFMT, seu envolvimento no ME foi considerado como “quase que de forma automática” e tornou-se liderança do ME a partir de um discurso que fez na primeira greve do curso de Geologia, em 1977.
LJC = não havia tido qualquer tipo de participação política antes de seu ingresso na UFMT, e inseriu-se no Movimento Universitário através de um convite dos colegas de curso que já atuavam no ME, face ao seu destaque no curso, de um lado, como uma aluna brilhante, e de outro, por ter sido monitora. LJC foi reconhecida pelos colegas como liderança do DCE, acima de tudo, através de muito trabalho e dedicação ao ME, mas sua consagração definitiva como líder ocorreu a partir de dois momentos de mobilização estudantil; a primeira foi durante o enfrentamento com o reitor quando fez um discurso em que manifestou suas idéias e enfrentou as autoridades dentro da universidade, e o segundo, foi durante a mobilização pelas Diretas Já, quando foi convidada pelo presidente do DCE para fazer o encerramento da passeata.
NMS = ingressou no ME através de um tio e seus amigos que já eram ativos no DCE da UFMT, mas começou a dar seus primeiros passos no ME, quando era secundarista e freqüentava o REMAP, onde passou a conhecer pessoas que participavam no ME secundarista. Mais tarde, na companhia de outros estudantes, concorreu e venceu a eleição para a AME (Associação Mato-grossense Estudantil). Ao passar no vestibular, deu continuidade à sua participação política no ME universitário e tornou-se um dos líderes do DCE a partir da militância na Casa Estudantil, onde morava. Nesse período (1985), eram intensas as lutas estudantis pela construção da CEU (Casa Estudantil Universitária). Ao longo de sua atuação no ME, NMS foi ganhando visibilidade até candidatar-se e ganhar as eleições para presidente do DCE, em 1991.
ALC = iniciou sua participação no ME ainda no Ensino Médio, quando foi diretor do Centro Cívico da Escola Agrícola, onde estudava. Após a reabertura democrática, em 1979, contribuiu para que o Centro Cívico, apenas de cunho cultural e esportivo, se transformasse em um grêmio estudantil, de cunho político. Ao ingressar na UFMT, deu continuidade à sua participação política, mas seu reconhecimento como líder veio através de uma atuação efetiva no Centro Acadêmico de seu curso, o que o levou a ocupar um espaço no DCE, e posteriormente, na diretoria da UNE.
JML = foi na UFMT que teve sua primeira participação no ME, e seu engajamento se deu através da relação de amizade com algumas pessoas que já faziam parte da direção do Centro Acadêmico do seu curso. Através desses amigos, começou a inteira-se das discussões e a participar das reuniões, até que certo dia, recebeu um convite para fazer parte de uma chapa para concorrer às eleições do DCE, a qual foi eleita. JML acredita que sua identidade de líder surgiu através de uma construção, de um processo de acúmulo de experiência, de formação, de participação que foi crescendo até chegar à coordenação do DCE.
ACS = a sua primeira participação foi na UFMT, como líder de sala. Depois, ACS passou a atuar no CA, em seguida no DCE através do convite de uma colega que fazia parte do CA e do DCE, até tornar-se líder estudantil.
BLM = iniciou sua atuação política no ME quando ainda estudava no Colégio Agrícola, e ao ingressar na UFMT, começou a organizar torneios de futebol dentro de seu curso, até que foi convidado por alguns colegas a formar uma chapa para concorrer à liderança do CA. Neste período, destacou-se pela sua atuação, e na eleição seguinte, candidatou-se e tornou-se presidente da chapa. Durante a sua gestão, sua visibilidade foi crescendo até ser apontado pelos colegas como líder de uma chapa para concorrer ao DCE, o qual venceu as eleições.
KAL = ingressou no ME, em 1985, quando ainda cursava o Ensino Médio. Durante este período, teve uma participação efetiva no Movimento Estudantil secundarista, participou do grêmio estudantil de sua escola e foi presidente da AMES. Ao ingressar na UFMT, sua inserção no ME foi imediata. Tornou-se líder do DCE através de uma composição de força do seu grupo político - o JS (Juventude Socialista) com outros grupos menos partidários. Segundo KAL, sua presença na chapa contribuiu para atrair votos, sobretudo devido à sua experiência que trazia do movimento secundarista, principalmente quanto à capacidade de realização de discursos e ao conteúdo político que apresentava.
Percebe-se que entre as oito lideranças entrevistadas, cinco delas começaram sua atuação política estudantil no ensino médio, e três deles, após ingressarem na universidade. Esses dados mostram que a escola, assim como a universidade, exercem uma função importante na vida do estudante, para além da educação formal, pois as duas instituições se constituem em ambientes que podem contribuir no processo de construção do sujeito sócio-político, desde que estas estejam abertas para a criação de espaços destinados à organização de Grêmios, Associações, Centros Acadêmicos ou outras organizações que possam estimular a participação política, a criação e o cultivo de um ambiente democrático e dialógico.
Entende-se que é desta forma que se diminui a distância que existe entre os saberes escolares e o saber que permeia o mundo dos movimentos juvenis, sobre o prisma de que ambos os saberes são complementares e importantes para a formação do ator social e crítico. Os resultados permitem-nos, também, compreender que escolas e universidades devem estabelecer uma relação de diálogo com essas forças, que podem estar submersas nas salas de aulas, nos pátios e corredores, sob a aparência do aluno passivo, mas que, contrariamente, são importantes atores para a inovação política e social tanto das instituições educacionais como da sociedade em geral. Nesse sentido, a escola, a sala de aula pode configurar-se num espaço de construção de sujeitos que procuram compreender sua presença no mundo e a buscar construir projetos em condições desafiadoras.
Foi nesse processo de participação em Movimentos Estudantis que os sujeitos aqui pesquisados iniciaram a marcar o seu EU no mundo, onde passaram a ter consciência da importância de sua atuação, onde passaram a identificar-se e a serem identificados dentro de um processo social e político de construção de seu ser. Puderam conhecer-se e se fazerem re-conhecidos como estudantes militantes e cidadãos. Segundo Mead (apud Dubar, 1993), este processo de conhecimento e reconhecimento do Eu implica que o indivíduo não seja apenas um membro passivo do grupo, que interiorizou seus valores gerais, mas que seja um ator que desempenha no grupo um papel útil e reconhecido.
2- Sobre os saberes construídos no processo de socialização no ME
No processo de socialização no ME, os saberes construídos pelos sujeitos são diversificados e abrangem diversas dimensões. Isto se deve às múltiplas relações que o estudante estabelece com diferentes agentes socializadores no interior do ME e às variadas ações que desenvolvem ao longo de sua militância. Assim, para efeito de organização da análise, os saberes construídos pelos sujeitos aqui estudados foram classificados como sendo de quatro tipos: a) os saberes construídos na socialização no ME enquanto processo de construção do Eu na relação com o Outro; b) os saberes construídos na socialização no ME enquanto processo de desenvolvimento da consciência do Eu em relação ao Outro; c) saberes construídos na socialização no ME enquanto lócus de formação política; d) saberes construídos na socialização no ME enquanto processo multi-interativo. Essa divisão em categorias possibilita maior clareza na compreensão não somente dos saberes construídos como também de como são construídos.
a) Saberes construídos na socialização no ME enquanto processo de construção do Eu na relação com o Outro
Conforme Dubar (1997:13), no processo de socialização, a relação com o Outro é fundamental para a construção de um Eu social-político, coletivo e histórico. Tal construção só é alcançada através da prática militante estabelecida na relação do sujeito consigo mesmo, com os outros homens e com a realidade que o cerca. Inserido nesse processo, o sujeito, aos poucos, vai mudando ou construindo sua concepção de mundo, transformando-se e adquirindo uma identidade social. Isto porque a identidade humana não é dada, de uma vez por todas, no ato do nascimento; contrariamente, o sujeito constrói-se na infância e reconstrói-se sempre ao longo da vida. O indivíduo nunca a constrói sozinho: ele depende tanto do julgamento dos outros como das suas próprias orientações e definições. A identidade é, portanto, um processo de sucessivas socializações.
O processo de construção dos sujeitos aqui pesquisados, desta forma, ocorre no interior do processo de socialização através de sua participação efetiva no ME, sobretudo através do contato com o Outro e das diferentes ações empreendidas. E assim, os sujeitos desenvolvem a si mesmo, incrementando seus conhecimentos e habilidades úteis para as atividades a serem desenvolvidas não somente no Movimento, mas também no decorrer de sua vida prática pessoal. Esses conhecimentos e habilidades construídos dizem respeito à aquisição de autonomia pessoal, do desenvolvimento da capacidade de enfrentar desafios e resolver novos e inesperados problemas, saber relacionar com os aliados mas também com os adversários, a relacionar-se com as instâncias de poder, bem como entender seu funcionamento e acreditar no poder das idéias e das ações, etc. Esses saberes, como perceberemos nas falas dos sujeitos, aos poucos, foram exercendo certa influência não só sobre o Movimento como também sobre as pessoas individualmente.
LJC - “(...) a guerreira que sou na vida brotou no Movimento Estudantil, a poeta ativista na atitude de esotérica com uma postura renovada e arejada, na questão existencial, a mulher que briga pelo direito de ser doce, de ser plena, que acredita que ainda dá pra levar a vida sem ser só no fundo de uma varanda, a mulher que se rebela da instância da possibilidade feliz e bolorenta da esfera matrimonial, que tem medo da felicidade que anestesia e embota, essa mulher que pode respirar, que sofre, chora, que é absolutamente humana nasceu no Movimento Estudantil, o Movimento Estudantil foi meu berço de adulto. O DCE, foi a minha segunda casa, foi onde a intelectualidade deixou de ser letra morta e eu aprendi o embate, que é a condição sine qua non pra você estar plenamente na vida, eu aprendi lutar, sentir a palavra lutar, eu não estou falando da baioneta, nunca peguei numa arma . Eu estou falando da aplicabilidade.”
ACS- “Eu tinha diversos conflitos pessoais que eu superei dento do ME, conhecendo pessoas e novas visões, principalmente, novas visões, tanto com alunos, professores, técnicos, as posturas. As convivências fizeram minha vida ser melhorada cem por cento, até antes de formar considero que eu já estava bom.”
GJA - “Eu acho que não seria nada do que sou sem o Movimento Estudantil.”
Assim, vê-se que os sujeitos referem-se às múltiplas relações estabelecidas no interior do ME, como as “pessoas de novas visões”, os professores, técnicos, alunos, enquanto socializadores que contribuíram para a modificação de sua história individual, como por exemplo, ao declararem que “o ME foi meu berço de adulto”, “aprendi o embate que é a condição sine qua non para você estar plena na vida”, “as convivências fizeram minha vida ser melhorada”, “não seria nada do que sou sem o ME”. Tais afirmações evidenciam que a aquisição dessa nova identidade foi vivida como um verdadeiro processo de aprendizagem. Como se pode perceber, este novo Eu “guerreira”, “lutadora”, com “nova visão”, “novas idéias”, “de postura renovada”, “ativista”, etc. é forjado na prática, na participação plena.
LJC - “Criar o FLAMP” era uma luta muito grande, era fazer o que você nem sabia (...) Aqueles momentos culturais que a gente fazia com tanta timidez, eu tinha que aprender qual o saco que guardava o violão, quando chegava um porra-louca e grudava no microfone e nunca largava (...) a gente tinha que saber lidar com isso.”
A frase “era fazer o que você nem sabia”, retrata muito bem o conhecimento que vem da prática, do aprender fazer fazendo. Isto não ocorre apenas na organização de um evento cultural, de lazer ou acadêmico, muito realizado pelas lideranças estudantis. Mas também no interior de uma luta social, em um embate político, em uma manifestação ou reivindicação, ou no simples convívio com e no grupo. É nesse processo que se origina o “Eu” – mais experiente, mais apto a ascender a novos níveis de compreensão e pleitear ações sociais mais amplas, para além de si.
Nesse sentido, segundo Dubar (1997:99), a mudança social é inseparável da transformação das identidades, ou seja, através da redefinição de si mesmo, enquanto ator social, é que o sujeito produz e supera as condições que lhe é dada. No ME essa redefinição leva o sujeito ao desejo e empenho para mudanças sociais que, muitas vezes, ultrapassam as fronteiras da universidade. Isso se evidencia quando os estudantes da UFMT engajam-se nas lutas contra os crimes ambientais, a exploração ilegal de mineração, reforma agrária, quando reivindicam reformas políticas nacionais, como emprego, moradia, saúde, etc. Dessa forma, a socialização no ME consiste, como afirma Mead (apud Dubar, 1997), em uma construção progressiva do Eu como membro de uma comunidade e de uma sociedade do qual participa ativamente não só na sua existência, mas também, na sua mudança:
NMS – “Eu acho que o fundamental que eu adquiri no ME, são meus valores, que participando no ME, estando em contato com pessoas que têm a cabeça mais aberta, uma visão crítica, uma visão da sociedade como um todo. (...) O fato de eu não ser uma pessoa alienada da sociedade, dos movimentos, de querer ter alguma atuação na sociedade de uma forma crítica, de querer mudar. Isso aí é uma contribuição concreta do ME pra minha vida.”
Essa nova forma de ver o mundo, sobretudo, com uma visão critica, de querer mudá-lo, provém, sobretudo do entendimento global que se passa a ter sobre o funcionamento da sociedade e dos seus problemas. No momento em que os estudantes reivindicam uma universidade de ensino público e de qualidade, por exemplo, eles não o fazem mecanicamente, tal atividade engloba diversas discussões, pois, é necessário entrar em contato com informações, realizar reflexões, identificar as causas do problema, levantar questionamentos, identificar as autoridades competentes envolvidas e quais são seus interesses e os interesses envolvidos na questão. Com isso, os sujeitos abandonam sua visão ingênua de ver os acontecimentos e tomam posse de novos “valores”, de uma “visão crítica da sociedade”.
Em verdade, neste processo de participação ativa, o sujeito não se satisfaz em participar simplesmente pela causa mais imediata do ME, mas se envolve com projetos mais amplos, tal como a mudança da sociedade. Por outro lado, a aquisição dessa nova identidade social, provém do “contato com pessoas”, isto é, nos diversos jogos relacionais dos quais participa durante a atuação no ME.
Um outro tipo de aprendizagem produzida no contato com o Outro, no ME, ocorre nas relações interpessoais, pois no convívio do dia-a dia no Movimento, consiste em um verdadeiro exercício de tolerância e respeito à pluralidade e às diferenças. Pois, no ME, as lideranças se vêem diariamente tendo que conviver democraticamente com pessoas de diferentes posições e visões políticas, até mesmo pessoais, às vezes, radicalmente contrárias às suas. Esse exercício constante leva o indivíduo a desenvolver-se em termos de relações humanas.
GJA - “O Movimento Estudantil me ensinou a conversar com várias facções diferentes, posições diferentes e admitir pluralidade ...”
ACS - “Com o Movimento em si, (...) eu consegui me relacionar melhor com as pessoas. Eu vim de um modo muito individualista, e ainda com a conseqüência do tempo, do neoliberalismo que provoca isso, e além da família conservadora. Eu consegui vencer tudo isso, isso para mim era um fantasma que me atormentava (...).O ME abre o entendimento, e eu simplesmente comecei a quebrar limites, que eu nunca pensei que seriam quebrados. A sala de aula também me ajudou, as aulas de sociologia, de filosofia, de ciências políticas, eu gostava muito de trocar idéia com os professores fora de sala de aula.”
O depoimento de ACS revela a presença de outros agentes socializadores -- os professores -- que contribuem para as mudanças. Nesse processo, por outro lado, o sujeito realizou uma ruptura com sua socialização primária ( alguns valores interiorizados na família), levando-o a reinterpretar, e de certa forma, romper com a sua biografia passada.
ACS - “(...) eu consegui me libertar de diversos fantasmas que eu tinha na minha vida graças ao ME, por exemplo, esses laços conservadores que eu tinha, minha família, assim ... Meu pai é de família do norte de Portugal, muito conservadora, não admitia certos tipos de vias de conduta, pode se dizer assim ... no que diz respeito à você, entrar em Movimentos Sociais, essas coisas todas. (...) Criei muitos conflitos em casa, implicância, problemas, mas quase não ficava em casa, eu saia de manhã e só voltava em casa pra dormir, minha casa virou um alberg, minha vida ficou sendo na universidade.”
Essa ruptura analisada à luz da teoria de Berger & Luckmann (apud Dubar, 1997) ocorreu devido à distância entre os conteúdos da socialização primária representada pela família (conservadora), e a socialização secundária (progressista) propiciada pelo ME, no qual o sujeito concluiu que o mundo representado pelos seus pais era um mundo restrito e conservador. Neste caso, o ME constituiu-se como uma estrutura de plausibilidade, isto é, como um laboratório de transformação com toda a capacidade de criar e legitimar a separação entre o sujeito militante e as suas antigas raízes conservadoras.
No processo de vivência, no ME, os sujeitos vão construindo também laços de fraternidade e solidariedade entre si. Estes sentimentos e atitudes provêm, sobretudo da identificação entre os sujeitos, da partilha dos mesmos ideais, dos mesmos sonhos ou utopias, por estarem envolvidos nas mesmas lutas. O uso freqüente das palavras companheiro(a), pelos sujeitos participantes dos Movimentos Sociais, pode ser um elemento que indique esse laço de identificação e de pertença. Nesse sentido, de acordo com Pecheron (apud Dubar, 1997:31), socializar-se é assumir o sentimento de pertença a um determinado grupo.
ALC - “Foi no Movimento Estudantil que a gente teve essa integração. Foi fantástico para o relacionamento humano, foi no Movimento Estudantil que a gente conquistou os vínculos de companheirismos, de fraternidade que a gente tem com muitos companheiros que estão no partido até hoje”.
São esses laços de solidariedade, de identificação efetivados nos Movimentos é que consolidam a coesão do grupo, diante de situações de cooperação ou de conflito, paradoxo sempre presente no cotidiano do ME. Esses laços são, portanto, os recursos indispensáveis para que o grupo ganhe força e visibilidade social.
Enfim, o estudo, no que se refere à construção dos saberes no processo de socialização, revelou que no contato com no Outro no ME, os sujeitos aprendem a relacionar com Outros, sobretudo, a respeitar a pluralidade e as diferenças; desenvolvem o senso de companheirismo, solidariedade e tolerância, aprendem a lidar com situações novas e adversas; adquirem autonomia pessoal; passam a entender o funcionamento da sociedade de forma global, assim como os seus problemas; aprendem a acreditar no poder da luta e das idéias. Isto tudo, pode-se dizer, é que faz resultar na redefinição do Eu: Eu companheira(o), progressista, lutador(a), ativista, etc. Estas redefinições de si mesmo fazem sentido em referência à história de cada sujeito, às suas expectativas, às suas concepções de vida, às suas relações com os Outros. Esta redefinição de si abarca também a redefinição de si em relação ao outro, no que diz respeito ao Eu voltado para uma coletividade, para o social.
b) Saberes construídos na socialização no ME enquanto processo de desenvolvimento da consciência do Eu em relação ao Outro
O termo consciência a que se refere aqui trata da experiência que é gerada nas relações interpessoais, nas lutas sociais, nas atividades reais com vistas à transformação do próprio sujeito e do seu meio social. É o processo em que, segundo Melucci (apud Gohn, 1997) o ator individual transforma-se em membro de um ator coletivo no processo da ação coletiva, conquistando assim, uma nova identidade, uma nova consciência, passando a reinterpretar a realidade em que vive com uma visão social e política mais ampliada. Este processo é explicitado nos depoimentos dos sujeitos, indicando que o ME contribuiu para uma visão além de si e de seus interesses políticos estudantis:
GJA - (...) “o Movimento Estudantil contribuiu comigo e com a minha idéia de cidadão, de minha responsabilidade com a questão pública, (...) o Movimento Estudantil me deu, não a idéia de patriotridade pura e simples, o Movimento Estudantil me deu o compromisso de que eu faço parte de uma pátria mas, que eu não sou ninguém sem ajudá-la a construir. Isso o Movimento me deu tão gratuitamente. Foi bonito!”
KAL - “(...) o fato de hoje eu ser uma pessoa com idéias próprias, com convicções, sonhos e perspectiva de vida, que não dizem respeito ao meu patrimônio pessoal, mas que inclui uma perspectiva de coletividade, eu acho que devo isso ao Movimento político, sobretudo estudantil”.
As falas precedentes permitem inferir que essa nova visão de si e do Outro construída no ME, ocorre através do conhecimento da totalidade do funcionamento das teias sociais, dos problemas existentes e do reconhecimento que o sujeito passa a ter sobre a importância da ação coletiva eficaz para uma mudança satisfatória. Essa compreensão conduz os sujeitos não só à re-interpretação e re-significação da realidade social de forma crítica, como também leva ao desejo de construir um novo mundo que venha ao encontro das suas aspirações e da coletividade.
Dessa forma, a participação no ME leva os sujeitos primeiramente a conhecer a realidade social que os envolvem, em seguida, à ‘desalienação”, e depois, à transformação. Esta última, ocorre em duas direções: primeiro, a transformação de si mesmo, e depois, de si em relação ao Outro, na perspectiva do coletivo. Isto porque é na esfera do conhecimento, da consciência, que o sujeito vê a possibilidade de ir além da denúncia, da crítica, privilegiando o agir, entendendo que a mera denúncia ou a crítica não dá conta de realizar a sua aspiração de ser um ator em sociedade.
O uso constante, pelos sujeitos, de expressões como “responsabilidade, “compromisso”, “construir uma nação”, ou a constante demonstração de preocupação com a “coletividade”, denota a presença de um altruísmo que chama a atenção diante da pergunta muitas vezes insurgente na atualidade: “ por que ocupar-se com o outro?”. Esse altruísmo, pode-se dizer, é construído na participação social, que é, na verdade, a construção de uma nova representação de si, em relação a si mesmo e ao Outro, e isto faz a diferença em uma realidade como a atual marcada pelo individualismo. Nesse sentido, o pensamento de Pecheron (apud Dubar, 1997:31) esclarece tal comportamento. O autor afirma que dada representação do mundo adquirida na socialização política, não é imposta pela família de origem ou pela escola, mas cada indivíduo constrói-a lentamente, utilizando imagens retiradas das diferentes representações existentes, que ele reinterpreta para formar um todo original e novo.
Essas novas concepções de mundo, de si, da responsabilidade de agir em beneficio não só a si, mas também em benefício a uma coletividade, configuram-se como um aspecto de um saber complementar à formação acadêmica dos sujeitos, o qual contribui para que o estudante deixe a universidade com uma formação de fato cidadã, uma vez que a sala de aula universitária, em sua maioria, encontra-se um pouco destituída de mecanismos e programas que contribuam para a construção de sujeitos ativos, críticos e coletivos. Essa observação aparece nas falas de dois sujeitos:
NMS - “o ME contribuiu completamente meu modo de ver o mundo, meus valores, me deu uma visão que dentro de sala de aula eu não teria”.
ALC - “Sem dúvida, foi a maior escola de política que eu já tive, e é claro, um momento de grande produção intelectual na esfera política e de grande aprendizado. Os bancos escolares não dão esse instrumental, principalmente no curso que eu fiz.”
O NMS foi estudante de Agronomia e o ALC do cursou de Direito, o que mostra que este fato ocorre independentemente da área de formação. Isto é, o ensino universitário encontra-se lacunoso, e neste sentido, o ME é uma oportunidade singular para suprir essa necessidade.
O estudo revelou, deste modo, que os sujeitos, ao entrarem em relação com o Outro, no ME, desenvolvem-se a si mesmos e adquirem uma nova concepção de mundo, em uma relação dialética, o que os leva à novas práticas sociais coletivas voltadas para a produção e reconstrução da sociedade. Isto se dá devido ao fato de que participando no ME desenvolve-se uma visão crítica da realidade vigente, o senso de coletividade e sobretudo as formas de luta pela construção de uma sociedade melhor. Enfim, no ME os sujeitos aprendem a se ver enquanto sujeitos também responsáveis pela construção da história.
c) Saberes construídos na socialização no ME enquanto lócus de formação política
No processo de construção do sujeito político, a socialização no ME desempenha um papel fundamental porque através desta, os indivíduos tornam-se providos de saberes e experiências culturais que os tornam mais aptos para atuarem no meio político-social, uma vez que este demanda uma linguagem e habilidades específicas e requer o domínio de determinadas competências.
Com base nos depoimentos dos líderes, observa-se que, no interior do ME, se é possível vivenciar inúmeras experiências e dentro delas, a aquisição de saberes decorrentes do fazer político, tais como habilidades para a organização e direção de grupos.
JML - “O ME contribuiu em muitos aspectos para o meu crescimento pessoal. Por exemplo, uma coordenação administrativa, você deve buscar dirigir, organizar e resolver conflitos, quando você está numa direção você tem que conviver com as diferenças e resolver os problemas que essas diferenças trazem, sem estar priorizando um ou outro lado, e a gente aprende a estar convivendo com isso. O Movimento Estudantil (...) pelo menos me mostrou uma direção, de como fazer isso, de como estar coordenando uma reunião, de estar falando em público, pois anteriormente eu não tinha essas experiências, eu não tinha prática, e o ME me deu essas experiências, de estar tendo prática de coordenação de grupo, coordenação de reunião além de outras coisas.”
ALC - “Pois é, eu não seria o ser político que sou hoje sem essa experiência do Movimento Estudantil, foi um momento de desalienação.”
Através dos depoimentos dos sujeitos é possível inferir que o ofício de se relacionar com a coletividade, com a diversidade exige habilidades específicas como de direção, de coordenação, de domínio da linguagem. Tais habilidades vão se construindo na prática, ao mesmo tempo em que o sujeito vai se construindo enquanto sujeito político. Nesse sentido, segundo Sherer-Warren (1998:9), “as posições de sujeitos se constroem nas relações sociais, nas mobilizações políticas e nas formações discursivas”. E, dentre outros, a linguagem comum é um dos elementos fundamentais para a formação da identidade política dos sujeitos. No ME, a partir da interação entre os sujeitos dentro do próprio grupo e de suas relações com outros agentes socializadores, os envolvidos apropriam-se de determinadas palavras ou frases de efeito extraídas de outros Movimentos Sociais, partidos políticos, etc., e sobretudo, aprendem, através de exercícios repetitivos, a falar em público, a argumentar, etc.
NMS - “No Movimento Estudantil, a gente participa de muitas reuniões, debates, muito confronto de idéias (...) A principal coisa prática que aprendi, foi essa questão de saber argumentar, de estar participando, por exemplo, de um grupo e saber defender uma idéia, de falar em público, por exemplo. Antes eu tinha dificuldade muito grande de falar, antes de estar participando.”
ACS - “Uma coisa que eu era péssimo, era em oratória, tinha problemas muito forte, ainda tenho alguns problemas na dicção, só que eu tenho desenvoltura suficiente pra me expressar, eu tenho bagagem agora. Posso dizer que eu tenho bagagem pra ocupar qualquer função na área econômica, posso transpor diversas carreiras, graças ao ME.”
Essas habilidades da fala, da argumentação, de saber fazer uso de diferentes linguagens, constituem-se em uma das principais habilidades que o sujeito político deve possuir, e a vivência no Movimento Estudantil, assim como em outros Movimentos Sociais, torna possível o desenvolvimento dessas habilidades. Como afirma Gohn (1994:19), nos Movimentos Sociais, os sujeitos aprendem a acreditar no poder da fala e das idéias, quando expressadas em lugares e ocasiões adequadas, mas aprendem também a calar e a resignar quando a situação é adversa. Aprendem a criar códigos específicos para solidificar as mensagens e bandeiras de lutas, tais como as músicas, folhetins etc. Aprendem também a elaborar discursos e práticas segundo cenários vivenciados.
O ME é considerado, dessa forma, pelos sujeitos envolvidos, como uma escola de formação política, onde se constroem múltiplos saberes que marcam profundamente a identidade do sujeito, uma vez que estes transcendem a vida universitária influindo em todos os setores da vida do sujeito, como por exemplo, na participação partidária, na escolha do partido, no momento do engajamento em outros Movimentos Sociais, entre outros.
ALC - “Sem dúvida, foi a maior escola de política que eu já tive, e é claro, um momento de grande produção intelectual na esfera política e de grande aprendizado.”
BLM - “O ME dá a contribuição de vivência de experiência, eu acho que foi enriquecedor na questão da minha formação crítica, posicionamentos com relação à algumas questões políticas, minhas decisões até partidárias passam muito por aí. O Movimento Estudantil é uma vida. (...) Essas outras militâncias, minhas militâncias, hoje são resultados de uma participação no Movimento Estudantil, com certeza!”
É interessante observar que a maioria dos sujeitos entrevistados encontra-se engajada em outros Movimentos Sociais ou partidos políticos, cujo engajamento acredita-se ser uma busca pela complementação ou continuidade de um processo que começou no ME. Dessa forma, para estes o ME configurou-se como uma escola de iniciação política.
Em síntese, as falas dos sujeitos explicitam as inúmeras habilidades desenvolvidas a partir de suas práticas militantes entre as quais, segundo seus depoimentos, adquiriram habilidades de como organizar reuniões, a coordenar e dirigir grupos, a usar a linguagem apropriada a cada situação, a argumentar, a falar em público etc. Portanto, é, sobretudo, através da vivência, da experiência, da relação dos sujeitos com os diversos agentes socializadores, que as identidades podem ser transformadas em identidades engajadas, militante, política, capazes de contribuir para a produção de novos fazeres que envolvem, num plano mais amplo a mudança social.
d) Saberes construídos na socialização no ME enquanto processo multi-interativo
No processo de construção da identidade dos sujeitos em qualquer Movimento Social, contribuem inúmeros agentes socializadores, e no caso do ME da UFMT, evidencia-se que as relações estabelecidas pelo grupo que compõe o DCE constituem uma parte ínfima entre as inúmeras relações que cada membro vivencia e troca experiências. Dessa forma, o RU, a biblioteca, as viagens para congressos, encontros de curso, da UNE, a SBPC, os sindicatos, todos estes representam agentes que desempenham papel significativo na formação dos líderes estudantis. A essa diversidade de relações é que denominamos de multi-interativo. E como são variados os agentes socializadores, evidentemente, entende-se que são vários os saberes construídos por cada um.
JML - “(...) dentro da universidade, o Restaurante Universitário é o espaço de trocas de experiências, é o espaço onde você convive com inúmeras diferenças, pessoas de outros cursos e de outras vivências .
(...) o ME trouxe pra mim muita vivência pessoal, isso tornou, com o tempo, minha participação muito mais rica, até que me levou ao engajamento a outros Movimentos depois da universidade. Se não fosse esse enriquecimento que o Movimento Estudantil me trouxe, após a faculdade, eu poderia ser mais um para o mercado de trabalho, preocupar apenas com isso, não continuaria minha participação em outro Movimento, como por exemplo, no Partido dos Trabalhadores e no Movimento sindical.”
ACS - “O ME foi uma experiência magnífica. As viagens ... as pessoas que eu conheci, fiz muitos amigos (...). O ME proporciona muitas coisas boas pra gente. Muitas viagens, muitas viagens de estudo, principalmente. Participei de muitas viagens junto ao SPBC, encontros da UNE, encontro de área. Eu conheço todo o Brasil via ME, não é só questão de fazer turismo barato. Mas, além de fazer turismo barato, a gente participava de todas as oficinas, dos grupos de discussões, até porque, a maioria das vezes, eu fui coordenador de diversas viagens, tinha que estar dirigindo as pessoas, e ... tive muitas experiências nesse sentido. Nós tivemos um eixo muito forte com sindicatos de Cuiabá, de Mato Grosso, Brasil, e as experiências foram as melhores possíveis na minha vida. Posso dizer que o ME foi o conteúdo de vida.”
KAL - “A personalidade que eu tenho hoje, ela tem absolutamente tudo a ver com a formação que eu recebi no Movimento Popular. A formação cultural que eu tenho hoje, ela é, com certeza fundamentada nas experiências que eu tive e no aprendizado que eu tive nas Assembléias de Bases, nas intermináveis reuniões de menores, nas reuniões de estudo que a gente fazia, na leitura dos materiais do Movimento, nas viagens de congressos que a gente fazia. Então, eu não sei o que eu seria hoje, não sei se seria jornalista, por exemplo, se eu não tivesse passado por essa experiência no Movimento político; principalmente, o Estudantil que foi minha grande escola.”
A partir das experiências verbalizadas pelos entrevistados, se é possível compreender que os saberes construídos pelos sujeitos no ME são fruto das trocas de informação entre cada membro do grupo (DCE), das múltiplas relações que os sujeitos estabelecem com os diversos agentes que envolvem a vida política estudantil, tais como com os partidos políticos, sindicatos, com outros Movimentos Sociais, e na participação em congressos, encontros de área, de curso, etc., além das lutas estudantis propriamente ditas, as mobilizações, as reivindicações, enfim, no fazer político.
Nessa perspectiva, o estudo permite entender que a forma pela qual se procede a socialização do sujeito, esta se torna um meio de mudança social; assim entendendo, não se é possível aceitar a concepção de que socialização é meio de reprodução da ordem social ou processo de modelagem das personalidades ou ajustamento ao funcionamento social, como o fazem os teóricos funcionalistas/estruturalistas.
Neste sentido, Berger & Luckmann ( apud Dubar, 1997:100) teorizam e esclarecem que só a socialização secundária pode produzir identidades e atores sociais orientados para a produção de novas relações sociais e suscetíveis de se transformarem, elas próprias, através de uma ação coletiva eficaz e duradoura. Para tanto, entretanto, é necessário que seja assegurada a existência de um aparelho de formação (socialização secundária) que permita a transformação das identidades de ator no sentido de não se limitar à reprodução ou adaptação das identidades anteriores, mas que permita envolver-se numa verdadeira criação institucional. E neste sentido, o ME pode constituir-se em um desses aparelhos de socialização secundária capaz de permitir a transformação das identidades dominadas em identidades militantes, que resistem à dominação e que contribuem para a produção da mudança social.
3- Sobre os saberes transpostos
Para se analisar se os estudantes realizam a transferência de saberes construídos no ME para o seu meio profissional e político-social, primeiramente, verificou-se sobre a sua atuação após a sua vivência no ME da UFMT.
GJA = é militante do Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB), onde exerceu a função de vice-presidente do Partido em Mato Grosso, militou no Diretório Regional durante oito anos e de algumas associações de bairro. Atualmente, exerce a função de técnico pesquisador no Núcleo de Pesquisa da Faculdade de Administração Economia e Ciências Contábeis (FAEC), é delegado e executivo da Convenção Nacional do PSDB.
LJC = é poetisa, não participa de partidos políticos e nem de qualquer tipo de Movimento Social.
NMS = atualmente, trabalha como técnico concursado da Secretaria de Estado de Educação (SEDUC), é militante do Partido dos Trabalhadores mas não exerce qualquer função específica no partido.
ALC = foi vice-presidente do Partido dos Trabalhadores, partido no qual vem atuando desde 1989, foi também secretário da Juventude do PT no mesmo período em que fazia parte da diretoria da UNE, atuou como secretário geral do PT, diretor do Sindicato dos Professores da UFMT na ADUFMAT e foi tesoureiro do SINTUF. Atualmente, é presidente da Associação dos Procuradores do Estado há três anos, conselheiro federal suplente da Ordem dos Advogados de Mato Grosso, presidente da Escola Superior de Advocacia, conselheiro da ONG ambientalista Instituto Centro de Vida e foi eleito em outubro de 2001, como presidente do Partido dos Trabalhadores de Mato Grosso.
JML = é funcionário da Secretaria de Saúde de Cuiabá na qual exerce a função de arte educador, é membro da direção do Partido dos Trabalhadores de Cuiabá e milita no Sindicato dos Servidores Municipais (SISPUMC) ocupando um cargo executivo.
ACS = trabalha como projetista autônomo desenvolvendo projetos na área ambiental e político junto ao Conselho Regional de Economia de MT (CORECOM-MT) e é militante do PC do B no qual se encontra filiado desde 1989.
BLM = trabalha na assessoria do senador suplente Blairo Maggi, e sua função como assessor é a de formar novas lideranças políticas no interior do Estado de Mato Grosso, formar diretórios e fazer novas coligações em favor do senador. Atualmente, é militante do Partido Popular Socialista, tesoureiro da Associação dos Moradores do Bairro Alvorada e é militante numa ONG ambiental.
KAL = trabalha no Jornal Diário de Cuiabá como jornalista e sua função é dar cobertura aos assuntos políticos do Estado, continua filiado ao PC do B, porém, atualmente não ocupa qualquer cargo na estrutura do partido.
Observando-se a atuação dos sujeitos antes e depois da vivência universitária, verifica-se que existe uma forte relação entre a atuação política durante e após a experiência no ME. Interessante notar que a maioria deles continuou, de alguma forma, a sua atuação política em partidos políticos, em sindicatos, associações e em ONGs.
No que se refere aos saberes específicos, mesmo que cada socialização requeira saberes de um novo gênero e a aquisição de um outro universo simbólico (nova linguagem, procedimentos, fórmulas, etc.), observa-se que existe um prolongamento da socialização anterior para a socialização posterior ao envolvimento no ME.
JML - “No meu trabalho como arte-educador, eu me sinto bastante contemplado, no sentido de que estou trabalhando num setor, que além de estarmos discutindo as políticas de saúde de Cuiabá, um dos setores das minhas atividades é estar trabalhando com o controle social que é a participação efetiva da população nas discussões das políticas públicas de saúde. E a minha formação, enquanto uma pessoa que já participou do Movimento Estudantil, contribuiu muito para essa nova experiência no trabalho.”
LJC - “Tem tudo a ver (...) em 83, a gente fez o primeiro FLAMP, que é o Festival Livre de Arte e Música Popular, e no final de 1991, isso dá oito anos (...) eu me escrevi e venci o festival que eu ajudei a criar, entende? Meu trabalho está todo ligado ao Movimento Estudantil. Na adolescência eu já escrevia poesia; na universidade, enquanto eu era estudante eu não era artista, eu era burocrata, mas é como se eu tivesse feito um exílio para aprender como funcionava o bastidor.”
BLM - “Para meu trabalho como engenheiro e como profissional, eu acho que o ME vai continuar influenciando, porque a gente, na área ambiental, mexe muito com as questões políticas e sociais também, porque meio ambiente não é uma coisa que é só minha, que é só do proprietário dali, daquele pedaço de terra que vai ser explorado, é de todo mundo, tem que ter um entendimento global da coisa, então esse pensamento crítico a gente vai acabar levando. Eu acho que vai acabar colaborando com uma formação mais ética nas decisões como profissional, e nesse trabalho político não preciso nem falar porque a experiência no Movimento Estudantil que me habilitou no que eu estou fazendo aqui, porque tem muita gente que quer estar no lugar, mas falta experiência e qualidade política pra fazer aquilo, essa qualidade é que eu consegui no Movimento universitário.”
ALC - “Eu vejo uma profunda relação, porque as experiências que nós passamos lá, os erros e acertos que nós passamos lá refletem diretamente na minha atuação como líder de diversas organizações em que atuo, então essa construção da história é muito importante para que não pratiquemos os erros do passado. (...) Então, hoje, toda essa atuação política profissional, toda atuação social que a gente tem é referenciada por aquela experiência, aquilo foi uma experiência inicial, nós podemos dizer assim, foi uma graduação em sociedade que a gente passou, em Movimento Estudantil. (...) Tem alguma relação, a relação política mesmo, social e política. A relação social e política tende a ser anterior às decisões econômicas, porque as decisões econômicas dependem das decisões políticas, não me considero um tecnicista em economia, e não gosto de tecnicismo.”
KAL - “Eu acho que tudo a ver, até porque eu hoje não sou só jornalista. Eu sou um jornalista que trabalha com política, eu cubro o dia a dia da política do meu Estado, de maneira muito mais realista e científica eu diria, até do que se eu não tivesse a experiência que eu desenvolvi fazendo política no Movimento Estudantil.”
Os depoimentos demonstram, dessa forma, que os sujeitos relacionam as experiências vividas no ME com a sua vida profissional. Isto é, a partir das experiências vivenciadas no ME, os sujeitos puderam politizar as ações cotidianas do seu trabalho re-significando-as da forma que seu caráter individual e de sobrevivência tenha para os sujeitos um sentido também político e social.
Perguntados sobre como se sentiram e o que pensaram quando se tornaram profissionais de nível superior, os entrevistados revelaram preocupações quanto à falta de tempo e de espaço para a militância política. Tais preocupações revelaram, no entanto, um outro lado da face da transposição de uma socialização para outra, o que demonstra que nem sempre é fácil ou possível a transposição da socialização do ME para socialização profissional. Em alguns casos, os conteúdos da socialização no ME não são compatíveis com determinadas posturas e procedimentos exigidos na socialização profissional, havendo necessidade de um reajuste de identidade:
KAL - “O meu trabalho, especificamente, tolhe em muito minha militância política. Uma das razões pra eu não ter uma militância ostensiva como eu já tive, é exatamente o fato de eu ser um jornalista em primeiro lugar, em segundo lugar, de trabalhar com política. Eu não posso entrevistar o prefeito que é do PMDB, do PFL, do PSDB, enfim, ele tem o partido dele, com boton do PC do B, que é o meu partido, na lapela, porque o cara já não vai me dar entrevista, já vai me rotular como comunista, e já vai achar que eu não vou ser imparcial o suficiente para entrevistá-lo, então, como jornalista, eu preciso ser o mais isento e imparcial possível. Então, eu deixei conscientemente essa militância ostensiva, de renunciar os cargos de direção do partido, em função do meu trabalho.”
Neste caso, a entrada do sujeito para o mercado de trabalho significa uma redefinição de papéis em que o sujeito deve apropriar-se de um novo programa formalizado e um novo universo simbólico que, muitas vezes, não é compatível com o programa ou universo simbólico adquirido em outras socializações, neste caso, no ME. Porém, esta redefinição de papéis não significa necessariamente uma ruptura total com a socialização precedente, realizada no ME, embora, em alguns casos, pareça necessário que se faça um certo distanciamento em relação ao contexto anterior (ou a negação do que se é fora do contexto do trabalho), principalmente quando está em jogo a aceitabilidade de si pelo outro.
Em contrapartida, em outro depoimento, como se pode ver abaixo, compreende-se que nem sempre se é necessário negar a sua socialização anterior, mesmo quando as ações do sujeito causem choques no universo do trabalho em exercício. Em verdade, neste caso, o que se vê é que, conforme o trabalho que o sujeito escolhe para si, este pode transportar para a sua nova socialização, todos ou quase todos os saberes construídos em suas socializações anteriores.
KAL - “Mas eu nunca neguei que sou comunista, porque isso é impossível também na minha profissão. Os meus textos são carregados das minhas crenças, das minhas convicções, dos meus pontos de vistas ideológicos, inclusive eu escrevo muito artigo, sou um jornalista que escreve muito artigo e artigo é opinião pura, então, emito as minhas opiniões em diversos assuntos políticos, envolvendo inclusive parte dessas fontes, e no começo isso causou pra mim problemas profissionais.”
Neste caso, o ex-militante, mesmo enfrentando “problemas profissionais”, manteve seus pontos de vista, ainda que com moderação. Isto também só foi possível porque a instituição em que trabalha, ao que parece, permite a transposição de saberes interiorizados pelo trabalhador, em suas socializações anteriores, na execução de suas atuais atividades profissionais.
O depoimento a seguir é de um ex-militante de ME que ainda não está integrado no mercado de trabalho, mas este revela a preocupação em manter uma coerência entre a sua visão crítica e ética construídas em socializações anteriores e o seu campo profissional que é marcado por “falcatruas” e “atitudes politicamente incorretas”:
BLM - “Às vezes, penso também, porque hoje em dia, na minha área, tem muita coisa politicamente incorreta, o que a gente mais vê no setor madeireiro são algumas falcatruas. Eu acho que vai ser difícil em alguns pontos, se eu for encarar mesmo, do jeito que eu pretendo encarar, com uma visão mais crítica, mais ética, vai ter um certo problema. Hoje em dia, a gente tem no Mato Grosso, desde contrabando de madeira até exploração ilegal, e muitos engenheiros assinando.”
Este confronto entre os seus valores pessoais adquiridos anteriormente e a nova realidade na qual se insere o seu campo profissional e a que o sujeito deve apropriar-se, permite a possibilidade de dois tipos de encaminhamentos: uma ruptura com a identidade construída na socialização anterior, ou pelo menos, um certo ajustamento à identidade requerida nesta nova socialização, ou então, esta nova socialização não vir a ser realizada com sucesso, e devido a isto, o sujeito pode ser levado à exclusão desse grupo profissional, e por conseguinte, à conservação de sua identidade anterior.
KAL - “Em função dessa postura profissional ética, mas prudente, eu já deixei de opinar a respeito de determinados assuntos, porque eu cheguei a conclusão que eu não conseguiria omitir minha opinião sem ser agressivo com algumas fontes, que eu iria perdê-las, com certeza, iria perdê-la. Pra preservar a fonte, eu preferi omitir minha opinião naquele momento. Muitos podem até achar essa atitude um ato de covardia ou de capitulação, mas eu não penso dessa forma. Eu acho que é prudência e habilidade, porque se eu não for um jornalista habilidoso, serei um ótimo comunista, mas sem emprego. Então, eu quero continuar sendo um comunista ideológico consciente, convicto, mas não abro mão de ser o melhor jornalista possível.”
Percebe-se no depoimento do sujeito, uma incompatibilidade entre a socialização antiga e a nova, referente ao exercício de sua profissão em que este é levado a omitir sua posição e a reinterpretar sua biografia em função da exigência e da necessidade do emprego. No entanto, isto não significa uma ruptura com a socialização anterior, mas uma re-interpretação da mesma buscando harmonizá-la com o presente. Entende-se que é por meio do sentimento de pertença e de não pertença que o sujeito realiza a escolha pela aceitação ou não das normas e regras institucionalizadas pelo novo “submundo institucional”. Em outras palavras, a socialização profissional exige a interiorização de normas prontas, institucionalizadas e a não adequação a estas leva a sanções que podem chegar à exclusão do sujeito daquele meio.
Quanto à participação político-social atual, como se pode ver através da descrição do perfil dos líderes estudantis estudados, com exceção de um deles, todos continuam tendo uma participação político-social ativa, sendo que 5 dos sujeitos atuam diretamente em partidos políticos e movimentos sociais e 2 participam apenas em partidos políticos. E todos, sem exceção, afirmam que sua militância hoje, representa a continuidade da luta por um ideal que nasceu no ME. Segundo um dos entrevistados, esse ideal tem como horizonte “a construção de uma sociedade diferente da que a gente vive”.
É importante observar que dentre os 8 sujeitos entrevistados, 7 deles ingressaram nos partidos políticos durante ou após a militância no ME. Desses 7, dois já tiveram e cinco continuam tendo uma participação efetiva em outros Movimentos Sociais tais como Associação de Bairro, ONGs, Sindicatos, etc, após a vida universitária. Quanto à essa questão, um dos líderes esclareceu:
“A minha relação no ME foi o que me enriqueceu, que me trouxe experiências, e que me deu outra visão. A nossa preocupação, pelo menos no nosso engajamento, foi de estar fazendo um Movimento que não estivesse só preocupado com os problemas nosso, do nosso curso, mas nós buscamos resolver os problemas de outros cursos, de estar fazendo uma discussão geral. Então, essas experiências me levaram a estar discutindo, e a estar engajando a outros Movimentos, tanto no Partido dos Trabalhadores como no Movimento Sindical, porque, na verdade, principalmente no Movimento Sindical já demonstrou que estou participando em outro espaço, mas nossas reivindicações são praticamente as mesmas das universidades, porque os problemas sociais que nós discutíamos nas universidades, algumas reivindicações nossas permanecem até agora.”
Assim, pode-se dizer, com certa segurança, que o ME não se constitui em mero fenômeno que faz parte do espírito rebelde e contestador próprio da juventude. Ele constitui-se em um fenômeno educativo com conteúdo político e social que marca profundamente a identidade dos sujeitos que dela participam. É certamente por esta razão que Poerner (1979:33) afirma que:
“A Universidade é no Brasil, a maior escola de formação de líderes políticos, centro onde se moldam as consciências e mentalidades com respeito aos problemas que assoberbam o país, e que a maior parte dos homens nela formados carregam, a vida a fora, as posições, idiossincrasias, estigmas e pontos de vistas políticos nela adquirido.”
Tecendo considerações sobre a importância da participação no ME para a formação política dos sujeitos, o ex-presidente Itamar Franco fez a seguinte declaração à Revista da UNE (1994:13):
“(...) dirigentes políticos não se constroem no silêncio dos gabinetes, na tranqüilidade dos templos, no dialogo sereno dos sábios. Eles se fazem no calor dos debates, no grito das ruas, no protesto justo dos marginalizados. Foi assim que saíram da União Nacional dos Estudantes, alguns dos melhores tribunos brasileiros, e foi assim, na militância estudantil que iniciei minha vida pública.”
Finalmente, o estudo tornou evidente que as inúmeras aprendizagens realizadas no interior do ME, ocupam um lugar central na formação do sujeito político. Isto porque o sujeito se constrói no processo de luta, do fazer e, portanto, nas relações sociais, que são, em si, um movimento educativo. Assim entendendo, se é possível partilhar da visão de Gohn (1994), em que o sujeito político não se constrói por decreto e por intervenções externas, programas ou agentes pré-configurados. Estes se constroem como um processo interno, no interior da prática social em curso, como fruto do acúmulo das experiências engendradas.
CAPÍTULO VI
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho partiu do pressuposto de que há um saber que permeia a participação nos Movimentos Sociais, e especificamente no ME, que é produzido através da interação do estudante militante com os diversos agentes socializadores que envolvem o Movimento. A este processo de relação que envolve inúmeras aprendizagens é que denominou-se de socialização.
Nesse sentido, foi realizado o estudo das teorias e conceitos da socialização, do caráter educativo dos Movimentos Sociais e da história das ações estudantis, e à luz destes fundamentos, foram realizadas as análises dos depoimentos dos ex-líderes estudantis do ME da UFMT.
O estudo buscou responder às seguintes questões: a) o que os líderes estudantis realizam durante a sua vivência no interior do Movimento Estudantil ?; b) os saberes apropriados no ME encontram-se em consonância com as socializações anteriores ?; c) quais saberes os estudantes constroem durante a sua vivência dentro do Movimento enquanto líder estudantil ?, e d) os estudantes realizam a transferência dos saberes construídos dentro de um Movimento Estudantil para o seu meio profissional e político-social após a vida universitária ?
Em relação ao que os líderes estudantis realizam na vivência no ME, a história das ações estudantis, tanto gerais, como locais, mostrou que os estudantes tiveram, e de certa forma ainda mantêm, uma participação politicamente engajada marcante nas principais discussões sócio-políticas tanto do país como da universidade. Em sua militância, estes procuraram empreender, também, ações de formação pessoal através da participação em diversos encontros, seminários, congressos, em outros Movimentos Sociais, ONGs, e em partidos políticos, procurando, dessa forma, conciliar interesses individuais e lutas coletivas.
Sobre se os saberes apropriados no ME encontram-se em consonância com as socializações anteriores, o estudo mostrou que cinco dentre os oito entrevistados ingressaram no ME da UFMT tendo já um envolvimento anterior em Movimentos Estudantis durante o Ensino Médio. O ingresso desses estudantes no ME universitário deu-se quase que de “forma automática”, como se pôde ver em seus depoimentos, revelando um prolongamento da socialização do ME secundarista para o universitário. Este prolongamento no envolvimento em Movimentos Estudantis, no entender do estudo, significa uma identificação entre as duas socializações, ou seja, uma consonância entre os dois “submundos institucionais”. Tudo indica que o envolvimento em Movimentos anteriores justifica o envolvimento em Movimentos posteriores, e que o envolvimento em Movimentos se dá em razão da consonância de linguagens, esquemas e concepções institucionais. Este resultado, embora não tenha sido objeto direto do estudo, permite-nos afirmar, ainda que de forma inconsistente, que o envolvimento anterior ao Movimento secundarista e os saberes lá construídos contribuíram pra que os sujeitos tornassem, posteriormente, líderes do Movimento da UFMT.
Quanto aos saberes que os estudantes constroem durante a sua vivência dentro do Movimento enquanto líder estudantil, o estudo revelou, em síntese, que o ME possibilita uma das mais ricas socializações de saberes para os que nele se engajam. Esses saberes ocorrem, sobretudo, no fazer político do dia-a-dia do Movimento e nas relações sociais. Isto é, na interação reflexiva do sujeito consigo mesmo e com os outros. No entanto, os sujeitos apropriam-se desses saberes não somente por estarem em relação com um “submundo institucional” que lhes oferece o contato com inúmeros saberes, mas, sobretudo, por estarem abertos ao novo, por estarem movidos pelo desejo de aprender. Partilhando a teoria de Charlot (2000) sobre a relação com o saber, diremos que a aprendizagem no ME é uma auto-produção que só é possível pela mediação com o outro e com sua ajuda, mas ninguém pode ensinar se o outro não consentir, não colaborar. Dessa forma, uma educação só é possível se o sujeito a ser educado investir pessoalmente no processo que o educa. Inversamente, o sujeito só pode educar-se numa troca com os outros e com o mundo. Caso contrário, a educação torna-se impossível porque o sujeito não encontra no mundo o que lhe permite construir-se.
Portanto, por estarem movidos pelo desejo e deliberadamente abertos ao novo é que os sujeitos militantes, através da interação no ME, puderam apropriar-se do “mundo” político e social, sob uma forma específica que compreende novas representações, comportamentos, aspirações e práticas.
Como foi visto nas análises, a socialização educa os estudantes para serem atores, sujeitos na e da história, e no ME, estes tiveram oportunidades ampliadas para socializarem-se com os mais diversos agentes, tais como pessoas, grupos, formas de poder, tanto de manutenção/reprodução como de transformação, assim como puderam desenvolver o senso crítico a respeito de todo esse universo e conhecerem a verdadeira face da sociedade da qual fazem parte. Essas novas representações adquiridas contam com a aquisição de novas linguagens, através de suas diferentes formas expressivas, com novos espaços de comunicação que também são produções históricas, onde são transmitidos, construídos e reconstruídos novos significados e representações dos valores existentes nos mais variados grupos com os quais interagem. É nesta socialização plena de novos significados e significantes que os estudantes têm a possibilidade de irem transformando tanto as suas ações como a si mesmos. Esse universo de significados e sentidos permite afirmar que a interação é o mecanismo essencial para que os sujeitos internalizem novos valores, crenças, atitudes, etc.
Ao se inserir em um ME, o estudante assume um lugar e um papel social que passa por uma mediação pelos outros: simultaneamente, torna-se visível pela sua particularidade e torna-se parte de um todo assemelhado aos demais. E assim, este passa a viver o “nós”. Essa forma de identificação visível na fala dos entrevistados deixa transparecer os laços de fraternidade, de companheirismo e de solidariedade criados nessas relações.
Assim, os processos comunicativos que se estabelecem numa rede de identificação evocam valores e crenças que legitimam a ação comum. Dessa forma, os sujeitos constroem suas representações políticas e sociais voltadas para uma coletividade, pois não se luta por si e nem para si, mas por um nós e para nós.
Deste modo, o que o estudo revelou foi que os sujeitos desenvolvem, no envolvimento com o ME, um comprometimento com as causas sociais, demonstrando responsabilidade enquanto cidadão que vive em um mundo, em uma sociedade, como sujeitos críticos e construtivos de uma nova ordem social, onde cada um se vê como parte do todo. Ou seja, estes constroem suas consciências, passam a compreender a realidade e criam formas de agir sobre ela. É, portanto, pelas práticas repetitivas vividas no ME que os estudantes adquirem inúmeras habilidades que passam a fazer parte de seu comportamento e estruturam os traços de parte de sua personalidade.
O estudo permite, deste modo, afirmar que, em termos mais específicos, os estudantes constroem no ME, múltiplos saberes tais como: a entender a escala de poder que envolve a política tanto internacional como nacional e local; a conhecer as estruturas de funcionamento da Universidade e suas hierarquias de poder; a elaborar propostas, defendê-las e responsabilizar-se pelas posições assumidas; a conviver democraticamente com pessoas de diferentes posições e visões, às vezes, radicalmente contrárias às suas. Portanto, os estudantes aprendem a respeitar a pluralidade e as diferenças; a terem resistência emocional e segurança diante de acusações e outras intempéries que uma liderança está exposta a todo o tempo; adquirem a capacidade de iniciativa, de organização, planejamento e execução de projetos, principalmente relacionados a eventos, festas, debates, festivais com estruturas monstruosas que envolvem a aplicação de inúmeras habilidades; adquirem independência e dinamismo para viajar, participar de congressos internos e externos, de reuniões, e também para freqüentar às aulas.
Enfim, toda ação no ME pode produzir aprendizagens. Todas essas vivências são relacionais e podem fazer com que na história individual a aquisição da identidade seja vivida pelo sujeito como verdadeiro processo de aprendizagem em direção à conquista de sua autonomia, de capacidades para enfrentar e resolver os inesperados problemas que surgem na vida cotidiana. A necessidade de ser dinâmico apresenta-se como um imperativo existencial em um mundo de complexidade como o atual que requer constantes mudanças de papéis, de códigos, de novas formas de relações.
Essas são algumas das dimensões dos saberes que são construídas no processo de socialização no Movimento Estudantil. Diríamos até que, estas são as mais comuns, que todas as lideranças que passam por ele e que nele se engaja, de fato, não têm como fugir.
No entanto, existem níveis mais elevados de aprendizagens que dizem respeito à construção de sujeitos sócio-políticos conscientes dos seus direitos e deveres como cidadão, dos problemas sociais e políticos que os rodeiam e do seu papel diante dessas realidades. Desse modo, o sujeito desenvolve-se a si mesmo conquistando uma nova identidade -- a do sujeito militante -- capaz de contribuir para a produção de mudanças sociais.
Com relação à questão que busca conhecer se os estudantes realizam a transferência dos saberes construídos dentro de um Movimento Estudantil para o seu meio profissional e político-social após a vida universitária, o estudo aponta que o envolvimento no ME possibilita aos sujeitos uma socialização em que os saberes lá construídos ficam fortemente arraigados em suas consciências. Observa-se que no caso dos estudantes, houve, em sua maioria, um prolongamento da socialização no ME, sendo que a visão crítica e o desejo de interferir na realidade social, na sua transformação, permaneceram.
Com relação à atuação político-social dos estudantes após a vida universitária, o estudo mostra que a maioria dos sujeitos entrevistados está engajada em partidos políticos, movimentos sociais e ONGs. Este fato revela que houve uma transcendência da socialização do Movimento Estudantil para outros campos político-sociais e que o comprometimento com o social, que nasceu no ME, continua presente na consciência desses sujeitos.
Há que se destacar aqui, ainda que de forma célere, o fato de que todos os sujeitos que fizeram parte do estudo, estiveram, em tempos distintos, presentes no interior da Universidade e do ME, quando o país era marcado por momentos históricos bastante intensos, o que de certa forma, justificam o forte envolvimento deles no ME. GJA, por exemplo, vivenciou a repressão aos estudantes e a demissão de professores no auge da repressão, no ano de 1979. LJC, por sua vez, vivenciou o Movimento pelas “Diretas Já”, em 1984, idealizada por Dante de Oliveira, que hoje se encontra como governador do Estado de Mato Grosso, assim como, juntamente com NMS, as mobilizações organizadas por vários cursos da Universidade contra atitudes arbitrárias e autoritárias e a repressão contra a veiculação do filme Je Vous Salue Marie, em 1986. ALC vivenciou, bem de perto, todo a movimentação em torno do processo de eleição para reitoria da UFMT, e juntamente com JML, ACS, BLM e KAL, vivenciou a grande manifestação em torno da elaboração das estatuintes, em 1990, e do Movimento nacional em prol do impeachment do então presidente do país, em 1992. A partir de então, os estudantes vivem basicamente os problemas resultantes do corte brutal das verbas destinadas à universidade pública.
Em termos de ME, o que se tem visto, na atualidade, é que existe uma juventude apática, individualista e, de certa forma, sem interesse pelas causas coletivas, sejam sociais, políticas ou educacionais. Percebe-se que os Movimentos políticos de juventude, principalmente, os estudantis, encontram-se esvaziados, uma vez que, cada vez menos, estudantes têm se interessado em engajar-se neles. A prova disso é a extrema dificuldade organizativa, mobilizatória e de intervenção que o ME vem apresentando, mesmo diante dos graves problemas que os afetam diretamente tal como a questão da Universidade Pública que se encontra fragilizada e sucateada pelas políticas oficiais dos últimos quarenta anos. Apesar disto, o Movimento Estudantil não tem conseguido articular um eixo convincente de intervenção que angarie o apoio popular e até mesmo de seus pares em favor de suas lutas.
Ao ingressar no curso universitário, a maioria dos estudantes, não tem noção e nem tomam conhecimento da amplitude de uma vivência universitária, das possibilidades que a universidade pode ou deveria oferecer-lhe, em termos de atividades acadêmicas, experiências práticas, atividades extracurriculares bem como a oportunidade de inserção política. Porém, este panorama resulta ao final do curso, em uma ausência de uma interação mais efetiva com o mundo da academia, e assim, esses estudantes deixam a universidade com um conhecimento formal, sem que tenham vivenciado as diversas oportunidades de ampliação de sua visão crítica do mundo, e sem que tenham adquirido inúmeros saberes e experiências tanto acadêmica quanto política que uma participação universitária pode proporcionar.
Talvez, quem sabe, em meio a tanta dificuldade organizativa do ME, o resultado dessa pesquisa sirva como auxílio ao resgate, entre os estudantes, do desejo de participação política, uma vez que pesquisas têm demonstrado que os Movimentos Sociais, principalmente nas últimas décadas, têm passado pela crise da não participação. Isto porque, tomando de empréstimo os dizeres de Demo (1991), só a participação política e o comprometimento podem capacitar o sujeito e moldar as circunstâncias objetivas que o cerca.
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Carta aberta à comunidade universitária, DCE-UFMT, agosto de1983.
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Carta aberta, DCE –UFMT, 26 de novembro de 1999.
Carta aberta, chapa XEQUE-MATE, 1999.
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Convocação:
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Abertura do II Encontro Nacional de Geologia, CEMATEGE-UFMT, 3 de setembro de 1979.
[1] Esta era uma agência norte-americana para o desenvolvimento internacional, com a qual, o Ministério da Educação do Brasil firmou um acordo, visando, em primeira instância, reformular as universidades brasileiras nos moldes norte–americanos.
[2] Neste trabalho de pesquisa os termos grupo e coletivo serão usados com os mesmos significados, uma vez que, a coletividade consiste de pessoas que se consideram pertencentes a uma unidade social identificável e carece de padrões regulares de interação e Grupo é um sistema social que envolve interação regular entre seus membros e uma identidade coletiva comum. Isso significa que o grupo tem um senso de nós que permite que seus membros considerem-se pertencendo a uma entidade separada. Porém o grupo apresenta graus variados de interação e profundidade com que seus membros se integram, por quanto tempo sobrevivem e nas razões porque pessoas nele se ingressam e dele participa. (Johnson, Allan G. Dicionário de sociología. Ed. Zaar, Rio de Janeiro, (1997). Para referir-se ao ME, ora será usado um ora outro, pois neste caso não há diferenciação.
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