terça-feira, 2 de junho de 2009

Depoimento de Franklin Martins publicado no livro MOVIMENTOS JUVENIS NA CONTEMPORANEIDADE, Editora UFPE, 2008, sob a organização de Luís Antônio Gropp


FONTE: Depoimento de Franklin Martins publicado no livro MOVIMENTOS JUVENIS NA CONTEMPORANEIDADE, Editora UFPE, 2008, sob a organização de Luís Antônio Groppo, Michel Zaidan Filho e Otávio Luiz Machado)

Lutar é preciso e é o mais importante: a grande herança de 1968 40 anos depois[1]
Franklin Martins

Meu nome completo é Franklin de Souza Martins. Nasci em 10 de agosto de 1948, em Vitória, Espírito Santo, mas me criei no Rio de Janeiro. Era anfíbio, circulando muito entre os dois Estados. Ia bastante a Vitória (minha mãe era de lá) e retornava ao Rio, terra de meu pai.
Meu pai, Mário de Souza Martins, foi jornalista e político, tendo sido deputado e senador. Teve seu mandato de senador cassado depois do AI-5. Ele foi mais jornalista do que político. Minha mãe, Dinah Almeida de Souza Martins, embora tivesse formação em Direito e em Farmácia, nunca exerceu nenhuma dessas profissões. Foi apenas mãe de família, como era muito comum naquela época.
Estudei a vida toda no Rio de Janeiro. Fiz escola primária pública em estabelecimentos municipais, depois cursei o antigo ginásio no Colégio Pedro II e o clássico no Colégio de Aplicação da UFRJ. Em 1967, entrei para a Faculdade de Ciências Econômicas da UFRJ, onde cursei dois anos. Não cheguei a me formar, pois fui expulso da Escola em 1969 por motivos políticos. Em 1967, prestei concurso para o Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Durante alguns meses, cursei as duas escolas, mas como havia entrado no IFCS somente para montar uma base da Dissidência Comunista da Guanabara, quando a base estava formada, três meses depois do início das aulas, parei de assistir as aulas.
Naquela época, havia poucos estudantes universitários no país. A famosa peça da UNE de 1963, o “Auto dos 99%”, demonstrava isso: de cada 100 alunos que entravam no curso primário, apenas um chegava à universidade. Quando fui candidato à Presidência do DCE da UFRJ, em 1968, a UFRJ – que, junto com a USP, era a maior universidade do país – tinha 10 ou 12 mil alunos. Lembro-me de que votaram cerca de 7 ou 8 mil alunos, um comparecimento espetacular. A massa estudantil, tanto no Rio de Janeiro como no Brasil, era composta basicamente por jovens que estudavam em universidades públicas, havia pouquíssimas faculdades particulares. Os universitários eram então um segmento relativamente pequeno, nitidamente de classe média. Quem chegava à universidade eram geralmente os filhos da classe média, dos profissionais liberais, dos funcionários públicos, dos empresários. Ou seja, dificilmente o povo entrava na universidade. A Universidade pública era um local de reprodução da classe média, que via a Universidade como um canal de ascensão social e de mobilidade. E a expectativa de um jovem quando ia pra universidade, no fundo, era a de ocupar mais ou menos funções semelhantes às de seus pais. Da mesma forma que não havia povo na universidade, as pessoas também não ingressavam numa faculdade com a perspectiva de ficar ricas – embora muita gente da minha época tenha ficado rica depois com o crescimento das bolsas e o surgimento do mercado financeiro. Pessoalmente, eu aspirava ser um professor ou um profissional em planejamento econômico, em órgãos como a SUDENE. Isso era algo que mexia com a minha cabeça.
Entrei no movimento estudantil muito cedo. De certa forma, desde o primeiro ano do ginásio, com 11 anos, eu já votava com os comunistas. Fui representante de turma e naquele momento já havia umas porradas entre o PCB e o PC do B. Eu não entendia muito bem o motivo daquelas brigas; afinal, todos eles eram de esquerda. Para mim, era uma coisa meio confusa. Mas eu votava com o pessoal que dirigia o Grêmio, que era do Partido Comunista Brasileiro. E por que? Com certeza devido a uma certa inquietação política e social, que eu trazia de casa – meu pai foi político, meu irmão mais velho era muito próximo do Partidão e minha irmã mais velha também tinha uma certa militância na faculdade. O fato é que todos nós éramos influenciados pelo ambiente em casa, marcado por uma inquietação política e social acentuada.
Já no 3º ano do Ginásio, eu fazia jornaizinhos de escola ou de turma. Com 15 anos, comecei a trabalhar como jornalista. Depois de um curso de jornalismo de uns 3 meses no Colégio Pedro II, consegui um estágio na Última Hora e, mais tarde, fui trabalhar numa agência de notícias chamada Interpress. E aí cobri os sindicatos em 1963, um ano de enorme efervescência sindical. Para mim, foi uma experiência de vida extraordinária, porque, como eu era um moleque, os líderes sindicais me adotaram, achavam engraçado aquele pirralho circulando nas assembléias. Passavam-me notícias e, assim, eu comecei a dar uns furos e a fazer uma cobertura melhor do que a de caras mais experientes de que eu. Tudo isso porque os sindicalistas me colocavam debaixo do braço e me protegiam.
Em 1964, depois do golpe, participei da reorganização do movimento estudantil no Colégio de Aplicação Também fiz uma revista cultural e política para os estudantes secundaristas do Rio de Janeiro, que só não manteve a periodicidade porque veio o golpe e não deu mais para continuar. Em 1965, fui eleito presidente de Grêmio. Fizemos um trabalho muito consistente e muito forte, tanto que a quantidade de militantes de esquerda que saiu do Aplicação foi uma coisa em escala industrial. Eu diria que, proporcionalmente, naquela época, foi a escola que mais formou gente de esquerda no Brasil. Outro dia eu me dei conta de que três ministros do Governo Lula estudaram no Aplicação: Carlos Minc, Sergio Rezende e eu.
Talvez pela minha formação política no movimento estudantil secundarista, a Universidade não tinha para mim o mesmo significado que tinha para outros jovens, mais preocupados com sua formação profissional. A universidade me atraía, mais além da formação profissional, como local de formação política, de aprendizado político e de possibilidades de luta contra a ditadura militar.
Quando entrei para a Universidade, já era um militante do movimento estudantil, embora não estivesse ligado a nenhum partido político. Já me considerava marxista, e também tinha uma visão madura sobre o movimento estudantil. Tinha uma visão muito crítica da porra-louquice de alguns setores do movimento estudantil, aquele negócio que eles tinham de falar e falar e não fazer nada, limitando o trabalho político a uma vanguardinha. Para mim, isso era mais uma satisfação existencial que eles davam a si mesmos do que propriamente um trabalho de massas.
Também tinha uma visão muito crítica do Partidão, porque em 1964 ele não havia resistido ao golpe, o que para mim era uma desmoralização. Pó causa disso, não respeitava o Partidão, embora respeitasse seus militantes. A AP, Ação Popular, não me dizia nada, porque me considerava marxista e comunista – e eles eram católicos. Como eu já havia superado minha fase de fé religiosa e a Igreja Católica tinha sido um baluarte a favor do golpe de 64, eu achava que os militantes da AP queriam fazer penitência e não revolução. Na verdade, eu estava sendo injusto e sectário com eles. Mas era o que eu pensava na época.
Quando entro na Universidade, em 1967, já havia começado o processo de ruptura dentro do PCB. Como eu tinha uma crítica muito forte ao Partidão, o pessoal da Dissidência Universitária, que havia rompido com o PCB, me procurou e descobri que tinha muitas afinidades com eles. Coincidíamos nas críticas políticas mais gerais ao comportamento do PCB diante do golpe, e na recusa à conciliação, ao pacifismo e à desconfiança nas forças do povo. Ao mesmo tempo, na questão sindical, a Dissidência tinha uma visão mais amadurecida do que a da média da esquerda. Isso se manifestava claramente na questão das formas de lutas, das formas de organizações e da luta principal, as três grandes questões que dividiram o ME da época.
Pela minha experiência no movimento secundarista, eu rejeitava a concepção que só pensava em formas de luta e de organização dirigidas para as chamadas "vanguardinhas". Para mim, o certo era trabalhar com o conjunto dos estudantes. As lutas teriam de mobilizar o conjunto dos estudantes, e não ficar gritando simplesmente "abaixo o imperialismo" e "abaixo a ditadura'. A politização do movimento, para mim, viria como uma conseqüência da luta por questões mais imediatas e diretas. O importante era botar na luta o maior número possível de estudantes. Essa havia sido a experiência do Colégio de Aplicação. Ou seja, o importante não era ter um sovietezinho de estudantes de esquerda, mas criar um ambiente onde coubesse todo mundo, com campeonato de xadrez, show de musica, festas, grupos de teatro, cine-clube, jornais, jornal-mural, campeonatos de esporte, excursões etc. Agindo assim, a gente ia para as eleições no grêmio do Aplicação sem adversário; a direita nem apresentava candidato, porque não tinha condições de concorrer. Aprendi ali e acho isso até hoje: devemos trabalhar com todo mundo.
A Dissidência da Guanabara, no início de sua organização, fez uma inflexão importante: definiu como luta principal o combate ao sistema educacional da ditadura. Então, passamos a reivindicar mais verbas e mais vagas e a denunciar o acordo MEC-USAID. Com isso, respondíamos a algo que havia dentro das escolas, a um desconforto muito grande com o ensino da época, que era extremamente velho, decadente, cheirava à naftalina. Os professores falavam, dissertavam; não conversavam com os alunos, um comportamento típico daquele modelo de universidade que estava em crise. E a ditadura tentava colocar as universidades a reboque das empresas, introduzindo o pagamento de anuidades escolares. E sensibilizamos o movimento estudantil quanto a isso,
Havia uma parte do movimento estudantil no Rio, sobretudo a AP e o PCBR, para quem a luta política contra a ditadura e o imperialismo era a luta principal. Eu achava que não. Lembro-me que, quando fui candidato a presidente do DCE da UFRJ, o Henfil fez uma porção de charges me sacaneando. Numa, para ele, eu só queria lutar contra a política educacional e não contra o imperialismo. Numa outra, Tarso Dutra, Ministro da Educação da época, dizia que iria chamar "esse menino para ser meu assessor". O menino era eu. O Henfil, que era da AP, tinha na época uma visão esquerdista da luta política. Nesses setores, por qualquer coisa fazia-se uma passeata, que sempre reunia as mesmas pessoas. Na questão das formas de organização, nós sempre dizíamos que o D.A. era dos estudantes. Se nós o perdêssemos para a direita, teríamos que aceitar isso, porque era o que os estudantes decidiram.
A Faculdade de Ciências Econômicas era dominada pela direita desde 1964. Na escola, havia uma direita democrática, mas também havia uma direita fascista. Tanto que, em 1964, quem queimou o prédio da UNE foram os estudantes da Faculdade de Ciências Econômicas ligados ao Comando de Caças aos Comunistas. O CCC era forte dentro da escola, o que na prática era sinônimo de briga. Volta e meia, as assembléias terminavam em brigas e porradas monumentais. As luzes apagavam e o pau comia. Em 1967, conseguimos retomar o Diretório para a esquerda. E eu fui eleito Secretário Geral naquele momento.
No plano internacional, a influência mais significativa sobre o ME do Brasil na época foi a Guerra do Vietnã. Se um pequeno povo sem armas podia derrotar a maior potência militar do mundo, então por que não podíamos derrotar a ditadura? E na América Latina também tinha o exemplo de Cuba. Foi outra influência muito forte.
Fala-se muito em 68, mas 67 foi um ano fundamental, porque ocorreu uma coisa importantíssima: a vanguarda nas escolas, que tinha se descolado inteiramente da luta dos estudantes, voltou a se conectar com a massa dos estudantes. Nós percebíamos que ir para dentro das salas de aulas seria bom para o movimento estudantil. Muitos ativistas estudantis voltaram a assistir às aulas, porque tinham parado de assistir as aulas. Restabeleceram os vínculos perdidos.
Para entender o movimento estudantil da época no Brasil, é preciso entender também o divórcio que ocorreu entre a juventude e a política tradicional. As lideranças jovens cada vez mais se jogavam na política para reformar o mundo, mas ao mesmo tempo alimentavam uma descrença enorme nas instituições – a ditadura estava ali – e uma descrença forte também na liderança dos políticos tradicionais. Quem era de direita você via com desconfiança porque havia apoiado o golpe, mesmo que tivesse descolando naquele momento, como era o caso de alguns dos principais nomes da Frente Ampla, como Carlos Lacerda, que havia sido um dos golpistas de 1964, ou mesmo de Juscelino, que mandara o PSD votar no Castelo Branco. Como a direita tinha apoiado o golpe, para ela era muito difícil produzir um pensamento moderno, sofisticado, capaz de interpretar o país. A matriz do seu pensamento era repressora. Então quem combatia a ditadura ia pra esquerda.
Mas aí também havia outra questão, porque setores da esquerda, como o PCB, não haviam resistido ao golpe. Na hora H, foi todo mundo para as embaixadas, deixando o povo sem resposta. Assim, havia bastante descrédito nas formas tradicionais de fazer política, o que deu um vigor muito grande ao movimento estudantil. Mas também lhe trouxe limitações. Quando ele bateu no muro com o AI-5, não soube recuar e se recompor. Só conseguiu ir pra frente, de qualquer jeito. Já carregava um reflexo condicionado.
No Brasil, 68 iniciou-se com a morte do Edson Luis. Foi um momento em que a repressão ficou meio paralisada, pois ela também se assustou com o que aconteceu. A morte do estudante não foi algo programado. Foi mais um acidente de trabalho, de certa forma previsível dentro de uma cultura repressiva que tratava na porrada e na violência qualquer reivindicação ou protesto. Assim, num momento de tensão e de descontrole, alguém na polícia passou do ponto. E o assassinato do Edson Luís deu uma largada muito forte para o movimento estudantil em 68, especialmente no Rio de Janeiro, embora tenha havido manifestações de protesto em todo o país, imediatamente.
No Rio de Janeiro, convocamos em seguida uma manifestação para o aniversário do golpe militar, no dia 1º de abril. Ou seja, três dias depois do assassinato de Edson. A manifestação transcorreu no meio de uma porradaria muito grande no centro da cidade. Foi uma manifestação muito dura e violenta. E olha que ainda eram manifestações do tipo em que a gente ia e apanhava. Nós sabíamos que íamos levar porrada e realmente levávamos. Em seguida, teve a missa de 7º missa, onde foram registradas aquelas fotos famosas da cavalaria subindo a Candelária e batendo nos estudantes com sabre. Esses episódios marcaram o fim de um período do movimento estudantil, aquele em que a gente ia para as manifestações apanhar sem revidar.
Naquele instante, já tínhamos uma boa organização, trabalhávamos com grupos estruturados que respondiam a um comando, mas ainda não estavam dadas as condições para um enfrentamento. Então, quando a polícia chegava, ou corríamos ou apanhávamos. No máximo, quando caia uma menina no meio deles, a gente ia lá e tirava. Mas ainda era uma coisa assim: a polícia estava no direito dela de bater e a gente no dever de apanhar.
A partir daí, começou a mudar. As manifestações que ocorrem em seguida à missa da morte de Edson Luis já se dão a partir de uma discussão grande nas escolas quanto à segurança dos principais líderes. E essa segurança pouco a pouco começou a se tornar um serviço de ordem, como dizem os franceses, um núcleo que comandou o enfrentamento às investidas policiais a partir desse momento. Então, a partir do final de maio e início de junho, quando vem a outra onda de manifestações que vai desembocar na Passeata dos 100 mil, para reivindicar mais verbas, mais vagas, reabertura do Calabouço e a libertação dos estudantes presos, o grau de enfrentamento vai ser bem maior. E aí que começa a porrada em cima da polícia. Os estudantes jogam pedras na polícia, atraem PMs para pequenas emboscadas em ruas laterais, viram e queimam carros oficiais. Lembro-me de uma cena impressionante, que nunca vi registrada em foto. Um estudante pegou uma pá numa obra e deu uma pazada num cavalariano que vinha a todo galope. Quando o PM caiu do cavalo, todos partiram para cima dele. E os outros policiais não foram socorrê-lo, mas fugiram. Estavam começando a ficar desnorteados com a reação dos estudantes. Foi uma virada importante.
No Rio de Janeiro, a UNE tinha uma participação muito forte. Nós no Rio de Janeiro tínhamos uma visão de fortalecimento das entidades. O fato de a UNE ser dominada pela AP não queria dizer nada para nós, da UME, sob o comando da Dissidência. Tínhamos divergências políticas, mas reconhecíamos a UNE como a entidade nacional dos estudantes. A UNE ia a todas as manifestações e falava. Ia aos conselhos de DCEs e participava ao lado da UME. Ou seja, nós tínhamos divergências políticas, mas estávamos do mesmo lado. E, quando o movimento estudantil do Rio de Janeiro começou a crescer, os principais líderes da UNE que participavam ali eram o (Luís) Travassos e o (José Roberto) Arantes. O Arantes era da Dissidência de São Paulo. Então ficava uma certa disputa nos bastidores sobre quem vinha e quem ia falar pela UNE. Em geral, acabavam falando os dois.
A UNE era muito respeitada mesmo não tendo uma presença forte do ponto de vista orgânico. Como a UNE não tinha uma estrutura própria, então se sustentava nas estruturas das UEES e da UME, que, por seu lado, também não tinham também grandes estruturas próprias. Na verdade, o ME se sustentava nas estruturas dos DAs e DCEs. Quem dava sustentação financeira e física para o movimento estudantil eram os DAs e os DCEs. No caso da UME, tínhamos jornal e estrutura um pouco maior que outras entidades estaduais, mas também não era grande coisa. Já a UNE era uma casca de ovo em cima de tudo, embora com grande presença, com dirigentes reconhecidos e com um apelo extraordinário.
Mas, como disse, a UNE não era uma estrutura poderosa de organização. Assentava-se nas uniões estaduais e, sobretudo, nos DCE e DAs. E tinha de ser assim mesmo, porque eram os DAs e os DCEs, que tinham salas, prédios, recursos, gráficas pequenas e existiam dentro das escolas. A UNE estava na clandestinidade, mas os DCEs e DAs eram legais.
No XXX congresso da UNE em Ibiúna, nós achávamos que o Congresso seria importante para organizar os estudantes. Não estávamos interessados em criar um fato político, como alguns queriam. Então nos não queríamos nos reunir num convento para que a polícia chegasse lá e dissolvesse o encontro. E aí tivéssemos de eleger rapidamente uma diretoria e sair correndo, sem organizar nada. Para nós, da UME, era necessário consolidar os avanços, eleger uma diretoria representativa e consolidar a linha política que na prática havia se afirmado em 68. Então preferíamos fazer um congresso clandestino, como nos dois anos anteriores. Só que os congressos anteriores tinham sido feitos com cerca de 200 delegados. O de 68 tinha 700. E a estrutura de apoio era muito precária para receber todo mundo. Era impossível fazer aquilo num formato clandestino. Quando cheguei em Ibiúna, pensei com meus botões: "esse negócio vai cair", porque era algo absolutamente sem sentido. No meio do mato, uma movimentação de cerca de mil pessoas. Não tinha lugar para dormir direito e era lama para todo lado. Tanto que mal se começou a discutir, a polícia chegou. Não deu tempo nem de eleger a mesa que ia dirigir os trabalhos. Aquilo foi um equívoco grave. Olhando o episódio mais tarde, ficou evidente que o melhor caminho teria sido o de se adotar uma solução intermediária: congressos estaduais e regionais, que organizassem o movimento, coroados por um congresso nacional, que fosse um ato político.
A partir da passeata dos 100 mil todas as manifestações do Rio de Janeiro passaram a ser dissolvidas à bala. Eu pessoalmente fui alvo duas vezes de tiros à queima roupa. Era para ter morrido. Uma vez, estava começando a puxar uma passeata no Largo de São Francisco e um policial veio me prender. Eu estava pendurado num poste discursando e minha segurança não deixou o policial me prender. Pois bem, ele mandou bala. Eu caí do poste no chão e, atrás de mim, foi uma chuva de vidro, as balas estilhaçando a vitrine de uma loja. Outra vez, numa manifestação em frente à Reitoria da UFRJ, também dissolveram o protesto à bala. Tenho as fotos de policias à paisana atirando na multidão e o pessoal correndo apavorado – eu, entre eles. O fato é que a repressão tinha mudado de patamar.
Ibiúna já é um ponto dentro dessa curva de mudança de patamar. Quando mudou de patamar e a polícia passou a dissolver as manifestações à bala, o que aconteceu? A massa de estudantes recuou. Ela queria lutar, mas não queria arriscar a vida. Então o movimento estudantil começou a bater no muro em agosto, mês em que o Vladimir foi preso no Rio de Janeiro. Aí eu assumo a presidência da UME, e todas as manifestações pela libertação de Vladimir já são reprimidas à bala. Quer dizer, era uma decisão da repressão. Em setembro, não houve grandes manifestações. Em outubro, quando caiu Ibiúna, todas as manifestações pela libertação de estudantes presos também foram reprimidas à bala. Antes, no primeiro semestre, nós havíamos uma inflexão: paramos de correr da polícia e passamos a bater também. No segundo semestre, a repressão também fez sua inflexão: passou a reprimir à bala todas as manifestações. A ordem deles era acabar de vez com as manifestações estudantis. Eles já estavam na escalada para o AI-5.
O AI-5 veio depois de terem sido resolvidas as diferenças internas dentro dos altos comandos das Forças Armadas, depois que eles chegaram à conclusão de que aquela forma de ditadura praticada durante os quatro anos anteriores não era mais eficaz, porque as forças políticas civis não aceitavam mais se submeter a ela. E então eles teriam que conviver com manifestações, com protestos, com ações da oposição. Foi quando eles começam a dissolver as passeatas à bala e tiveram que ir pra outra forma de ditadura, mais dura e aberta, que passava por prender todo mundo que se opusesse ao regime, fechar o congresso, cassar mais gente e abolir o habeas-corpus.
Os militares chegaram à seguinte conclusão: ou voltamos atrás e permitimos a redemocratização do país e a realização de eleições, ou seguimos em frente e radicalizamos com uma ditadura aberta e terrorista, onde o seqüestro, a tortura e o assassinato de opositores políticos passarão a ser as formas de relação básica com quem discordava do regime.
Fui preso em Ibiúna e saí graças a um habeas-corpus, na véspera do AI-5. Meu habeas-corpus foi concedido no Supremo no dia 11 de dezembro, chegou à Auditoria Militar em São Paulo no dia 12 de manhã e na tarde do mesmo dia eu saí. Para a outra turma – nós éramos em nove –, em que estavam Ribas (que morreu depois no Araguaia), Vladimir, Dirceu e Travassos, o habeas-corpus foi concedido pelo STF no dia 12. No dia 13, quando chegou a São Paulo, não havia expediente na Auditoria Militar, por causa do Dia do Marinheiro. À noite, houve a edição do AI-5. Resultado: o habeas-corpus foi jogado no lixo e eles continuaram presos. Só saíram com a troca pelo embaixador norte-americano. O texto-base do manifesto fui eu que escrevi. Em cima dele, foram feitas modificações, esse tipo de documento é sempre uma obra coletiva. O Toledo propôs algumas mudanças importantes, por exemplo, a advertência aos torturadores de que não iríamos mais admitir que eles continuassem torturando impunemente. Então isso foi posto no final. É um documento que expressa um momento, uma época. Não foi uma coisa só minha.
Em resumo, é muito difícil não romantizar 68, porque é um ano em que em vários lugares do mundo ocorreram movimentos com uma força e uma energia monumental. É evidente que a simultaneidade dos movimentos não foi uma coincidência, revelou o esgotamento do modelo de desenvolvimento capitalista do pós-guerra.
No entanto, as manifestações obedeceram em cada país a fenômenos diferentes. Nosso 68 começou antes do Maio francês e começou com a morte de um estudante. O Maio francês começou porque os estudantes queriam circular livremente entre os dormitórios masculinos e femininos na Universidade de Nanterre. Claro que, depois, a dinâmica ampliou os movimentos, eles levantaram outras bandeiras, alcançaram outros problemas, ganharam outra dimensão. Assim, acho normal que haja um certo grau de romantização dos movimentos de 68, pois eles foram muito fortes e vigorosos não apenas no plano político, mas também no plano dos costumes e no plano cultural. É um momento em que pessoas em quase todo o planeta pensaram que o mundo poderia ser diferente do que ele era. E pensam que não era preciso se conformar com mediocridade, com a repressão – política ou sexual – ou com a mesmice. Evidentemente, depois de algum tempo percebeu-se que mudar que não é tão fácil mudar quanto falar em mudanças. Mas aquele ímpeto transformador e aquela energia que brotaram das manifestações marcaram definitivamente aquele ano.
Da mesma forma que existe gente que romantiza 68, também tem gente que desqualifica 68, como se ele não tivesse tido grande importância. Em geral, é gente que não participou de 68 ou que depois mudou de lado e precisa encontrar alguma pequena justificativa para sua atitude. É evidente que 68 marcou todo mundo que participou dele. E em geral marcou pra melhor. Ao acreditar que o mundo podia ser melhor, as pessoas se tornaram melhores do que eram.
A grande herança de 1968 é a de que vale a pena lutar. Essa é a principal herança: não somos obrigados a nos conformar com o que é ruim. A gente deve lutar pra mudar o que está errado. O desejo de mudar, a esperança, a indignação foram as marcas de 68. Ou seja, a geração de 68 – e isso veio a se manifestar depois na luta contra a ditadura nos seus momentos mais dramáticos – foi marcada pela decisão profunda de não se curvar diante da opressão e da repressão. Era como se disséssemos para a ditadura: “Você pode me matar, mas você não pode me obrigar a viver pacificamente debaixo da sua opressão. Vou lutar contra isso”. De certa forma, isso não é diferente do que aconteceu na resistência à ocupação nazista em boa parte da Europa. As pessoas sabiam que provavelmente não iriam vencer, mas diziam: “Mesmo assim, eu não vou me conformar com isso, porque, se eu me conformar, não serei um homem no sentido pleno, serei um verme”. Então a questão principal da geração de 68 é que “vale a pena lutar”. E lutar sempre. Espártaco podia vencer Roma? Não, não tinha a menor chance de vencer o poderio de Roma. Mas Espártaco se levantou assim mesmo. E deixou de ser escravo no dia em que disse “eu não vou ser mais escravo”.
A geração que lutou em 68 tornou-se livre no momento em que disse: “Não vou me submeter. A ditadura não vai me obrigar, por meio da repressão e do terror, a ser menos do que eu quero ser. E eu vou ser alguma coisa diferente do que ela quer me obrigar a ser, mesmo que eu tenha de pagar um preço alto por isso”. E pagamos o preço – para muitos, um preço definitivo. Olhando para trás e olhando para frente, não tenho dúvidas de que valeu a pena lutar.
Hoje nosso país é muito mais democrático do que era antes, em parte porque houve uma geração que disse: “prefiro morrer a viver oprimido e submetido”. E quando isso acontece na história de um país, marca quem vem depois, porque quem pensar em dar um golpe no Brasil hoje, pensará duas vezes. Hoje a possibilidade de um golpe de estado não existe no horizonte do país, entre outras razões porque sabem que não somos um país de bananas que aceita que alguns gorilas se reúnam e façam uma xaropada junto com a direita e os conservadores e imponham ao país uma longa noite de terror. Não, porque, se você aceita que pode viver debaixo da opressão, de alguma forma você aceita ser cúmplice com ela. A minha geração não foi cúmplice com o que ela não concordava.
Para os jovens de hoje em dia, 68 não está presente na memória e no universo deles e não estará. Eles não viveram aquilo. Felizmente eles vivem num país que tem democracia e onde a inclusão social entrou na ordem do dia. Podemos discutir se a questão social deve ser tratada assim ou assado, mas ela não pode mais ser varrida para baixo do tapete. Eles vivem num país que hoje em dia confia nas suas próprias forças e acha que pode avançar mais. O que eu diria aos jovens? Lutem pelo que vocês acham que é justo. E sejam generosos. Não lutem apenas pelo que pode ser bom para vocês, mas pelo que pode ser bom para a maioria. Porque é lutando pelo que é bom para a maioria que a gente luta pelo que é melhor pra gente. Quem não é generoso com os outros não pode crescer.
[1] Entrevista a Otávio Luiz Machado, 2008. Revisão final: Rafaela da Mota Silveira Correia.

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